Fernando Pessoa: gênio literário e futuro psicopata
A obra do poeta português Fernando Pessoa já foi várias vezes exaltada por críticos literários e leigos com uma paixão inerente a esta forma particular de arte. Seu conhecido caso de heteronímia foi classificado muitas vezes como um caso único na história. Longe desses extremismos tão comuns a obra desse importantíssimo artista Moderno (no sentido não só de vanguarda, mas também como referencia a sua escola literária), este livro tem como objetivo analisar sua obra sob a luz da psicanálise, talvez pondo em xeque a imagem do poeta dono de uma inteligência hiperativa, mas saudável.
Antes de qualquer coisa, deveremos obter uma definição imparcial e a mais especifica possível de certos termos que certamente serão utilizadas por várias vezes durante a produção deste estudo.
Patologia: qualquer alteração estrutural e/ou funcional das células, dos tecidos e dos órgãos sem a finalidade de sobrevivência da espécie (ou seja, sem o objetivo final de evolução ou adaptação da espécie).
Psicopatia: Toda patologia que afete o sentimento de identidade do paciente em questão, podendo variar em graus desde uma intolerância a frustração e insensibilidade até uma franca necessidade (muitas vezes explicada como “biológica”) de serem agressivos e/ou impulsivos.
O fato de que o poeta Fernando Pessoa sentiu a necessidade de criar outras personalidades para a sua plena expressão poética e o uso comum de termos como “fato ocorrido como se fosse fora de mim” e “uma outra pessoa tomou o controle de súbito” é com certeza prova concreta o suficiente para supor que sua identidade não era algo completamente clara dentro do funcionamento de sua psique.
Um outro ponto interessante é a ocorrência de uma muito bem disfarçada imagem divina de si, especificamente na forma que o poeta-heteronímico Alberto Caeiro é considerado pelo Fernando Pessoa Ele - mesmo (o poeta propriamente dito, de carne e osso). Felizmente, em uma carta a um amigo e também poeta Mário de Sá, ele parece reconhecer e até mesmo pede perdão pelo “absurdo da frase: apareceu em mim mesmo o meu mestre”.
Faz-se necessário a análise especifica de cada um dos poetas “principais” (em ordem de apresentação: Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro), além da pessoa poética de Antonio Mora (tido como sendo de importância secundária para a maioria da critica).
Álvaro de Campos – O mais perto, cronologicamente e mentalmente falando, da figura real de Pessoa e conseqüentemente o mais facilmente associável com o homem comum da Era contemporânea.
O primeiro livro escrito por esse heterônimo leva o nome de “Opiário” e relata o uso de “drogas americanas que entontecem”. Não há, até a data em que esse estudo foi publicado, prova de qualquer natureza de que Fernando Pessoa tenha de fato provado de algum químico que não fora o ocasional fumo e bebida. Além disso, o estado mental relatado por Álvaro é somente uma forma de falar sobre assuntos mais amplos como a fragilidade da existência pessoal ou a rapidez com que uma idéia se perde.
Uma ação que adquire muita importância na obra poética de Álvaro de Campos é o de viajar, novamente, essa atividade aparentemente prosaica serve apenas como pano de fundo para idéias de maior grandeza. A viagem em sua obra é tratada sob dimensões metafísicas, onde o homem tenta descobrir uma nação comum a todos dentro dele mesmo.
Este heterônimo tem a obra mais vasta dos três, sendo ela dividida em três fases: a primeira é aquela tratada no parágrafo anterior. Na segunda, sua voz poética segue a estética da vanguarda européia Futurista de Filipe Marinneti, mas longe do radicalismo pregado pelo manifesto. O “Futurismo pessoano” (ou melhor, da pessoa poética de Álvaro de Campos) tem mais a ver com o desejo de progresso técnico- industrial e científico da cidade, em franca oposição ao bucolismo dos outras duas pessoas poéticas dentro de Fernando Pessoa.
Finalmente, na terceira e última fase de Álvaro tudo é revestido de um pessimismo claro, como se o projeto pensado por ele para a sua sociedade (e, por conseguinte, seu sentido vital) não tivesse dado certo ou tivesse sido deturpado completamente.
Ricardo Reis – É a entidade poética com maior grau de dissimulação dentro de Fernando Pessoa, pois se refugia não só numa mentalidade supostamente diferente como também em um tempo histórico e até mesmo numa religiosidade completamente oposta não só da do próprio poeta como da humanidade contemporânea.
As anotações de Pessoa da ao Ricardo a árdua profissão de médico, junto com uma linguagem culta e erudita típica a classe alta (típica daquelas que exerciam essa profissão de inegável importância, especialmente na época de Pessoa)
Numa aparente contradição, ela acredita em uma religiosidade politeísta, com escritos poéticos apropriado aos primeiros tempos da Antiga Sociedade Greco-Romana. Sua obra é a mais dissimulada de todas exatamente por essa razão. Dentro desta parte especifica da obra pessoana, há referencia a uma musa (no sentido mais especifico da palavra: uma musa a moda das deidades antigas) de nome Lygia.
Não há nenhum registro confiável de que esta personagem tenha sido baseada em alguém de existência real ou se é tudo fruto da genialidade de Pessoa, o fato é que a relação dela com Ricardo Reis é construída sempre sobre o peso da finitude da vida. Há sempre uma quase obrigação psicológica de se aproveitar o momento, sendo que o mundo em volta é cheio de lembranças da velocidade em que o tempo passa.
Em um dos poemas de Ricardo Reis, o poeta (ao lado de sua musa Lygia) passa o dia vendo passar um rio. Está ai uma metáfora perfeita para a situação explicada anteriormente: não há nada que impeça o fluir do rio, da mesma forma como inexiste uma força (metafísica ou não) capaz de parar ou até mesmo retardar a passagem do tempo.
A conseqüência final dessa relação aparentemente pouco saudável para o Ricardo Reis é o pessimismo da lembrança, por parte da natureza inteira (junto com suas várias deidades), de que nenhum momento, por mais belo que seja, durará por toda a eternidade.
Alberto Caeiro – Dado como o mestre de todos os heterônimos, sua postura poética é a de rejeitar toda e qualquer metafísica, seja ela o Deus ocidental e cristão ou as deidades orientais de Ricardo Reis. Para ele, o mundo é exatamente como ele se mostra aos olhos, sendo que nada guarda algum sentido por trás delas mesmas. Essa postura filosófica permite aproximá-lo dos clássicos no sentido estrito de mentalidade cientifica (em novo contraste com Ricardo Reis, esse inspirando toda a sua mentalidade nessa Era).
Poder-se-ia dizer que as condições para a sua felicidade completa são as mais simples possíveis (baseado em versos como “deito na relva e sou feliz”). Ele encarna toda a estética da escola Classicista com conceitos como o Fugere Urbem (fugir da alienação da cidade) e o Carpe Diem (o de aproveitar o momento presente, só que mais uma vez sem a angustia sentida por Ricardo Reis).
Como se vê, a dissimulação do poeta realmente existente de Fernando Pessoa causou uma fuga tanto temporal (essa levada ao extremo, pois Ricardo Reis vive em outra Era histórica) quanto de mentalidade e de limite humano (como por exemplo, ter encontrado o seu próprio “mestre” dentro de si mesmo) na forma tanto de Alberto Caeiro quanto em Álvaro de Campos.
A criação de mais outra entidade poética dentro de Fernando Pessoa constrói toda a base de minha teoria literária. A coragem em escolher a continuidade de expansão da sua poesia demonstra talvez o medo (e ao mesmo tempo o inconsciente desejo) de um dia perder a razão por completo.
Este heterônimo em particular estaria internado numa clinica psiquiátrica em Cascais e raramente fala com alguém. Parece compartilhar da fé passadista e panteísta de Ricardo Reis e foi classificado por Pessoa (após uma “conversa” com ele) como um “louco lúcido”. O poeta em questão se chama Antonio Mora, apresentado como o único “oficialmente louco”.
Este último poeta criado há de demonstrar o conhecimento, mesmo que inconscientemente, de toda a loucura criada por ele próprio. A aceitação de que um dia o criador poderia se tornar igual a sua criatura demonstra uma maturidade e paz de espírito que poucas pessoas conseguem em vida.
Verdadeiramente, é questionável até que ponto Fernando Pessoa continuaria lúcido o suficiente para poder conscientemente separar a realidade que ele escrevia daquela que de fato acontecia a sua volta. Isso é especialmente ariscado para o heterônimo de Álvaro de Campos pelo fato deste ser conterrâneo e contemporâneo do Fernando Pessoa Ele – mesmo.
Uma questão meramente etimológica há de ser explicada a esta altura do texto, pela deturpação comum desta palavra pela cultura disseminada por filmes e outros ícones de cultura em massa: há uma diferença enorme entre um psicopata e um assassino em série. Falando estritamente pela lógica, todo assassino em série é um psicopata, mas pouquíssimos psicopatas são assassinos em série.
Dito isto, Fernando Pessoa correria o risco de ser clinicamente diagnosticado como um psicopata somente pelo fato de não mais poder distinguir aquilo que ele escreve daquilo que ele vive.
Em última análise, podemos quase que seguramente dizer que embora Fernando Pessoa não tenha vivido tempo suficiente para que esta condição patológica atingisse seu ápice psíquico-biológico, ele correu riscos bem reais de tal quadro se tornar presente.
Tal fato não anula em nada a genialidade do maior poeta da história de Portugal, se não da Língua Portuguesa (e, conseqüentemente, do Ocidente). Muito pelo contrário: saber que Fernando Pessoa tenha vivido com tal condição sem diagnóstico a vida inteira e mesmo assim ter se tornado o que se tornou é verdadeiramente impressionante.