Fiama Hasse Pais Brandão: Uma Análise Estilística - "O Bucolismo deixará de ser um canto" e outros poemas

Geralmente, somos levados a crer, devido a uma política didática de fórmulas, que as escolas literárias são definidas por uma série de características que dão conta de toda a extensão intelectual dos autores e obras nelas contidos, mas um estudo mais aprofundado revelará que existem escritores cuja obra transcende seu “período”, ou seja, não estão presos a formas e conceitos pré-determinados. É o caso de Fiama Hasse Pais Brandão.

Fiama deixa de lado as convenções artísticas de seu período e inaugura um modo próprio de escrever. Por vezes, adota as inversões sintáticas, abraça os versos livres e brancos – o que contraria a estética clássica, ainda muito apreciada – e trabalha com a metalinguagem em sua poesia, que fala geralmente de si própria ou do ser poético (inspirações, processo criativo, sentimentos do poeta etc.), de sua visão de mundo, de episódios de sua própria vida e/ou momentos históricos vividos por ela. Esses aspectos encontram-se muito bem marcados em poemas como: A um poema, em que se permite descrever seu estado psíquico e, ao mesmo tempo, o inverno, fundindo-os; O Nada. Sobretudo na fase de Exaltação, em que a representação do nada e sua contemplação, na verdade, representam o que há de mais fértil para o ser; e Poema para a padeira que estava a fazer pão enquanto se travava a batalha de Aljubarrota, que trata da contemplação do simples ato de fazer um pão, comparando-o com o engendrar do amor.

A um poema:

“A meio deste inverno começaram a cair folhas demais (...) (1º e 2º versos da 1ª estrofe) / “O desfolhar habitual das memórias é agora mais geral e também mais súbito (1º e 2º versos da segunda estrofe)”.

O Nada. Sobretudo na fase de Exaltação:

“Os ramos de árvores despidos que nos lembram o nada (...) (1º e 2º versos da 1ª estrofe) / (…) O nada sempre coeso. Uma respiração intangível e sem sombras (4º, 5º e 6º versos da última estrofe)

Poema para a padeira que estava a fazer pão enquanto se travava a batalha de Aljubarrota

“Dentro da casa ela aguarda / abrir o forno / Ela em mão que prepara / o amor” (3ª estrofe)

utro aspecto relevante de sua obra é a visão idílica do campo, onde se pode sonhar e ser feliz. Na verdade, é o único lugar em que isso parece possível. Fiama deixa transparecer esse traço em suas construções, tendo em vista que, para ela, a natureza ocupa o papel principal e o homem, quando surge, é um mero acessório para caracterizar a cena e, em geral, um elemento contrário ao ambiente ocupado pelo eu-lírico, parte de um mundo diferente. Sobre esse último aspecto, podemos notar que diverge da visão romântica da natureza, por exemplo, havendo um movimento contrário: o elemento humano ocupa o primeiro plano e a natureza lhe serve de acessório para caracterizar os cenários internos (sentimentos, qualidades) e externos.

São exemplos bastante vivazes dessa dicotômica (campo X homem) os já citados A um poema e O Nada. Sobretudo na fase de Exaltação, além do Poema para a padeira que estava a fazer pão enquanto se travava a batalha de Aljubarrota. No último, o estilo de vida campestre é enaltecido, a ponto de só nele haver paz. Fora da casa e do labor do pão, só há morte e infelicidade, os homens portam armas de guerra (progresso) e a padeira possui a arma de paz, o pão para partilha. No primeiro e no segundo, vê-se “apenas” a descrição do cenário natural, a ser contemplado por uma “janela”, e que, por si só, é capaz de “tocar profundamente” o eu-lírico.

Poema para a padeira que estava a fazer pão enquanto se travava a batalha de Aljubarrota

“Sobre a mesa põe as mãos / pôs o pão / fora da casa o rumor / sem repouso” (5ª estrofe)

“Sobre a mesa pôs o pão / arma de paz / contra as armas da batalha / arma de mão” (8ª estrofe).

A um poema

“Mas falaria de árvores, de plátanos, / com relativa evidência. Maior / ou menor distância, ou chamar-lhe-ei / rigor evocativo (...) “ (3º, 4º, 5º e 6º versos da 2ª estrofe)

O Nada. Sobretudo na fase de Exaltação

“Simultaneamente procurar o centro / da irradiação. O Sol matinal com os seus hiatos / preenchidos por casas. Ameias onde se / invertem vértices do horizonte. / Sol magnânimo” (2ª estrofe)

Seu anti-convencionalismo chega a tal ponto que sua obra parece ter uma evolução ou “involução” própria, pois o que se espera de um escritor é que, à medida que ele avance no tempo e, consequentemente, adquira experiência, seus escritos se tornem mais complexos. Todavia, a leitura de sua arte demonstra que Fiama “avançou” rumo à simplicidade, como nos poemas publicados em 2000, pela Relógio d’água Editores, nos quais se percebe um retorno (embora não total) à forma clássica de fazer poesia, por exemplo: o modo de organização de versos e estrofes e a atenção dada a essa estética, a presença de rimas, a ordem sintática padrão e a presença de pontuações que, dentre outras funções, delimitam as ideias de cada período e geralmente representam movimento no tempo, ou seja, o cuidado com a progressão.

Feitas as devidas ressalvas, passo à interpretação do poema O Bucolismo deixará de ser um canto, publicado em 2000, já dessa fase mais “simples”, no qual é possível identificar muitas das características já apontadas e exemplificadas - em especial no que tange à presença, ou melhor, à quase ausência humana em sua poesia, o que se comprova através dos demais poemas já mencionados.

No início do poema, Fiama fala de seu contato com a grandiosidade da natureza (a paisagem), que sempre serviu de pasto fértil para sua poesia e cuja beleza lhe serve de sentido para sua vida. De tal modo estão unidas a paisagem e a poeta, que aquela repousa em todos os seus sentidos e com ela caminha aonde quer que vá; a poeta convida-a para dentro de sua íris e a reflete nos seus olhos e na sua boca todo o tempo, sem se importar se era benigna ou mortal, porque mesmo a natureza morta se transforma. Essa união e as constantes menções à era clássica (Grécia) representam o bucolismo.

Durante muito tempo, a poeta parece ter negado o que acontecia fora de seu mundo, acreditando que, à sua semelhança, o restante dos homens encontrava sentido para sua existência na natureza e que, assim sendo, esta estaria sempre a salvo e dela sempre poderia se servir, tal como o fizera desde seu nascimento (seja no sentido literal ou na gênese de sua poesia), pois dela partem todos os elementos essenciais: “E acreditei que só, para sempre,/ o latejar natural dos astros, do ar,/ das águas, da terra, a manteriam/ entregada a mim, à minha beira,/ tal como estava desde o nascimento.”. Veem-se, nesse trecho, os quatro elementos da vida, os astros são, então, a representação do fogo, ligados ao nascimento da poeta. No movimento do poema, eles o antecedem.

Entretanto, ao sair de seu sonho, o eu-lírico percebe que a paisagem era cara somente para si, posto que, com a modernização, os homens tornaram-se insanos e passaram a corromper seus valores, gerando uma verdadeira desarmonia. O homem da industrialização não se importa com o equilíbrio estabelecido pela presença das coisas naturais e do que havia do mundo clássico, evoca apenas os monstros, instaurando o caos na arte e na vida. O mundo agora é um labirinto sem heróis e o seu temível minotauro assume a forma de outras desgraças, como Chernobyl, cujos frutos contrariam a própria essência da vida: “demiurgo que expele um hálito / que gera crias das bestas e dos homens / oposto ao antigo sopro do Génesis...”; e tudo que sobra são criaturas vazias, artificiais e imutáveis. Sendo esses seres os responsáveis por perpetuar o que é bom, nada de natural sobra, pois rebaixam a paisagem a meras aparências que servem de armadilhas.

Sendo assim, não há mais motivos para tocar cantos bucólicos na flauta, já que, na tradição clássica, esse instrumento lírico é tocado pelo deus grego Pã (cujo nome significa tudo), ser mitológico que representa a natureza (florestas), a felicidade e a harmonia entre o homem e o campo.

Podemos perceber, ainda, nesse poema, o caráter autobiográfico. A saída do “sonho” representa a saída de Fiama do campo e sua ida para a cidade, onde conquistou notoriedade e passou muitos anos de sua vida. Assim, o poema revela suas impressões sobre essa estadia e a razão do regressado à terra natal, na qual passara seus últimos anos e escrevera O Bucolismo deixará de ser um canto. Com isso, torna-se notória a razão de sempre pôr o ser humano em segundo plano, ou mesmo excluí-lo de sua poesia, haja vista que, para ela, a cidade (resultado do atual estado da humanidade) é um falso deus, demiurgo, que gera falsas vidas, o que pode ser interpretado, do mesmo modo, no contexto artístico, uma vez que o termo pode ser usado como título para o criador de alguma obra extraordinária. Fiama, portanto, deixa patente seu desprezo pela cidade e até pelo ser humano, que renega os valores das paisagens e que, por sua imensa ambição (Chernobyl), tende a destruí-las, o que significa extinguir tudo que há de bom e puro.

Arkangellus
Enviado por Arkangellus em 21/09/2010
Código do texto: T2511741
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