Análise Dos Poemas “Autopsicografia” E “Mar Português”

O estilo de Fernando Pessoa

- Características Temáticas

• Identidade perdida

• Consciência do absurdo da existência

• Tensão sinceridade/fingimento, consciência/inconsciência, sonho/realidade

• Oposição sentir/pensar, pensamento/vontade, esperança/desilusão

• Antissentimentalismo: intelectualização da emoção

• Estados negativos: solidão, cepticismo, tédio, angústia, cansaço, desespero, frustração.

• Inquietação metafísica, dor de viver

• Autoanálise

- Características Estilísticas

• Musicalidade: aliterações, transportes, ritmo, rimas, tom nasal (que conotam o prolongamento da dor e do sofrimento)

• Verso geralmente curto (2 a 7 sílabas métricas)

• Predomínio da quadra e da quintilha (utilização de elementos formais tradicionais)

• Adjectivação expressiva

• Linguagem simples mas muito expressiva (cheia de significados escondidos)

• Pontuação emotiva

• Comparações, metáforas originais, oxímoros (vários paradoxos – pôr lado a lado duas realidades completamente opostas)

• Uso de símbolos (por vezes tradicionais, como o rio, a água, o mar, a brisa, a fonte, as rosas, o azul; ou modernos, como o andaime ou o cais)

• É fiel à tradição poética “lusitana” e não longe, muitas vezes, da quadra popular.

• Utilização de vários tempos verbais, cada um com o seu significado expressivo consoante a situação.

- Figuras de Estilo

• Hipérbato – consiste na separação de palavras que pertencem ao mesmo segmento por outras palavras não pertencentes a este lugar:

Autopsicografia – última estrofe

• Perífrase – consiste em utilizar uma expressão composta por vários elementos em vez do emprego de um só termo:

Autopsicografia – “Os que leem o que escreve”

• Metáfora – consiste em igualar ou aproximar dois termos que pertencem à mesma categoria sintáctica mas cujos traços se excluem mutuamente.

Autopsicografia – “Gira, a entreter a razão/Esse comboio de corda”

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira a entreter a razão,

Esse comboio de corda

que se chama o coração.

O fingimento artístico

Autopsicografia (Intelectualização do sentir)

A julgar pelo título, estamos perante uma descrição da própria alma, apresentada em três estrofes, constituindo cada uma delas uma parte do poema:

Na primeira estrofe temos já, em síntese, o pensamento implícito no conjunto do poema. Sendo “um fingidor”, o poeta não finge a dor que não sentiu. Finge aquela de que teve experiência direta. Assim se afasta qualquer possibilidade de se interpretar o conceito de “fingimento” na poesia de Fernando Pessoa como completa simulação de uma dor ou de uma experiência emocional que não se teve. O reconhecimento dessa dor ou experiência emocional como ponto de partida da criação poética está bem expresso nesta primeira quadra. Todavia, a dor que o poeta realmente sente não é aquela que deve surgir na sua poesia. Pessoa não considerava a poesia a passagem imediata da experiência à arte, opunha-se a toda a espontaneidade. Por isso, exigia a criação de uma dor fingida sobre a dor experimental.

O poeta, desde que se propõe escrever sobre uma dor sentida, deve procurar representar, materializando-a, essa dor, não nas linhas espontâneas em que ela se lhe desenhou na sensibilidade, mas no contorno imaginado que lhe dá, voltando-se para si mesmo e vendo-se a si próprio como tendo tido certa dor (inteligibilização do sensível). Todavia, a metamorfose a que submete a sua dor, fingindo-a, representando-a, apenas altera o plano onde essa dor decorre. A dor real, ou seja, a dor dos sentidos, primeiro, é a dor imaginária (dor em imagens), depois. O poeta materializa as suas emoções em imagens susceptíveis de provocar no leitor (e o poeta é o seu primeiro leitor) o regresso à emoção inicial.

Sobre o modelo da sua dor inicial, ou melhor, originária, o poeta finge a dor em imagens e fá-lo tão perfeitamente que o fingimento se lhe apresenta mais real do que a dor fingida. Assim, a dor fingida transforma-se em nova dor (imaginária), cuja potencialidade de comunicação absorve todas as virtualidades da dor inicial. Tratando-se duma transformação do plano vivido em plano imaginado, ela prepara a fruição impessoal das dores que a poesia pode proporcionar ao leitor.

Na segunda estrofe, os leitores de um poema não terão acesso a qualquer das dores – a dor real ou a dor imaginária: a dor real ficou com o poeta; a dor imaginária não é já sentida pelo leitor como dor, porque o não é (a dor é do mundo dos sentidos e a poesia – dor imaginária ou representada – é da esfera do espírito). Assim se compreende o último verso desta estrofe (“Mas só a que eles não têm”): os leitores só têm acesso à representação de uma dor intelectualizada, que não lhes pertence.

Na terceira estrofe, se a poesia é uma representação mental, o coração (“esse comboio de corda”), centro dos sentimentos, não passa de um entretenimento da razão, girando, mecanicamente, “nas calhas” (símbolos de fixidez e impossibilidade de mudança de rumo) do mundo das convenções em que decorre a vida quotidiana. Sempre a dialética do ser e do parecer, da consciência (razão) e da inconsciência (coração = comboio de corda), a teoria do fingimento.

A tripartição que apresentamos é denunciada pela conjunção “e” que inicia as 2ª e 3ª estrofes. No entanto, consoante o assunto, a composição poderia ser dividida em duas partes: a primeira constituída pelas duas primeiras estrofes onde o sujeito poético explica a sua teoria da intelectualização do sentir e a segunda constituída pela última estrofe onde ele conclui, através de uma metáfora, a veracidade dessa teoria.

O caráter verdadeiramente doutrinário deste poema faz com que predominem as formas verbais no presente (sendo o pretérito perfeito “teve”, no terceiro verso da segunda estrofe, a única excepção), tempo que conota uma idéia de permanência e que aqui aparece utilizado para sugerir a afirmação de algo que assume foros de verdade axiomática (“O poeta é um fingidor”) em que o fato de se utilizar a 3ª pessoa do singular do presente do Indicativo do verbo ser vem reforçar o atrás afirmado e impor, desde logo, a tese do poema.

A outra categoria morfológica com peso neste poema é o substantivo (poeta, fingidor, calhas, roda, razão, comboio, corda, coração), duas vezes substituído por pronomes demonstrativos (“os” no primeiro verso da 2ª quadra e “a” no último verso da mesma estrofe).

Há três advérbios de significado semelhante que é necessário referir, pela importância que assumem na caracterização das três “dores” abordadas no poema:

“finge (…) completamente” (o poeta)

“… deveras sente” (o poeta)

“…sentem bem” (os leitores)

De notar ainda o seguinte:

Na primeira quadra, há três palavras da família do verbo fingir (a tese) – fingidor, finge e fingir – e repete-se a palavra dor nos 3º e 4º versos.

Na segunda quadra, surgem-nos as formas verbais leem, escreve, sentem, teve (= sentiu) e não têm (= não sentem), que conglobam os três tipos de dor de que atrás falamos: a dor verdadeira que o poeta teve; a dor que ele escreve e aquelas que os leitores leem e não têm.

Na terceira estrofe, realçamos as formas verbais “gira” e “entreter”, porque sugerem a feição lúdica da poesia, cabendo à razão um papel determinante na produção poética. Enquanto ao coração cabe girar em calhas e entreter, fornecer emoções, à razão fica reservado o papel mais importante de toda a elaboração que foi apresentada nas duas primeiras quadras.

Ao nível sintático, verificadas as características de autêntico texto teórico que o poema reveste, o tipo de frase teria de ser o declarativo. Predomina a hipotaxe, com relevo para a subordinação, embora já atrás tenhamos reconhecido a importância da coordenativa “e”.

A nível fônico, este é um poema semelhante a muitos outros de Pessoa ortónimo, de versos curtos (sete sílabas), se bem que haja, por vezes recurso ao transporte. Os versos agrupam-se em quadras e apresentam algumas irregularidades rimáticas e métricas, que não são de estranhar em Fernando Pessoa.

No aspecto semântico, verifica-se a utilização de uma linguagem selecionada e simples, o que não quer dizer que a sua compreensão seja fácil. Tal fica a dever-se a vários fatores:

Aproveitamento de todas as capacidades expressivas das palavras e a repetição intencional de algumas (dor, cognatas de fingir e ter, com o significado de sentir, verbo que também é usado duas vezes).

Utilização de símbolos: “comboio de corda” (brinquedo que vem sugerir o aspecto lúdico da poesia > o comboio (coração) fornece à razão o ponto de partida para a criação (fingimento)); “calhas” (implicam a dependência do sentir em relação ao pensar (razão)).

O uso de metáforas, com saliência para a que é constituída pelo primeiro verso do poema e para o conjunto que constitui a imagem final: o coração apresentado como um comboio de corda que gira nas calhas de roda a entreter a razão.

A perífrase do 1º verso da 2ª quadra (“Os que leem o que escreve”, em vez de “os leitores”).

O recurso ao hipérbato, na última quadra, pela colocação das palavras fora do lugar que pelas regras normais da sintaxe, deveriam ocupar.

MAR PORTUGUÊS

Observamos, antes de transcrevê-lo que a grafia é arcaica (português, rezaram, quer, abismo e nele estão escritos da seguinte forma, respectivamente: portuguez, resaram, quere, abysmo e nelle — sic). Portanto, não se assuste:

Mar Portuguez

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão resaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,

Mas nelle é que espelhou o céu.

No poema, há uma personificação do mar, que é invocado logo no início ("Ó mar salgado"). Em seguida, é feita uma afirmação em tom emotivo: "quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!". Já aqui, governado por uma função analógica, há a rima externa sal-Portugal, além do jogo especular lágrimas-Portugal. Como eixo de orientação, tem-se o sofrimento, elemento que adensa semanticamente o poema, ligando lágrimas e salinidade do mar como elementos da mesma equação na história das conquistas portuguesas.

Diz-se em seguida: "Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / quantos filhos em vão resaram! / Quantas noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó mar!". Depois de se indicar a finalidade em "Por te cruzarmos", seguem afirmações sucessivas que se repetem coordenativamente através de uma estrutura simétrica: o intensificador quantos (as) + substantivo no plural + verbo ou locução verbal, acompanhado ou não de elemento de caráter adverbial + exclamação.

Assim, a repetição marca o ritmo e também mostra o esforço coletivo. As mães carpem saudades, os filhos rezam pelos pais que partem e as noivas aguardam o retorno dos marinheiros. A estrofe é encerrada com duas duplicações. A primeira repete o nexo sintático de finalidade, agora com o usual para que, que retoma o teleológico "por te cruzarmos". As duas orações finais emolduram as estruturas que se repetem pelo esforço de cada segmento do povo português. Ou seja, as orações com a palavra quanto, três vezes usada, aparecem cercadas. Inicialmente indicando o desejo de ir além ("Por te cruzarmos"), ao final mostrando algo já consolidado ("Para que fosses nosso"). O termo nosso encapsula de modo conciso o já referido esforço de cada grupo (mães, filhos, noivas). Ao cabo, por sua vez, o vocativo que abrira a estrofe é repetido ("ó mar!"). Vê-se, então, que todo a estrofe é concebida por certas formas de simetrias estruturais ou por concepções de semelhanças. Todavia, o igual é sempre um igual diferente. Fica claro isso, quando se percebe que a segunda oração final diz algo que não é o mesmo da primeira. Ou seja, a poesia trabalha por analogias, só que a criação exige que algo difira.

A segunda estrofe traz o dístico já hoje célebre. O tom é proverbial: ("Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena"). Por ele temos outro elemento escolhido pela mente que pensa analogicamente: a palavra pequena contém em si a palavra pena. A densidade dá-se pelo estilo pergunta-resposta, de modo aforismático. É um saber que uma cultura tece e constitui, tece enquanto descobridora de rotas alternativas para a Índia e para a América.

Segue o poema com a expressão "Quem quere passar além do Bojador / Tem que passar além da dor". Há em tais versos a rima Bojador / dor. Isso se dá de maneira clara e evidente. Todavia todo poema mostra (eVIDEncia — do latim videre = ver), mas esconde, já que um poema é sempre um gesto inaugural. Vejam como as grandes civilizações, em seus momentos de fundação, tentam perpetuar-se através de fórmulas repassadas por seus cantadores, que com seus poemas orais mantêm, através de mitos e narrativas, o religamento e a coesão sociais. Dessa forma, o que se tem à nossa frente é aquilo que o poema quer abrir à recepção, os arcanos (= os mistérios) que revelam (= tiram o véu) o mundo (o universo). O que se descobre também caminhando pelo mar português, agora já contornando a África, rumo às Índias, é que necessitamos transcender a dor para ir além do Bojador. Passar além é provação, mas é também provocação. É seguir o imaginário.

Portanto, se como diz Wolfgang Iser (1983, p. 386) a realidade (que provém do latim res, coisa) é algo totalmente determinado, sofrendo as injunções do mundo concreto, a imaginação, por seu turno, é totalmente indeterminada. Você pode criar projetos (etimologicamente lançar-se à frente). Caso falte uma janela, alguém pode querer concretizar (realizar) o que foi inicialmente concebido somente no plano da imaginação. Pode-se até, como o fez o prefeito carioca Pereira Passos, obrigar os moradores da antiga capital federal a higienizarem suas casas construindo estranhas portas pequenas (ou seja janelas, eis o étimo! Sic) em suas moradias. Aquilo que parece óbvio para nós hoje foi um construto humano. É certo que janelas não eram nem de longe novidades, entretanto as pessoas conseguiam projetar casas sem janelas numa cidade que chega a ter temperaturas próximas de quarenta graus no verão. Ou seja, a imaginação tem algo que não é dedutivo (pelo duto, pelo caminho lógico; do geral para o particular) nem indutivo (dentro do duto, do caminho; do particular para o geral). Há algo que Peirce (1977, p. 32-35) chama de abdutivo (afastado do duto previsível: a eureka de Arquimedes, o insight (grosseiramente falando), o modelo do átomo vislumbrado pela cobra que morde a própria cauda em Kekulé; a lendária ou não maçã newtoniana). Aliás, é a abdução o caminho criativo, é o que aproxima cientistas e artistas a quererem buscar o novo. É o parece ser que exige depois o ato, a comprovação do cientista e a realização do poeta. Aliás o termo grego póiesis significa fazer. Assim, a poesia congrega a determinação da realidade e a abertura do imaginário. É um sonho, mas é um sonho que exige concretização. Não adianta dizer que seu tio tem a alma de poeta se ele não materializou, com palavras, suas formulações. O poeta precisa sentir a dificuldade do fazer. Aliás, a palavra técnica, para os gregos, tanto significava produção quanto arte.

Depois dessa longa série de considerações, terminemos a análise do poema, retomando os dois últimos versos: ("Deus ao mar o perigo e o abysmo deu, / Mas nelle é que espelhou o céu"). De novo há o especular. O espelhamento estrutura a sequência final. Dessa feita, no eixo horizontal, o penúltimo verso abre e fecha de modo quase igual na forma Deu(s) — deu. Só o s é que difere. No sentido vertical, por seu turno, a cor do mar é apresentada como tendo sido, explicitamente dessa vez, espelhada na do céu. Se, por um lado, o mar é abissal, por outro ele é o paraíso, edênica região avistada ao se buscar Eldorados.

CONCLUSÃO

O poeta é movido pela exploração de formas. Mesmo em um poema, no qual estão inseridos diversos conceitos, há a preocupação com a busca de equivalências. Entrementes, como todo ser criativo, o poeta tenta fugir do intumescimento da cultura. Assim, seu cérebro prefere pensar em células que imantem outras células, ou seja, segmentos que por alguma razão assemelham-se a outros, mas, ao seguir tal procedimento, não deixa de perquirir o novo, aquilo que Merleau-Ponty (1974, p. 26-29) chama, por ser vivo e queimar como fogo, de linguagem falante (em oposição à linguagem falada, isto é, a já amplamente conhecida e sedimenta por convenções). A linguagem falante nos ensina. No momento mesmo em que estamos formulando algo nos surpreendemos com sua força.

Quando o poeta enriquece a língua, usa uma linguagem falante, pois entranha-a com singularidades, com novas percepções. Por isso, seu trabalho é civilizatório, porque oferece "um sentido mais puro às palavras da tribo", tal como diria Mallarmé (cf. CAMPOS, A.; CAMPOS, H. e PIGNATARI, D., 1980, p. 67)

Desse modo, em conformidade com Paul Schrecker (1975), em sua classificação estrutural das civilizações, pode-se dizer que há seis setores em uma cultura (o econômico, o político, o científico, o religioso, o linguístico e o estético). Em muitas manifestações concretas na história, os dois últimos setores foram preponderantes para a edificação de uma civilização. Por isso, a poesia é alguma coisa — apesar de aparentemente inútil, no sentido de não ter aplicação direta — que move montanhas, percepções, compreensões e formas de estar no mundo. Ela também problematiza e povoa o mundo, pelo menos o de nossa imaginação.

ACADÊMICO
Enviado por ACADÊMICO em 10/10/2010
Reeditado em 22/01/2019
Código do texto: T2547962
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