Escola Galaktion Eshmakishvili de poesia
“Βρεκεκεκὲξ κοὰξ κοάξ!”
(ARISTÓFANES)
Ao decorrer de minha longeva carreira de escritor uma pergunta sempre perdura nos lábios de todos aqueles que vieram a ter uma impressão favorável de meu trabalho: “Me ensinará a escrever tão bem quanto você?”.
Um bom mágico nunca revela seus segredos, como diz o velho ditado; assim sendo, por anos hesitei em dar uma resposta verdadeiramente elucidativa, já que uma miríade de imitadores tiraria de mim aquilo que tenho de interessante. Não apenas isto; sou dotado de uma modéstia pudica em excesso, portanto qualquer elogio faz com que enrubesça, e tento desviar o assunto para outra coisa não inerente à minha pessoa.
But alas! Estou velho. A meia-idade se encontra a pouquíssimos passos; um ou outro cabelo branco salta aqui e acolá, e constato com um misto de pesar e alívio que já não sou mais aquele garotinho idealista que, ao escrever “Camila” em 2010, esperava liderar um Romantic revival e ser sagrado Poet Laureate nas galerias da Academia de Letras. A Velhice e a Morte andam uma atrás da outra – a primeira delineia e suaviza o caminho da segunda, e é só uma questão de tempo até que eu sucumba ante seu jugo. Portanto, antes que eu venha a deixar este mundo para repousar eternamente embalado pelo vácuo da Imatéria, retrato-me de meus posicionamentos anteriores, pedindo profusas desculpas por minha hipocrisia, e lego a meus fiéis leitores do melhor modo que sou capaz de descrever os pormenores daquilo que fez minha œuvre ser o que é, abençoando a toda uma escola de imitadores – “imitation is the sincerest form of flattery”, não? – do mesmo jeito que os grandes permitiram a mim imitá-los há tanto, tanto tempo.
Com a maturidade vêm novos sonhos, estes mais plausíveis e fáceis de serem realizados com algum esforço; meu antigo sonho de ser o arauto de um novo movimento literário caiu por terra, para dar lugar a este tratado que, espero eu, haverá de suplantar a “Poética” de Aristóteles e iniciar uma escola de Galaktions – discípulos que, tanto os passáveis quanto os não passáveis, carregarão meu nome à voga e, subsequentemente, à queda, como é de praxe com essas modas literárias que vêm e vão.
I
Na grande maioria das vezes o caminho de um Galaktion é predito por seu nascimento; e é isto que diferencia um Galaktion interessante de um que, talvez, esteja fadado a fracassar após mal concluir seu primeiro escrito.
Um dos fatores que contribuem para aquilo que elogiam frequentemente em meus trabalhos é o fato de meu nascimento ter sido não uma ocasião de júbilo, e sim de profunda tristeza. Que o digam a extensa lista de pessoas de má índole que passaram por minha vida, e até mesmo meus próprios pais! Não haverei de demorar-me neste detalhe, afinal não redijo uma autobiografia – mas o que quero dizer ao leitor é que, se pretende ser um bom artista, deverá se preparar para sofrer muito. “Arte advinda da alegria é engodo; arte advinda da tristeza é refúgio”. Noutras palavras: aquele que nunca sofreu jamais poderá produzir qualquer coisa de marcante, pois “quem viveu sem sofrer foi espectro de homem, e não homem” – o sofrimento é necessário à introspecção, sem a qual nenhuma obra artística de qualidade pode perdurar.
O que leva-me ao segundo ponto do presente tratado.
II
Se toda boa arte serve como refúgio, o artista nada deve à Realidade – a bom entendedor, meia palavra basta, mas a quem não é um bom entendedor fica a explicação.
A função do artista é a mesma descrita por Torquato Tasso: a da enfermeira que adoça as bordas de um copo com o intuito de tornar um remédio amargo mais palatável a seu paciente. Todos nós, pobres-diabos, estamos condenados ao férreo domínio da Realidade em base diária; assim sendo, por que lembrar-nos constantemente disto!?
Quem retrata a realidade como é são os jornalistas – esta profissão que, com o passar dos séculos, tornou-se uma das mais indignas e desonestas, abraçada por velhacos em sua maioria. Nós, poetas – Galaktions! –, estamos acima da Realidade; portanto, criemos mundos e mais mundos dotados de beleza, onde até nossas aflições venham com o Pensamento e com ele vão-se embora (“O poeta é um FINGIDOR!”), e magníficos castelos no ar erigidos com tijolos de sonhos. Quanto mais belo for seu castelo (por mais que não tenha nenhuma utilidade prática), mais perto estará de ser um bom Galaktion.
Ora! Modéstia à parte… como meu castelo é maravilhoso…!
III
Todo Galaktion que se preze deve tomar como divisa a seguinte frase:
“WE SEEK NOT LIFE’S BEAUTY BUT CHERISH ITS FUNERAL ASPECTS.”
Inevitavelmente os dois outros pontos acabariam por levar a este. Afinal, estando nós cientes da grande insânia dos séculos e da degeneração à qual todos estamos condenados, naturalmente não nos resta escolha fora tentar enxergar beleza na tragédia.
O Galaktion deve saber alternar entre a beleza ideal, platônica, imaginada e os encantos pútridos da decadência com maestria. Ora! Qualquer um que contemplar minhas influências pode enxergar isto, tão claro quanto a luz do dia.
Obviamente, tenho Álvares de Azevedo e Byron em altíssima estima – o primeiro com suas duas metades da “Lira dos vinte anos”, e o segundo que, após lançar ao mundo o “Childe Harold” e o “Manfredo” riu-se de tudo aquilo que outrora amara com o “Beppo” e o “Don Juan”. Duas influências imprescindíveis, de fato… mas não as únicas.
Reparem bem que dirijo-me primariamente aos Galaktions de inspiração romântica; aqueles que aderem a outro movimento literário que procurem algum outro tratado escrito por alguém dotado de mais tempo livre que eu, pois falo apenas daquilo que conheço.
Decerto, conhecer quase toda a escola romântica é essencial para que um Galaktion firme seu estilo; esteja preparadíssimo, leitor, para estudar Byron, Azevedo, Dias, Freire, Varela, Abreu, Keats, Shelley, Pushkin, Blake por horas a fio! (Sejamos justos, no entanto – apesar das duras e merecidas críticas feitas por Byron a Wordsworth e Coleridge, têm também eles seus méritos. Não devem, porém, ser incluídos em primeiro plano.)
Mas não é só de poetas oitocentistas que minha biblioteca é repleta! Se assim o fosse, imaginem só os “Camilas” que haveria eu de excretar per annum…! Sendo eu uma pessoa que abraçou ao extremo a noção da Dualidade, não gosto de levar-me tão a sério, e quando estou de bom humor, escrevo alguns trabalhos brincalhões, sendo eles inspirados por Mervyn Peake, Tim Burton, Edward Gorey e Rogério Skylab. Neste último caso, o importante é pensar em alguma situação surreal, fazendo-a parecer algo corriqueiro ou deixando a conclusão servir de surpresa/causar espanto. (Vide, por exemplo, meus poemas “Minha tia”, “Meu pai”, “Um mistério…!”, “Panoptes” e “Diário de um assassino”, que são meus favoritos neste estilo.)
Antes que o leitor inquisitivo interrompa-me, já emendo – em primeiro lugar, os grandes poetas épicos e líricos também são de suma importância: Homero, Virgílio, Dante, Milton, Spenser, Tasso, Shakespeare, Goethe são os ideais que todo Galaktion deve almejar, já que um épico é o suprassumo da carreira de um vate. Eu próprio ainda não pude redigir meu épico, mas não gostaria de ver meus Galaktions disputando entre si! Aquele que valer-se deste humilde tratado para iniciar o seu haverá de ser genuinamente congratulado.
E, em segundo lugar, Poe é senso comum entre todos os Galaktions. A bom entendedor…
IV
Após muitos experimentos ao decorrer de minha década de carreira (ou de lápide, como preferirem), adotei esquemas de rimas diferentes de acordo com a temática/conteúdo de cada poema.
Eu passei a preferir os sonetos por serem diretos, ritmados e possuírem uma musicalidade agradável aos ouvidos, portanto quando escrevo algum poema corriqueiro emprego esta forma, deixando para experimentar mais em poemas mais longos. E por mais que tenha utilizado certos esquemas apenas uma vez, criei um método para quando/se vier a escrever outro poema de mesma temática.
Lembremo-nos de meu romance em versos “Alceste, o ocultista de Vilnius” – escrito em estrofe Onegin por se ambientar num país distante do Norte. Há também os poemas em ottava rima, que são cômicos por inteiro (“Demetre e Ketevan”, “Itinerário íntimo”) ou em parte cômicos, em parte sérios (o fragmento “Kishinev”, posteriormente expandido em prosa). As epístolas a Tekla Inashvili e Beatriz Uchôa, escritas com o famoso heroic couplet setecentista, e a elegia a meu mestre, “Satori”, em terza rima para emular a “Commedia” e destacar o tema solene – todas estas foram as conclusões a que cheguei sobre como proceder.
Obviamente, aquele que encontrar um método melhor pode utilizá-lo sem obstruções; mas este é o que utilizo há anos, e acredito que aquilo que não está quebrado não precisa de conserto. Entretanto, jurei a mim mesmo que, quando chegar a hora de escrever meu grandiloquente épico sobre “armas e varões”, empregarei a estrofe spenseriana – e só permitirei que algum outro utilize esta ideia quando eu fracassar irremediavelmente, ou algum período de tempo depois de minha morte houver decorrido. Ensino-os a serem como eu, mas não queiram tomar meu lugar enquanto vivo!
Enfim, resumindo de forma sucinta o que expliquei no presente ponto:
1) Ao fazer um poema “usual”, emprego o soneto (ABBA, ABBA, CDC, DCD);
2) Ao fazer um poema narrativo longo ambientado em países “exóticos” (geralmente do Leste Europeu), emprego a estrofe Onegin (ABABCCDDEFFEGG);
3) Ao fazer um poema longo satírico ou tragicômico, emprego a ottava rima (ABABABCC) – a única exceção foi “Retorno a São Carlos”, de inspiração retirada do Wintermärchen de Heine;
4) Ao escrever uma carta em versos, emprego o heroic couplet (AABBCCDD…)
5) Ao fazer um poema que versa sobre temas sublimes e celestiais, emprego a terza rima (ABA, BCB, CDC…)
V
“Ich werde für die Kunst und meine Geliebten gerne ausharren”. Naturalmente, todo Galaktion deve ter uma musa para poder escrever belos poemas de amor. Não creiam, porém, que ela é uma mulher terrena, corpórea! Minha Anastasia mesmo não é um ser deste mundo; é baseada numa pessoa real, sim, mas nenhum Galaktion pode amar ou ser amado por uma pessoa de carne e osso.
A razão é simples – queiram lembrar-se daquilo que escrevi no ponto II. Se o poeta nada tem a ver com a Realidade, que graça haveria relacionar-se com uma mulher de verdade? Oh, os gastos necessários para manter um namoro, um casamento…! Nenhum Galaktion deve cobiçar dinheiro (seja sutil, ao menos, aquele que o fizer), e “quem se casa por amor há de viver com a dor”.
A musa do poeta é a personificação de todo o seu labor – mas é importante saber ser diverso e encaixá-la em situações variadas. Não é em todos os meus poemas que Anastasia é minha fiel amante! Ela é diversamente gélida, amável, distante entre os trabalhos em que aparece.
Mas e quanto às famosas Camila e Stephanie, perguntam-me? Decerto, amei a ambas, e Anastasia é um composto delas e de várias outras; qualquer relacionamento falho serve de material. E nem tudo está perdido! A primeira fornece meu ganha-pão há anos, e ainda vão à loucura quando ocasionalmente lhe menciono, mesmo que contra minha vontade. A segunda ensinou-me um novo e belíssimo tema, nunca antes por mim explorado até este ano: o perdão e a redenção que ele traz. Quem precisa se fiar na inconstância das mulheres quando se tem a Arte (Anastasia) e uma bela Amiga (Stephanie/Nelly) por quem perseverar?
VI
Muito provavelmente haverão dias em que você, leitor, duvidará de si próprio e de seu talento. O que não faz mal – é natural sentir-se eclipsado por tamanhas influências tão grandiosas. O que não faria eu para ouvir do próprio Byron que meus trabalhos valem os pingos em seus “I”…! Mas enfim, não entremos em desespero – encontrei o remédio ideal para esta insegurança.
Minha poesia abriu-me maravilhosas portas, sendo uma delas a oportunidade de comunicar-me com vários e indulgentes grandes: meu saudoso mestre Ciro Pessoa, por exemplo. Em meu início de carreira, quando mostrei-lhe meus poemas, se sua resposta a eles fosse negativa nunca mais teria escrito qualquer coisa. Mais recentemente travei amizade com Marcos Andrada, cantor do Vultos, que não poupa-me elogios mesmo quando não tenho certeza de ter escrito algo passável. Assim sendo, se você está incerto de seus talentos, mas possui um grande a elogiar suas obras, não há melhor confirmação de suas capacidades! Traga-lhes orgulho, portanto – um Galaktion é triste, mas nunca deve deixar-se abater pela Dúvida.
E mais ainda do que a opinião dos grandes, é a sua que importa; “aquilo que me está bom, bom está”.
VII
Por último, mas não menos importante, resta discorrer sobre o ponto mais crucial de todos: quando deve um Galaktion aposentar-se?
Respondo: nunca. Tal como Goethe passou sua vida inteira escrevendo, também um Galaktion deve buscar inspiração por décadas a fio. Só duas coisas devem interromper de modo natural o processo criativo de um Galaktion – a morte, o que é óbvio, e uma visão como a de Tomás de Aquino, que fez-lhe achar seus escritos como palha. (Esta última sendo a mais rara e improvável, já que quase todo Galaktion é ateu.)
***
E assim chego ao fim de meu tratado. Sinto-me estranho após revelar tais particularidades de minha pessoa ao público, como se arrancasse a máscara que sustenta a suspension of disbelief de meu ser e dirimisse a aura de inacessibilidade que paira sobre mim – mas no fim do dia nós, autores, não passamos de pessoas comuns; sentimos fome, sede, sono, frio etc. O mundo é um palco, a vida é um drama – e todo drama chega ao fim, e os atores devem despir-se de suas fantasias subsequentemente. É esta, portanto, a verdade, e nada mais que a verdade, sobre meu gênio, mas não cabe a mim preocupar-me com como ela será adotada pelos outros. Com uma mesura despeço-me da plateia, e desejo-lhes boa sorte.
(São Carlos, 27 de dezembro de 2021)