Perseu - A trajetória do herói

“Além disso, não precisamos correr sozinhos

risco da aventura, pois os heróis de todos os

tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é

conhecido em toda a sua extensão. Temos

apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde

temíamos encontrar algo abominável,

encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos

matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde

imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao

centro da nossa própria existência. E lá, onde

pensávamos estar sós, estaremos na companhia

do mundo todo” – Joseph Campbell

O presente trabalho visa tratar da trajetória do herói, tendo como objeto de estudo a história de Perseu. O enredo do personagem grego perpassa a história humana e nos chega em pleno século XXI com todo vigor.

A história de Perseu é o retrato da jornada do herói porque traz em si todas as características do caminhar que este ser tem que percorrer até alcançar a glória e se firmar como um nome na história da humanidade. Christopher Vogler, em A jornada do escritor, diz que “a caminhada do herói é nada menos do que um compêndio para a vida, um abrangente manual de instrução na arte de sermos humanos”.

Mas o que é um herói? No Dicionário Houaiss digital 2009, a palavra herói é assim descrita:

“Substantivo masculino: Mitologia - filho de um deus ou uma deusa com um ser humano; semideus; mortal divinizado após sua morte; semideus; Derivação: por extensão de sentido - indivíduo notabilizado por suas realizações, seus feitos guerreiros, coragem, abnegação, magnanimidade etc.; indivíduo capaz de suportar exemplarmente uma sorte incomum (por exemplo: infortúnios, sofrimentos) ou que arrisca a vida pelo dever ou em benefício de outrem; figura central (de um acontecimento, um período); pessoa que se distingue ou é centro de atenções; principal personagem de uma obra de literatura, dramaturgia, cinema etc. Uso: informal - indivíduo que desperta enorme admiração; ídolo”.

Perseu é filho do mais poderoso deus grego, Zeus. Ele é um homem que ultrapassou os limites humanos ao enfrentar as Górgonas com sagacidade e inteligência; arriscou a própria vida ao enfrentar a Medusa para que o rei da Ilha de Serifo não tivesse a oportunidade de se apoderar da mãe do herói, Dânae. Perseu não apenas arriscou sua vida em benefício da própria mãe, mas também de sua futura mulher, Andrômeda.

No capítulo "A saga do herói", do livro "O mito e o mundo moderno", Joseph Campbell diz, em entrevista a Bill Moyers, que o herói é alguém que deu a própria vida por algo maior do que ele mesmo:

“Há dois tipos de proeza que o herói pode fazer. Uma é a proeza física, em que o herói pratica um ato de coragem, durante a batalha, ou salva uma vida. O outro tipo é a proeza espiritual, na qual o herói aprende a lidar com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma mensagem. A façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo entre as experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade. Essa pessoa então parte numa série de aventuras que ultrapassam o usual, quer para recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir algum elixir doador da vida.

Normalmente, perfaz-se um círculo, com a partida e o retorno. Mas a estrutura e algo do sentido espiritual dessa aventura já podem ser detectados na puberdade.”

E foi na puberdade que Perseu saiu em defesa da mãe. Vogler diz que o herói sai de seu ambiente seguro e comum para se aventurar em um mundo hostil e estranho. Perseu traça o seu caminho desta maneira. Sai do conforto do ambiente familiar da ilha em que cresceu e segue em busca das Ninfas, comprovando seu destino de não ser um homem comum, mas um ser forjado na valentia e na bravura.

Campbell também fala dessa transição da criança-adolescente para a idade adulta.

“Nos rituais de iniciação das primitivas sociedades tribais, por meio dos quais uma criança é compelida a desistir da sua infância e a se tornar um adulto – para morrer, dir-se-ia, para a sua personalidade e psiquê infantis e retornar como adulto responsável. E essa é uma transformação psicológica fundamental, pela qual todo indivíduo deve passar. Na infância, vivemos sob a proteção ou a supervisão de alguém (...) Evoluir dessa posição de imaturidade psicológica para a coragem da auto-responsabilidade e a confiança exige morte e ressurreição. Esse é o motivo básico do périplo universal do herói – ele abandona determinada condição e encontra a fonte da vida, que o conduz a uma condição mais rica e madura”.

E é isso que Perseu faz, abandonou sua condição e seguiu seu caminho, dando o pontapé em sua iniciação. Junito Brandão, em seu livro "Mitologia Grega", volume III, capítulo II, diz que este é o grande momento da separação e da iniciação. “O herói se afasta do respaldo materno e vai mergulhar em grandes aventuras, em busca de sua libertação dos poderes inconscientes maternos”.

É importante lembrar que quem nasceu para ser herói já traz estas marcas do seu destino. Seu nascimento, conturbado, é sempre atribuído a uma deusa ou deus. Com Perseu não foi diferente. Basta lembrar que sua mãe foi fecundada por Zeus, que adotou a forma de uma chuva de ouro, sem esquecer que seu nascimento havia sido predito por um oráculo. Junito explica esta situação ao abordar o simbolismo da criança exposta, da câmera de bronze e da chuva de ouro.

“Muitos são expostos por força da predição de um oráculo ou por motivos outros como é o caso de Édipo e Perseu (...) e os quais, em geral, são filhos de deuses com mulheres mortais ou de deusas com homens ou ainda aparentados com divindades e que, por isso mesmo, sempre escapam da morte (...) Esses expostos, de qualquer forma, constituem uma ameaça aos pais, aos avô, ao rei e à própria comunidade. Assim sendo, (...) o significado da exposição converte-se num ordálio (calvário), no juízo de um deus, do qual, se a criança sair sã e salva, estará predestinada a grandes feitos e a um destino brilhante, sendo por este motivo ‘promovida’ enquanto expositor é castigado”.

No "Dicionário de mitologia grega" de Ruth Guimarães, é dito que o avô do herói, ao saber que o filho de sua filha o mataria, resolveu construir um quarto de bronze subterrâneo e lá a aprisionou com uma ama, tentando impedir que ela tivesse contato com algum homem. Mas esta ação de nada adiantou, porque Zeus, sob a forma de chuva de ouro, penetrou a câmara pela fenda do teto e fecundou a jovem donzela, gerando Perseu. Por alguns meses, Dânae e a empregada conseguiram esconder o pequeno, mas no final das contas o avô ouviu o choro do bebê. Foi inútil a filha dizer que o pai da criança era o deus grego Zeus. Acrísio não acreditou. Para ele, a filha tinha se entregado ao tio por parte de pai, chamado Preto. Acrísio decidiu então matar a ama e mandou fazer uma grande caixa de madeira, onde colocou a filha e o neto e jogou-os ao mar. A caixa flutuou e acabou sendo levada pelas ondas até a Ilha de Serifo. Os náufragos foram recolhidos por um pescador, que adotou o menino como seu filho. É comum o herói ser acolhido por um pai adotivo, seja este pobre, como o que criou Perseu, seja rico, como o de Édipo.

Como se vê, Perseu desde a infância, já mostrava todas as características de seu destino de herói. Perseu era uma ameaça para o avô. Ele passa por sua primeira prova como herói, sai vencedor da morte em tenra idade.

No final das contas, como Junito disse, aquele que expôs o herói acaba sendo punido. Acrísio realmente morre pelas mãos do neto. Mesmo sem querer, Perseu cumpre o oráculo: o herói decide participar dos jogos fúnebres organizados pelo rei de Larrissa; ao lançar um disco com muita força, acerta Acrísio, que estava na plateia de forma incógnita.

Junito diz, ainda, que a decisão de Acrísio colocar o pequeno Perseu e sua mãe numa caixa e jogá-lo ao mar tem um sentido religioso que transcende até mesmo o rito iniciático de passagem.

“O encerramento numa arca ou cofre traduz sentimentos que permeiam o mito do menino predestinado: aquele que entra numa arca e sai da mesma engrandecido. (...) A imagem dessa prisão probabilidade mínima sugere sensações muito vivas e claras: grande risco, probabilidade mínimas de salvação, mas de uma salvação triunfante, com a presença atuante da divindade. A inclusão numa arca configura um começo absoluto”.

Junito também fala do simbolismo de Perseu ter sido jogado na água; segundo o autor, é preciso levar em conta que a água pode ser considerada tanto uma fonte de vida quanto de morte.

“Fonte de vida e fonte de morte, criadora e destruidora, para os expostos funciona, quase sempre, como amníon, como invólucro, que guarda e protege, como um líquido amniótico. (...) Como filhos nascem da ‘água’, a arca simboliza o ventre materno, de sorte que o abandono nas águas representa diretamente o processo de nascimento ou de um nascimento catártico”.

Junito explica ainda a chuva de ouro em que Zeus se transmuta para fecundar Dânae. Para o professor de mitologia, a chuva simbolicamente representa o esperma do Céu fecundando a Terra.

“Nascendo da chuva de ouro, a sublimidade do menino não poderia ser mais bem caracterizado: a névoa, tombando do céu, sob a forma de chuva, e fecundando a terra, é símbolo do espírito. Dânae é uma mulher terrestre, configuração frequente da própria terra. A sublimidade está bem marcada, porque a chuva fecundante é de ouro: amarelo e brilhante, o outro é um símbolo solar. Perseu é, pois, o herói da terra, engendrado pelo espírito. O mito de seu nascimento o registra, desse modo, como um herói vencedor.”

Outra característica que o herói tem é de sempre receber a ajuda de um mentor; no caso de Perseu foram dois, Atená e Hermes. A palavra mentor tem sua origem na Odisseia: um personagem chamado Mentor, segundo Vogler, guia o jovem Telêmaco em sua jornada de herói. Na verdade, é Atená que o ajuda, assumindo a forma humana de mentora.

Vogler lembra que a relação entre o mentor e o herói é muito comum na mitologia, sendo um dos mais ricos valores simbólicos, porque representa o vínculo entre o filho e o pai, entre o discípulo e o mestre, o paciente e o médico, o ser humano e Deus:

“A função do mentor é preparar o herói para enfrentar o desconhecido. Pode lhe dar conselhos, orientação ou um equipamento mágico. Obin Wan, em Guerra nas Estrelas, dá a Luke a espada de luz do pai dele, que será necessária nas batalhas contra o lado negro da Força. (...) Entretanto, o mentor só pode ir até um certo ponto com o herói. Mais adiante, o herói deve ir sozinho ao encontro do desconhecido. E, algumas vezes, o mentor tem que lhe dar um empurrão firme, para que a aventura possa seguir em frente.”

Campbell também fala do arquétipo do mentor, só que nomeia este personagem de o Velho Sábio ou a Velha Sábia. Outro que também enfatiza a extrema importância deste arquétipo é o russo Vladimir Propp, em "A morfologia do conto maravilhoso", em que analisa a função do mentor como a de um doador ou provedor do herói.

Perseu recebeu de Atená e Hermes instrumentos mágicos para matar a Górgona: uma espécie de alforje denominado quibisis, cuja finalidade era guardar a cabeça da Medusa; sandálias com asas; o capacete de Hermes, que o tornou invisível; uma afiada espada de aço, também dada pelo deus ao herói; e o escudo de bronze, emprestado de Atená e polido como um espelho.

Junito diz que a assessoria dos deuses para Perseu se deve a sua origem sobre-humana, “o que lhe conferia a timé e a areté, facilmente se deixava dominar pela hýbris, tornando-se presa fácil do desconhecido”.

“Para evitar ou ao menos refrear os ‘desmandos heróicos’ e sobretudo para dar-lhe respaldo na execução de tarefas impossíveis, todo herói conta com o auxílio divino. Perseu terá por coadjuntores celestes Hermes e Atená, que lhe fornecerão os meios necessários para que leve a bom termo a promessa imprudente feita a Polidectes. Conforme o conselho das divindades, o filho de Dânae deveria procurar as fórcidas, isto é, as três filhas de Fórcis. (...) Esses três monstros, denominados também de Greias, quer dizer, as Velhas, possuíam em comum apenas um olho e um dente. (...) Era imprescindível que Perseu descesse ao país das sombras eternas, porquanto somente as Greias conheciam a rota que levava ao esconderijo das Górgonas e tinham exatamente a incumbência de barrá-la a quem quer que fosse. Mais importante ainda: eram as únicas a saber onde se escondiam determinas ninfas, que guardavam certos objetos indispensáveis ao herói no cumprimento de sua missão.”

Vogler afirma que o ideal de heroísmo expressou-se em Perseu, considerado um matador de monstros agraciado não apenas com um presente, mas vários, dados pelos dois deuses gregos. “Na maioria das histórias, isso seria um exagero. Mas Perseu é entendido como o paradigma de todos os heróis, por isso compreende-se que ele seja presenteado pelos deuses, seus mentores em sua busca”.

Perseu segue jornada de herói e, munido de tantos presentes especiais, vai ao encontro do seu desafio: matar a Medusa, a única Górgona mortal, e levar sua cabeça até o rei da Ilha de Sérifo, para que, assim, ele não se apoderasse da mãe do herói. Vogler assim descreve a aproximação do herói na Caverna Oculta, a fronteira de um lugar perigoso.

“Às vezes subterrâneo e profundo, onde está escondido o objeto de sua busca. Com frequência é o quartel-general do seu maior inimigo, o ponto mais ameaçador do Mundo Especial, a Caverna Oculta. Quando o herói entra neste lugar temível, atravessa o segundo grande limiar. Muitas vezes, os heróis se detêm diante do portal para se preparar, planejar e enganar os guardas do vilão. Esta é a fase da Aproximação. Na mitologia, a Caverna Oculta pode representar a terra dos mortos. O herói pode ter que descer aos infernos para salvar a amada (Orfeu) ou a uma caverna para enfrentar um dragão e ganhar um tesouro (Sigurd, um dos mitos noruegueses) ou a um labirinto para se defrontar com um monstro (Teseu e o Minotauro)”.

A Medusa terá que ser enfrentada e morta utilizando as armas dadas, mas seu extermínio não se dará apenas com os instrumentos mágicos. O herói também deverá utilizar astúcia e inteligência para cumprir sua tarefa. Perseu sabe que precisará driblar as duas Górgonas imortais e ser suficientemente arguto para não se deixar envolver pelo olhar paralisante da Medusa. Ele sabe que não poderá olhá-la diretamente nos olhos. O escudo de bronze, polido, dado por Atená, será utilizado como um espelho, para que o herói possa matar o monstro, sem se deixar petrificar.

É interessante a análise da simbologia da Medusa feita por Junito Brandão. Segundo ele, o monstro que petrifica quem o olha simboliza a imagem deformada daquele que contempla a Medusa, “uma auto-imagem que petrifica pelo horror, ao invés de esclarecer de maneira equânime e sadia”.

Conclusão

Ao término deste trabalho é possível compreender por que, passados tantos séculos e até milênios, a figura do herói ainda se impõe nos dias atuais. As palavras de Vogler demonstram o quanto a jornada do herói ainda é algo importante para a humanidade, porque o modelo não apenas descreve um padrão nos mitos, mas também é um mapa muito exato do território que se deve percorrer para ser não apenas um escritor, para quem almeja isso como eu, mas também um ser humano melhor.

Campbell, citando a obra de Otto Rank, "O mito do nascimento do herói", afirma “que somos todos heróis ao nascer, quando enfrentamos uma tremenda transformação, tanto psicológica quanto física, deixando a condição de criaturas aquáticas, vivendo no fluido amniótico, para assumirmos, daí por diante, a condição de mamíferos que respiram o oxigênio do ar, e que, mais tarde, precisarão erguer-se sobre os próprios pés. É uma enorme transformação, e seria, certamente, um ato heroico, caso fosse praticado conscientemente. E existe aí também um ato heroico de parte da mãe, responsável por tudo isso”.

Por isso, os heróis mitológicos e seus arquétipos ainda podem ser encontrados em diversas expressões artísticas, como gibis, filmes, novelas, romances e contos. Esses mesmo heróis passam do “mundo virtual e mitológico” e se materializam em figuras como um piloto de Fórmula 1, como Ayrton Senna; um cantor pop, como John Lennon ou Roberto Carlos, apenas para citar alguns exemplos. Enquanto o homem for homem, precisaremos de heróis, que nos ajudam e incentivam a cumprir nossa jornada estafante e monótona. Eles são exemplos que devemos seguir como um farol no contínuo crescimento e conhecimento de nós mesmos.

Bibliografia

GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da mitologia grega. Editora Cultrix, São Paulo, 2009.

PROPP, Vladmir. Morfologia do conto maravilhoso. Tradução Jasna Paravich Sarhan, Organizado por Boris Schnaiderman, 2.ed.. Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2006.

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor. Tradução de Ana Maria Machado. 2.ed.. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006.

Internet http://www.culturabrasil.pro.br/campbell.htm, acessado em 20 de fevereiro de 2008.

CAMPBELL, Joseph. O mito e o mundo moderno. Entrevista concedida a Bill Moyers.

Carla Giffoni
Enviado por Carla Giffoni em 27/06/2011
Reeditado em 22/07/2012
Código do texto: T3060952
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