As vidas “secas” dos sertanejos: identidades “reveladas” por Graciliano Ramos

O vocábulo sertão significa, segundo o dicionário Magno (p.807), uma “região sem cultivo ou lugar longe de povoação ou de regiões cultivadas”, ou seja, um grande deserto incivilizado. Essa palavra pode também derivar de deserto/desertão/sertão. Apoiando-se nessa hipótese, tem também uma ligação aos atributos de despovoamento, aridez, comum aos dois vocábulos, deserto e sertão. Partindo dessa idéia, visualizamos que o sertão sempre esteve ligado a significados negativos, a espaços distantes e sem civilização.

O Nordeste, bem como o nordestino, é, acima de tudo, um objeto discursivo. Embora o sertão corresponda a mais da metade do território, a região a que convencionalmente se designa como Nordeste se constitui de grande diversidade geográfica, o que implica uma pluralidade de aspectos relativos a clima, vegetação, atividades econômicas e hábitos culturais. O que se destaca na definição de objeto discursivo se refere a um conjunto de relações traçadas historicamente entre processos econômicos e sociais, instituições, tipos de classificação e modos de caracterização que permitem a definição desse objeto num campo de exterioridade, pode-se dizer que todo e qualquer discurso segue um conjunto de coerções ditadas historicamente.

Desse modo, como qualquer outro objeto de discurso, a “identidade nordestina” se apresenta não como resultado de uma simples relação natural e absoluta entre linguagem e mundo, como a imagem fiel da realidade, mas sim como um discurso, construído a partir de um bojo heterogêneo de práticas sociais e culturais e que têm seu funcionamento a partir das condições de sua enunciação, condições estas que determinam, através de mecanismos disciplinares, o que pode ou não ser dito. Porém, “todo discurso precisa medir e demarcar um espaço onde se enuncia. Antes de inventar o regionalismo, as regiões são produtos deste discurso” (ALBUQUERQUE Jr., 1999, p.24). Segundo este autor, há emergência tanto de visibilidade quanto de dizibilidade de novos conceitos, uma nova maneira de se pensar e produzir esse espaço que se denomina região, mas não como uma homogeneidade, como uma unidade presente na natureza como é comum se definir.

O que interessa realmente é buscar as regularidades discursivas, determinadas a partir das relações de poder implicadas em condições amplas e específicas de enunciação, e os procedimentos de controle, que operam a seleção e organização do que se pode dizer, ou do que se pode mostrar sobre o Nordeste, em determinado contexto, bem como o que se exclui de dizer ou de mostrar. Logo, dizer-se nordestino não é dizer necessariamente a verdade sobre o Nordeste, mas sim assumir uma posição enunciativa que remete a um determinado discurso sobre a região. Ou ainda, como propõe Zaidan Filho (2001):

...a região não é uma positividade geográfica, mas, ao contrário, um produto sociocultural das disparidades geográficas no processo de desenvolvimento capitalista (...) obra de publicistas, pensadores, produtores culturais e lideranças políticas na construção simbólico-cultural da “região” ou da “identidade regional”. (p.43)

Essa construção simbólico-cultural, através desses mecanismos de controle e em seus múltiplos modos de representação (oficiais e marginais), incide sobre cada indivíduo com o peso de uma totalidade absoluta. Hall (2002, p.50-51) também concebe a idéia de identidade como um discurso constituído de sentidos com os quais é possível que os indivíduos se identifiquem ou não. O autor trata da identidade nacional e/ou regional como uma “comunidade imaginada”, construída por histórias, memórias e imagens que são legitimadas pelo poder da tradição, através de instituições e organismos hegemônicos numa certa ordem, e que se apresentam como um todo unificado, também representado como

...não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional (e regional) busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional (ou regional). (HALL, 2002, p. 59)

A representação homogênea de uma identidade nordestina se observa, por exemplo, na predominância de uma temática no discurso regionalista dominante sobre o Nordeste: a seca no sertão. Esse discurso, além de restringir a região ao território sertanejo, também é pautado numa visão negativa. Conforme salienta Castro (2001), há uma unificação de discursos sobre a natureza semi-árida e a seca, unificação essa que fundamenta um discurso hegemônico sobre a região, em que se apresenta a dualidade natureza versus sociedade; nesse discurso, “a natureza semi-árida é o sujeito, e a sociedade, seu objeto, instituindo a perspectiva da sociedade vitimada por seu meio” (p.105).

Esse olhar homogêneo e pejorativo sobre o Nordeste e, conseqüentemente, sobre o sertão, tem sua constituição a partir de trajetos interdiscursivos que remontam ao processo de colonização (em que se comparava a economia do sertão em oposição ao litoral açucareiro) e são retomados no início do século XX, por exemplo, em trabalhos de historiadores e também pela literatura, através de autores como Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, entre outros, agora numa vertente crítica, ou seja, buscando colocar em pauta os enganos e desenganos do meio e do homem do sertão nordestino.

Essa retomada pode ser compreendida como pertencendo ao que Albuquerque Jr. (1999) chama “discurso regionalista de inferioridade”. Trata-se de um modo de mostrar ou revelar uma região que resulta do embate de forças entre um regionalismo de superioridade e um regionalismo de inferioridade, em que se comparava a economia do sertão em oposição ao litoral açucareiro. Para Albuquerque Jr, a

... escolha de elementos como o cangaço, o messianismo, o coronelismo, para temas definidores do Nordeste, se faz em meio a uma multiplicidade de outros fatos (...). A escolha, porém, não é aleatória. Ela é dirigida por interesses em jogo (...). A questão da identidade nacional põe, na ordem do dia, a questão das diferentes identidades regionais no país, que deviam ser destruídas para uns e reafirmadas para outros... (idem, p. 49)

O Nordeste é “lido” através da repetição do tema da seca, associada ao flagelo natural. No Brasil, o termo sertão sempre carregou consigo uma forte dose de ambigüidade. No século XVIII, por exemplo, designou as terras do interior, o lugar de desvio das povoações, domínio do desconhecido. A partir de então, seu sentido encontra-se articulado por uma dupla idéia: de um lado, a formação de um espaço interno, a perspectiva do interior; de outro, a configuração de uma realidade política, o deserto, a ausência de povoamento, a inexistência da ordem. São situações historicamente localizáveis que, na literatura, são problematizados e denunciados.

Quando Graciliano Ramos compôs “Vidas Secas”, em 1937, estava diante de uma República sem a vocação da incorporação política e social de setores da sociedade que, até então, viviam inteiramente à sua margem. Contudo, a poética da escassez que ele introduziu na tradição do republicanismo brasileiro parece atuar em parceria com o ideal de modernização que radicaliza a perspectiva do Estado como exclusivo agente de realização dos processos de unificação do país e de construção da nação. Ou como diz Rubens Alves Pereira, revela tanto a opressão que a natureza, através do clima impõe ao sertanejo, quanto o modelo político que se vive:

O sertão nordestino da contenção verbal de Graciliano Ramos revela, sem eufemismos, a ação opressora do clima e de um modelo sócio-cultural e político adverso, diferentemente do sertão mineiro de Guimarães Rosa, um universo farto de mito e linguagem, um entrelugar textual que articula narração antropológica e transfiguração poética e reflexão filosófica. (2001, p. 77).

Segundo o autor, utilizando Bosi, Graciliano não “sonha os sonhos” de suas personagens, já que tem uma visão materialista, e mostra que a sabedoria popular deixa-se levar pela providência, limitando-se pelo viés do cotidiano, respeitando as “leis imutáveis da natureza”. Sendo assim, o sonho para Graciliano, “sob a luz inclemente do sol, transforma-se em miragem; a incauta esperança, sob o crivo de uma perversa realidade sócio-econômica, desanda em fraca consciência, alienação” (idem p.78). Vários trechos do livro “Vidas secas” nos remetem a essa idéia, como no trecho abaixo, onde os pensamentos de Fabiano misturam-se a voz do narrador:

Fabiano, um desgraçado, um cabra, dormia na cadeia e agüentava zinco no lombo. Podia reagir? Não podia. Um cabra. Mas as contas de sinhá Vitória deviam ser exatas. Pobre sinhá vitória. Não poderia nunca estender os ossos numa cama, o único desejo que tinha. Os outros não se deitavam em camas? Receando magoá-la, Fabiano concordava com ela, embora aquilo fosse um sonho. Não poderiam dormir como gente. E agora iam ser comido pelas arribações. (RAMOS, 1996, p.113)

Outro ponto relevante no livro é a ausência de marcos históricos claros; essa ausência indica os problemas de exclusão política e social embutidos nos pressupostos de construção da identidade nacional, além de apontar para a angustiante improdutividade de um tempo que se arrasta e deixa tudo exatamente como estava, como se não fosse possível encontrar uma solução. Por conta de seus personagens imersos na enorme improdutividade de um tempo incapaz de alimentar os procedimentos da modernização brasileira e, simultaneamente, necessitar de sentido, em “Vidas Secas”, o sertão de Graciliano Ramos deixou de significar apenas o deserto em que alguns acreditavam, para transformar-se em uma condição particular de desterro, condição esta produzida pela República brasileira no interior do próprio país.

A realidade desse sertão, dolorosa e profundamente injusta, vai se enraizando lenta e pesadamente no cotidiano dos personagens, como naquela tarde em que o mulungu do bebedouro cobriu-se com aves de arribação, revelando um mau sinal, ou seja, que a seca estava chegando e Fabiano antevia o sofrimento:

Pestes. Quando elas desciam do sertão, acabava-se tudo. O gado ia finar-se, até os espinhos secariam. Suspirou. O que havia de fazer? Fugir? Fugir de novo, aboletar-se noutro lugar, recomeçar a vida. Levantou a espingarda, puxou o gatilho sem pontaria. Cinco ou seis aves caíram no chão (...). Fabiano sentou-se desanimado na ribanceira do bebedouro... (Idem, p.110)

É visível que a imagem sobre o Nordeste e, conseqüentemente, sobre os nordestinos, particularmente o sertanejo, foi se firmando de forma preconceituosa e criando raízes difíceis de serem extirpadas.

Enquanto práticas significantes, os estereótipos não se limitam a identificar categorias gerais de pessoas, mas faz julgamentos a respeito do seu comportamento, sua visão de mundo e sua história, é isto que ocorre em relação aos sertanejos, que acabam sendo vistos como pobres coitados, vítimas da região onde vivem. A visualização sobre o Nordeste acaba por se concentrar na descrição da miséria e dos horrores proporcionados pela seca. Essa visualização, além de estar no imaginário das pessoas, está registrada em livros de história, de geografia e mesmo na literatura, como já foi dito, e “Vidas Secas” nos faz visualizar esse cenário logo no início da narrativa:

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem prosseguira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem do juazeiro apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala. (RAMOS, 1996, p.09)

Essas descrições, entre tantas outras, fazem emergir uma tônica de sofrimento, e de abandono também pelas autoridades políticas governamentais. Quando lemos um livro que fala sobre o sertão/sertanejo, observamos que o tipo ali narrado é sempre um infeliz, um miserável, muitas vezes incivilizado, bruto e ao mesmo tempo humilde como a terra, como o meio onde sobrevive, mas forte e capaz de agüentar a dureza da seca, como se absorvesse a natureza do lugar. Esse estereótipo acaba sendo a identificação do sertão-nordeste, consequentemente, do sertanejo.

Entretanto, identidades são identificações em curso, ou seja, em permanente mutação, “não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação” (SANTOS, 1996, p.135). Sendo assim, “qualquer” identidade está em constante transformação, não sendo correta a aceitação identitária, geralmente discriminatória, que se faz do sertanejo/nordestino, já que esta identidade passa por processos de identificação aos quais se é submetido e que vão sendo cristalizados por um poder instituído ao longo do tempo.

Historicamente, através de determinadas práticas sociais e relações de poder, os objetos de discursos acabam sendo revestidos de diferentes conceitos, ou seja, se firmam através de avaliações e juízos de valor. Esses modos de representação, tanto oficiais quanto marginais, incidem sobre os indivíduos com uma totalidade absoluta. Sendo assim, criou-se uma idéia sobre a região, sobre a natureza semi-árida e seca, como inferior (com índices de desenvolvimento humano inferior), uma idéia que foi se naturalizando e se firmando; esta caracterização discriminatória é a que permanece enquanto identidade do sertanejo (nordestino).

Como já foi dito, a identidade nordestina se apresenta como um discurso constituído a partir da heterogeneidade de práticas sociais e culturais. Em relação ao nordestino, recortando especificamente no sertanejo, podemos ver que o discurso sobre a região, geograficamente falando, acabou consolidando-os como uma coisa só: sertão e sertanejo, como uma identidade intrínseca. Identidade essa que foi construída por histórias, memórias e imagens que foram se legitimando através do tempo. Estes discursos negativos sobre o sertão estão ligados, geralmente, à questão da miséria que a natureza faz acontecer sobre a terra e sobre o homem: a terra é dura, é seca, é miserável, o homem que nela vive absorve essa dureza, essa secura e vive uma vida miserável, com poucas perspectivas, onde falta tudo, menos a coragem de continuar a viver, menos a esperança de que tudo vai melhorar quando a chuva cair.

A natureza molda a terra que molda a vida que modifica o homem. Neste contexto, a dualidade natureza versus região, coloca a natureza como elemento responsável pela dureza da terra, pela história de luta pela sobrevivência que molda a vida daqueles que vivem no sertão nordestino. Fabiano, protagonista de “Vidas Secas”, é um exemplo do que a terra, especificamente esta terra, pode fazer com o homem.

Discursos, histórias, memórias, natureza, tudo isso contribuiu para se formar uma identificação do nordeste, não apenas da região a que se chama sertão. Também os discursos literários foram se moldando a um viés mais crítico da realidade brasileira e apresentando um outro olhar, uma reflexão política sobre o tema da “seca do sertão”. A partir da década de 30, quando essa temática passou a ser inserida na literatura, foi que realmente se pode ter acesso a obras literárias que fizeram “viagens” por esta terra “miserável” e dialogaram com a vida dos seus habitantes. Graciliano Ramos, com o livro “Vidas Secas”, utiliza sua própria interpretação sobre o sertão e o faz de forma tão especial que torna visível o invisível, tira a história do sertão do esquecimento e do oculto; a narrativa penetra mansamente no interior dos personagens e nos faz conhecê-los, sentir intensamente a sua humildade ingênua e forte, dura e doce, seca e suave.

Nessa narrativa, o autor identifica o sertanejo através de Fabiano, um homem rude, que tem pouco conhecimento, um “quase animal” que vive em busca de uma situação de vida melhor. Ramos construiu ficcionalmente a realidade psicológica do homem do sertão através desse personagem, delineando a formação de sua identidade através de uma trajetória de vida, onde a seca e a falta de contato com outras pessoas o coloca numa situação de quase isolamento e desumanização. É um homem marcado pela imagem da ignorância e “aparentemente” avesso à educação; para ele era importante que seus filhos aprendessem a trabalhar, a lidar com aquela terra onde viviam:

Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar o gado. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não calejassem, teriam o fim de seu Tomás da Boladeira. Coitado. Para que lhe servira tanto livro, tanto jornal? Morrera por causa do estômago doente, das pernas fracas. (RAMOS, 1996, p. 24)

É percebível na narrativa a analogia que o autor faz entre a terra e o homem que nela vive, porém, não como um discurso preconceituoso. Pode-se afirmar que sua narrativa não é intencionalmente negativa, é apenas realista e, sob a minha ótica, docemente lírica. Entretanto, a leitura da obra não apaga a visão que se tem sobre o sertanejo ou nordestino, como pessoa ignorante, indiferente ao conhecimento, um “desgraçado”, que está apenas em busca de água, comida, de uma vida melhor e mais digna.

A situação de dificuldades pelos quais passam o sertanejo acaba sendo vista como o elemento que o torna um indivíduo incapaz de grandes realizações, com mais dificuldades para adquirir conhecimento, cujo local de pertença lhe castra a inteligência e lhe traz dificuldades de aprendizagem, torna-lhe automaticamente um ser inculto. Graciliano, através de Sinhá Vitória, “aborta” essa visão, pois a exibe com uma natural inteligência, admirada inclusive pelo marido Fabiano, que sempre a procurava para resolver algum problema que necessitava de raciocínio:

Como era que sinhá Vitória tinha dito? A frase dela tornou ao espírito de Fabiano e logo a significação apareceu. As arribações bebiam a água. Bem. O gado curtia sede e morria. Muito bem. As arribações matavam o gado. Estava certo. Matutando, a gente via que era assim, mas sinhá Vitória largava tiradas embaraçosas. Agora Fabiano percebia o que ela queria dizer. Esqueceu a infelicidade próxima, riu-se encantado com a esperteza de sinhá Vitória. Uma pessoa como aquela valia ouro. Tinha idéias, sim senhor, tinha coisas no miolo. Nas situações difíceis encontrava saída. (RAMOS, 1996, p.109)

Nem mesmo a modernidade conseguiu (ainda) apagar essa idéia preconceituosa sobre a identidade do sertão/nordeste brasileiro. Cada historiador, cada escritor foi construindo ou tentando desfazer essas visões sobre o sertanejo, alguns, infelizmente, até reforçou essa idéia, mesmo que não tenha tido a intenção de fazê-lo, é como se houvesse vários nordestes no Brasil.

As questões sobre identidade sempre foram, de certa forma, um “incômodo” na vida dos brasileiros, parece que existe um desequilíbrio identitário na formação da identidade nacional. O sertão está intrinsecamente preso a este questionamento, pois parece que “dizer” a identidade nordestina é quase uma “obsessão” de historiadores, literatos, críticos e mesmo da população que se encontra nas regiões consideradas “melhores”, mais ricas, mais cultas. Entretanto, identidade pode ser vista como uma palavra subjetiva, pode tanto estar voltada para a individualidade quanto para a coletividade, talvez seja essa tensão que corrobore para essa “preocupação” que gira em torno da identidade do sertanejo. Podemos dizer que a “cultura de um dado grupo social não é nunca uma essência, é uma autocriação...” (SANTOS, 1996, p.148), isto é, a cultura do sertanejo não se esgota nos sertanejos, mas num repertório de vivências: de olhares, de individualidades, de problemas sociais, econômicos, climáticos, religiosos, pessoais.

A leitura de “Vidas Secas” pode levar à construção imagética de um sertão apenas empobrecido e miserável, que nada mais tem a oferecer; porém, não se pode limitar essa região apenas a essa singularidade imagética, mesmo que essa ainda seja a realidade brasileira: o nordestino, especialmente, o nordestino-sertanejo, ainda sendo o maior imigrante deste país por causa da sua vida de perdas e empobrecimento.

O nordestino é um homem que, como qualquer outro, de qualquer região desse país, deseja ascender cultural e socialmente, ter uma vida digna. Porém, ainda é preciso contar com a “boa vontade” das instâncias de poder em melhorar a região nordestina, pois ainda existe muito sofrimento em virtude do clima dessa região, da irresponsabilidade com que é tratada a natureza do lugar, bem como pelo preconceito que continua “assombrando” a vida do nordestino. Graciliano Ramos, não mascara a realidade do sertanejo, mas a retrata poeticamente, mesmo que não tenha querido fazê-lo. A poesia está na esperança, na perseverança do homem em continuar migrando em busca de melhores dias, por isso “iriam para adiante, alcançariam uma terra desconhecida... E andavam para o sul, metidos naquele sonho... O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos” (RAMOS, 1998, p.126). Essa ainda é uma realidade no Brasil.

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