"As meninas" Lygia Fagundes Telles (Angela Sánchez)

As meninas. Lygia Fagundes Telles

“Lygia aprimora, então, suas qualidades de narradora explorando agora as consciências afetadas pela droga, pela insegurança e pelo medo. Tem, desse modo, a oportunidade de fixar literariamente os quadros de indefinição psicológica, entre a sanidade e a loucura” (Lucas, F. 1999)

Lena é uma menina na sua adolescência, que pressente como o mundo, que está lá fora, pode violentá-la, feri-la, por isso tem medo da máquina do mundo, “... na cidade me desintegro porque na cidade eu não sou eu, eu estou, estou competindo e como dentro de regras do jogo (milhares de regras) preciso competir bem... e acabo sacrificando o ser...” (Pág. 179) “... efêmera ”Lorena a breve”... (Pág. 94), e é com esse medo que o olha de longe. O mundo pequeno de seu quarto na pensão, é um espaço controlado, de detalhes, com os que ela se sente capaz de lidar “... o prazer que encontro neste simples ritual de preparar o chá é quase tão intenso quanto o de ouvir musica. Ou ler poesia. Ou tomar banho. Ou ou ou. Há tantas pequeninas coisas que me dão prazer, que morrerei de prazer quando chegar a coisa maior. Será mesmo maior, M. N. (Pág. 16)

Permanece na sua concha e permite que o mundo penetre aos poucos, nas suas amigas, pelas vidas de suas amigas e os acontecimentos que elas lhe compartilham “... ser sempre compreensiva não era ser conivente?... ” (Pág. 95) Mas, a melhor maneira de se sentir mais ou menos viva, é viver numa realidade cheia de fantasias, de escudos .... “o homem do pêssego... fiquei fascinada. Alisou a penugem da casca com os lábios e com os lábios ainda foi percorrendo toda sua superfície como fizera com a ponta dos dedos. As narinas dilatadas, os olhos estrábicos. Eu queria que tudo acabasse de uma vez mas ele parecia não ter nenhuma pressa: com raiva quase, esfregou o pêssego no queixo enquanto com a ponta da língua, rodando-o com os dedos, procurou o bico. Achou? ... eu estava encarapitada no balcão do café mas via como num telescópio: achou o bico rosado e começou a acariciá-lo com a ponta da língua num movimento circular, intenso. Pude ver que a ponta da língua era do mesmo rosado do bico do pêssego, pude ver que passou a lambê-lo com uma expressão que já era sofrimento. Quando abriu o bocão e deu o bote que fez espirrar longe o sumo, quase engasguei no meu leite. Ainda me contraio inteira quando lembro, oh Lorena Vaz Leme, não tem vergonha?...” (Pág. 5)

O amor que sente por M.N., um desconhecido para todos, é o seu escudo “... se pudesse ser amada na própia sala de cirurgia. Entraria na padiola, como Ana Clara. No fundo, a espera, o anjo sedutor na sua roupa imaculada, ainda imaculada. E mascarado. Lena me da a sua mão, pediu Ana clara. Deu-lhe a mão, constrangida: sabia que ela transpirava demais na mão e tinha horror de suor. Um suor frio como a sala, frio como a luz do holofote. Na estreita faixa entre o gorro e a máscara os olhos do médico eram frios. A voz branca de Ana Clara parecia vir filtrada através dos algodões: “um, dois , três, quatro, cinco... seis... sss ” a luta metálica dos ferros se entrechocando. O peso do sangue na gaze. O hálito de éter se desfazendo no ar, not to be...” (Pág. 55) Nele se ampara, vagueia, se enche de sensações, mas sabe, no íntimo dela, que isso não se realizará. Nada melhor do que desejar o impossível, ninguém poderá nos cobrar por não alcançá-lo “... será que o sexo ia lhe dar tanto prazer como o sol? Fico tomando sol porque não posso tomar o homem que amo ...” (Pág. 55)

Ao mesmo tempo tem lembranças traumáticas e vivências dolorosas “... como um ferido de morte. Ah Rômulo, Rômulo. O sangue escorrendo do furo que mãezinha procurava tapar com a palma da mão, a camisa vermelha empalidecendo, recuando diante do sangue tão mais forte...” (Pág. 58)

Sofre o pouco caso da mãe, mais preocupada com a sua própria vida, com o seu não envelhecer. Sofre com a morte do pai, a morte do irmão, e culpa inconscientemente à mãe. Uma mãe castradora, mas uma pessoa enfim. “... eu uma amoral indolente, parasita da mãe devassa, velha corruptora de jovens. O que se pode esperar de uma menina com uma mãe semelhante. Tem mais magoa da mãezinha do que de mim: mulher sem escrúpulos, que internou o marido desmemoriado e foi torrar o dinheiro com o amante que podia ser seu neto...” Pág. 98)

Por outro lado Lena não assume a raiva que sente pela mãe “... mãe cura tudo, mãe sabe tudo, tapa com força! ...” (Pág. 111, sentimento de castração), porque de fazê-lo, falaria com ela, acertaria as contas, prefere no entanto castigar-se recluir-se, culpar-se a si mesma, achando-se pouca coisa, inútil, inservível “... O Fabrício diz que meu apelido na faculdade é Magnólia Desmaiada...” (Pág. 11)“... que isso não aconteça, porque não resisto, um pouco que me apertem o dedinho e já vou falando. Sou da família dos delicados. Dos sensitivos...” (Pág. 47)

Talvez esse complexo de Electra lhe pertença; segundo a teoria freudiana a criança é atraída sexualmente em relação ao progenitor do sexo oposto, e de princípio rejeita e teme o do mesmo sexo. Como no Complexo de Édipo, esta fase é o resultado dum conflito de desejos pulsionais e profundos recalcamentos gerados em muitas situações no decorrer da infância, que só produzem seres ansiosos profundamente inibidos no domínio afetivo e angustiosamente dependentes.A menina é mais precoce na atividade sexual especificamente na masturbação, pois com cerca de 3 a 4 anos pode atingir orgasmos, criando uma obsessão e um isolamento para a prática do ato. Depois de uma fase de fixação afetiva na mãe, durante a primeira infância, a jovem apaixona-se pelo pai e tem ciúmes da mãe; ou então se não for correspondida pelo pai, tenderá a virilizar-se, para seduzir a mãe, ou recusando qualquer casamento, inclinar-se-á para a homossexualidade “... as unhas cortadas rente. Conhece-te pelas unhas. Precisam apará-las com cuidado, instrumentos importantíssimos, ô vexame! Por que só coisas assim varam minha mente pervertida. Quem me vê tão suave. Uma criança (Pág.143, falando com irmã Clotilde, pensando num ato homossexual) As raparigas procuram freqüentemente, e a nível inconsciente, nos homens o pai “... esse M.N., putz. Será que ainda não percebeu que ele ficou sendo seu pai?...” (Pág.198, Lião menciona Lacan)

Tal vez, a verdade sobre seu irmão, em que ela acredita não seja a tal, “... morreu nenenzinho... não tinha nem um mês, não chegou nem a isso. O médico disse que ele não tinha viabilidade. Um sopro no coração... “ (Pág. 226). Tal vez como filha de uma mãe libertária, se reprima para não espelhar-se nela “... a raiz está fechada na custodia de ouro coberta com um pano dourado...” (Pág. 141, falando com irmã Clotilde).

Tal vez, como diz Simone de Beauvoir (1949), referindo-se à influência cultural e social a respeito do inicio da adolescência no menino e na menina. “O menino admira em seu velo crescente, promessas indefinidas, a menina fica confusa diante do drama natural e sem saída que marca seu destino. O pênis adquire, do contexto sexual, seu valor privilegiado, entanto que as circunstâncias sociais transformam a menstruação numa maldição. O primeiro simboliza a virilidade, o segundo a feminidade; como feminidade significa alteração e inferioridade, sua revelação é recebida com escândalo. A menstruação inspira horror à adolescente porque a precipita dentro de uma categoria inferior e mutilada. A dinâmica inconsciente supera toda possível liberação sexual, avanço social, luta pela mulher. Na adolescente reativa-se o complexo de castração com as angústias que despertam, produto de suas fantasias de ter sido castigada, podendo entrar em conflito entre seu desejo de ser mulher-adulta, assumindo sua atividade sexual, sua possibilidade de ser mãe, e seu desejo de permanecer criança, quiçá, porque ela supõe que assim será aceita pela mãe, especialmente, mas, também pelo pai, quem deseja continuar vendo-a como criança”.

O fato é que seu misticismo é melancólico, “... a desordem me deprime, irmã. Ah se eu pudesse me arrumar por dentro, tudo calminho nas gavetas ...” (Pág. 142, falando com irmã Clotilde), assim como seus medos são ilógicos “... nasci num tempo de tamanha violência... como gostaria de mandar minha palavra de equilíbrio, de amor ao mundo , mas sem entrar nele , lógico. Ficar de fora... bom é ficar olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante, as pessoas tão inofensivas na rotina. Comem e não vejo o que comem. Falam e não ouço o que dizem, harmonia total sem barulho e sem braveza. Um pouco que alguém se aproxime e já sente odores. Vozes. Um pouco mais e já nem é um espectador, vira testemunha. Se abre o bico para dizer boa noite passa de testemunha para participante. E não adianta fazer aquela cara de nuvem se diluindo ao largo porque nessa altura já puxaram a nuvem para dentro e a janela-guilhotina fechou rápido. Eram laços frouxos? Viraram tentáculos. Ah, que alegria quando fico aqui sozinha. Sozinha. Como chupar escondida um cacho de uvas...” (pág. 48). E sua obsessão, indescritível. Sua obsessão com a virgindade “...Virgo et intacta...” As vezes teme morrer assim “...o jardim vazio. Ela me interroga com seus olhos membranosos. Virgem também nos olhos, não não quero ficar assim, eu não! Ah, M.N., meu amado. Meu amado...” (Pág. ?) “... os orifícios menores acabam se fechando solidários com o principal ”res accesoria sequitur rem principalem” ... (Pág.142, lembrando Lia, quando fala com irmã Clotilde). Outras vezes sente ânsia por que esse momento chegue “... na hora certa, ele intuirá essa hora, vejo-o estender as mãos sabias. Aguçamentos, requintes nas pontas dos dedos limados até a carne como os de um arrombador de cofres se esmerando no tacto... um primeiro toque, o torcer leve dos botões para à direita, para a esquerda. Uma pausa. Mais um movimento que é quase só imobilidade e me abro de par em par, sem segredo...” (Pág. 184)

O mundo é fálico, está regido pelo falo, pelo poder, mas tanto o homem como a mulher nascem sob o regime da carência, daquilo que não se tem ou daquilo que não se é. Por tanto a rivalidade entre ambos não pode resolver-se, as mulheres querem falar, os homens querem parir, a mulher goza quando está grávida e este é um saber negado ao homem, este reclama de não participar na criação, como as mulheres através do parto. A mulher é a verdade que ele interroga para encontrar o segredo da criação, mas não interroga ao homem, o invoca como ideal de unidade. Não há revolução sexual que mova a linha de partição entre o homem e a mulher, nem a que divide à mulher. A briga por "esse poder" carece de sentido. (Lacan)

Neste inter-jogo fantasmático estabelece-se o vínculo mãe-filho, inter-jogo do qual o ser humano não pode escapar, tendo irremediavelmente conseqüenciais nos aspectos individual, intrafamiliar e social, no Ser “... em verdade vos digo que chegará o dia em que a nudez dos olhos será mais excitante que a nudez do sexo....” (Pág. 4)

Portanto, e enquanto não conheçamos os mistérios da mente, “a gente vai levando” como diz o Chico Buarque. Sempre aprendendo, principalmente: a arte do amor . Sim, se pode aprender a amar, e o amor é o "impulso mais poderoso que existe no homem. É bom lembrar que o amor também implica cuidado, responsabilidade, respeito e conhecimento, todos conformando uma interdependência mutua. Não amamos aquilo que não cuidamos. A pessoa que ama, responde. Respeito e preocupação pelo próximo, evitam que a responsabilidade degenere em dominação (Erich Fromm), ou como diz uma velha cancão francesa “o respeito só existe sobre a base da liberdade”

“... o local preferido (do capeta) é o ventre, quer dizer, toda a zona sul com as ramificações nas partes. Apertei as minhas. Quando M. N. entrar, eles vão sair aos pulos (os diabinhos). O exorcismo pelo amor.. .” Pág. 99, Lena falando com irmã Bula)

Angela Sánchez

Manilkara
Enviado por Manilkara em 10/12/2006
Código do texto: T314611
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