Análise Literária do soneto Ao Terceiro Dia de Jacqueline K.

Leio poesia quase que diariamente, busco novas leituras de textos conhecidos, relacionando textos que se cruzam pela forma, pelo conteúdo seja por assimilação ou mesmo antagonismo.

Busco sempre nas minhas opções incluir autores novos, como forma de atualizar a minha percepção de como está sucedendo a captura da poesia pelos novos poetas. O exercício é duro, mas às vezes apresenta suas compensações.

Jacqueline K é um precioso talento que conheci no Recanto, dona de uma escrita original e de um desassombro que nos deixa estimulado a ler e a compor. Dona de uma personalidade que proporciona ainda mais atenção a sua escrita. Hábil no exercício de esgrima e intensa e fluida na sua expressão. Se tudo isto for pouco, ela ainda é natural do Recife, a Meca da poesia brasileira!

Como forma de prestigiar a poesia que aprecio sem nenhum favor, resolvi apresentar algumas notas sobre um soneto desta Pernambucana arretada.

Ao Terceiro Dia.

Sobram sombras, agruras e certezas

Vãs madrugadas presas sob o dia!

Restam mortes nas pálpebras, represas

Das lágrimas sangradas onde eu via:

Eras tu pão e vinho sobre a mesa

Da beleza, a mais terna picardia!

Fera faminta, a boca e a língua tesa

Que lampeja e os tremores, alivia!

E o alívio da fome que atormenta

Num segundo brutal foi feito vão!

E foste então terrível e purulenta

Chaga aberta na palma de uma mão

Ferida e pus que aos vermes alimenta:

Saudade em mim, que grita aos olhos: Nããão...

Jacqueline K.

Observemos abaixo o padrão métrico:

Ao Terceiro Dia.

So/ bram/ som/ bras,/ a/ gru/ ras/ e/ cer/ te/ (zas) H - 2-3-6- 10.

Vãs/ ma/ dru/ ga/ das/ pre/ sas/ sob/ o/ dia!/ H – 4-6-10.

Res/ tam/ mor/ tes/ nas/ pál/ pe/ bras,/ re/ pre/ (sas) H – 2-3-6-10.

Das/ lá/ gri/ mas/ san/ gra/ das/ on/ de eu/ via:/ H – 2-6-10.

E/ ras/ tu/ pão/ e/ vi/ nho/ so/ bre a/ me/ (sa) H – 4-6-8-10.

Da/ be/ le/ za, a/ mais/ ter/ na/ pi/ car/ dia!/ H – 3- 6 -10.

Fe/ ra/ fa/ min/ ta, a/ bo/ ca e a/ lín/ gua/ te/ (as) H – 4- 6- 8- 10.

Que/ lam/ pe/ ja e os/ ter/ mo/ res,/ a/ li/ via! H -3 -6 -10.

E o/ a/ lí/ vio/ da/ fo/ me/ que a/ tor/ men/ (ta) H – 3 – 6- 10.

Num/ se/ gun/ do/ bru/ tal/ foi/ fei/ to/ vão! H – 3- 6- 8- 10.

E/ fos/ te en/ tão/ te/ rrí/ vel/ e/ pu/ ru/ len/ (ta) T -2 – 4- 6 -11.

Cha/ ga a/ ber/ ta/ na/ pal/ ma/ de u/ma/ mão/ H – 3- 6- 10.

Fe/ ri/ da e/ pus/ que aos/ ver/ mes/ a/ li/ men/ (ta:) H -2 -4- 6- 10.

Sau/ da/ de em/ mim,/ que/ gri/ ta aos/ o/ lhos:/ Nããão.../ Pentâmetro Iâmbico – 2- 4- 6- 8- 10.

Jacqueline K.

Observando os aspectos métricos, nota-se uma atenção na manutenção do ritmo e na freqüência estrutural das estrofes há uma simetria que perpassa todo o conjunto onde as subtônicas auxiliam notadamente na cadencia escolhida pelo poeta.

Os versos ímpares são agudos e apresentam uma ocorrência menor de subtônicas que reforçará a prolação da última sílaba. Os versos pares são graves e apresentam uma distribuição mais uniforme de tonicidades criando versos de sonoridade uniforme e ritmo ascendente. Chamo a atenção para a chave de ouro que se utiliza de pentâmetro iâmbico, gerando uma declamação de cadencia mais marcada criando a tensão necessária para o desfecho apresentado.

Cabe anotar uma transgressão métrica de fácil solução, o verso onze é hendecassílabo, a conjunção aditiva aplicada deveria ser elidida e substituída por uma vírgula deixando assim o verso na extensão exata.

Considerando os aspectos sonoros, as aliterações exploram ocorrências expressivas na construção da sonoridade. A primeira estrofe abre seus versos com nasalidades criadas pela bilabial /m/ que no verso três recorta com a bilabial /p/ criando um efeito seco e acelerado.

A segunda estrofe utiliza do segmento rítmico como alternância para explorar a sonoridade. Nesta estrofe os versos ímpares têm tonicidade em quarta e sexta sílabas e os versos pares em terceira e sexta realizando um martelo puro e um martelo toante em versos masculinos.

A realização dos tercetos mantém a estrutura dos quartetos com sonoridades precisas onde se destaca a sonoridade nasal dos versos em todos os tercetos com exceção do último verso que concentra toda expressividade na última sílaba. Cabe anotar uma breve cacofonia no verso doze “uma mão”, que conforme a prosódia do declamador pode comprometer ou não o poema.

Observando a aplicação na construção dos versos há a utilização contínua do encadeamento (enjambement), utilização de pontuação exclamativa como elemento de tensão para marcar a declamação e a utilização moderna dos dois pontos apresentando elementos como enumeração.

A anotação sintática é rigorosa, estaria perfeita, não fosse uma vírgula fora de lugar no verso oito, apartando sujeito e verbo, mas uma transgressão aceitável como recurso de licença, notando que esta pausa aumenta a gravidade na parte final do verso.

A parte estilística é riquíssima, desde os efeitos ecóicos em “Sobram sombras” (v.1); “mesa da beleza” (v.5 e 6), passando pela metonímia “grita aos olhos” (v.14), pelas metáforas “Restam mortes nas pálpebras” (v. 3) e “represas das lágrimas sangradas” (v.3 e 4); o que melhor define estilisticamente o poema é o uso parcimonioso dos recursos, evitando carga desnecessária para o percurso pretendido, quando alguns poetas adjetivam demais e substantivam de menos indefinindo a um só tempo sujeito e eu lírico.

Relacionando forma e conteúdo, temos um soneto decassílabo predominantemente heróico, cujo tema se relaciona na superfície com a liturgia cristã onde Cristo ao terceiro dia ressuscitou. O verso cinco “Eras tu pão e vinho sobre a mesa”, corpo e sangue conforme a mitologia cristã recria a cena da Santa Ceia que adiante será recriada na liturgia como a eucaristia, cheia de significados.

O verso que segue traz uma das chaves deste soneto, “Da beleza, a mais terna picardia!” (v.6), picardia é a única palavra anotada em todo poema que não tem aplicação cotidiana, o seu significado mais conhecido é esperteza, malandragem, aqui, porém é possível imaginá-la como fraude, o sacrifício sendo apreendido como caminho para a ascenção e justificativa para o opressor.

A chaga aberta na palma da mão corrobora tudo o que anotei anteriormente, mas distante desta relação canônica da superfície do texto a todo um jogo de luzes e sombras onde é necessário relacionar em cada leitura os valores que vão sendo destacados na leitura.

Vejamos: a primeira estrofe traz nas suas dimensões de maior profundidade o encadeamento do tempo, a realização existencial que diz que todos passarão que a morte caminha conosco e os sacrifícios acontecem a todo tempo inundando nossos olhos de mortes e lágrimas.

A segunda estrofe concentra toda a energia e gravidade do poema, desde a ironia posta na figura da eucaristia, logo em seguida desmascarada como fraude, “picardia”; verifico uma relação de causalidade entre as relações entre fome, boca e língua, ampla e subjetiva, onde as leituras poderiam conjeturar desejo, necessidade, linguagem, palavra e mesmo silêncios, porém ao meu juízo, cogito uma forma de oração ou rito eucarístico, como comer ou mesmo beijar.

O alívio que está reiterado no verso nove revela-se passageiro e se revela na culpa que permeia todo este movimento final.

Esta é a leitura que realizei neste primeiro momento, tinha curiosidade de pousar os olhos com mais vagar, analisar as estruturas sonoras, o modelo de versificação e colher a reação diante das colisões vocálicas.

Depois de olhar a superfície bem desenvolvida, com relações claras e situações bem definidas, constatei uma condução firme, porém suave, um léxico maduro e precioso. O poema flui sem provocar cansaço, oferece as rotas para seu desvendamento, relaciona com a essência cáustica e dramática do eu lírico e se aproveita de forma positiva e diligente das imagens de senso comum para tecer sua própria abordagem realizando uma relação de empatia a qual ninguém passa indiferente.

Propositadamente abdicarei de fazer as relações espaciais e a análise dos verbos, é um costume que tenho de deixar algo a dizer para que outros mais possam levar adiante novas leituras sobre o poema.

* A publicação desta análise foi possível mediante a autorização da autora do soneto, a quem sou grato pela oportunidade.