AO CORRER DA PENA (MESA 1 DA FLIP 2010)

A mesa foi composta por: EDSON NERY DA FONSECA, MOACYR SCLIAR, RICARDO BENZAQUEN. E a mediação de ÁNGEL GURRÍA-QUINTANA.

“A ESCRITA É MEU VEÍCULO. VAIDOSAMENTE OU NÃO, CONSIDERO-ME UM ESCRITOR LITERÁRIO, COM UMA FORMA LITERÁRIA DE EXPRESSÃO”, declarou Freyre, certa vez.

MOACIR SCLIAR mostra a ambivalência no qual Freyre, sem dúvida é um paradigma, pois sintetiza nas suas contradições a mentalidade brasileira. Veja bem, Scliar diz: “Freud baseou quase toda a sua escrita da Psicanálise na Literatura (Humanas). Gilberto Freyre transita nas duas culturas; ciências e humanas, mas, o seu texto não é cientifico, e sim, um escrever poético, ele não usa números, tabelas..., ele cativa o publico por sua escrita informal, pois escreve como se fosse uma “história dos anais”, e isto não é acadêmico. Gilberto Freyre não se importa para as regras ele faz muitas generalizações que dão certo, contudo há várias que são péssimas. No seu livro Casa Grande e Senzala quando ele escreve sobre os judeus ele se porta como um racista e antissemita. O texto que Moacir fala é o do fragmento a seguir:

Técnicos da usura, tais se tornaram os judeus em quase toda parte por um excesso de especialização quase biológica (sic), que lhes aguçando o perfil de ave de rapina, a mímica em constantes gestos de aquisição e de posse, as mãos incapazes de semear e de criar. Capazes só de amealhar. (Gilberto Freire, Casa Grande & Senzala, pg. 290)

Entretanto, Moacir Scliar aponta uma discrepância na vida de Freyre ao dizer:

“Não dá pra dizer que seja antissemita. Ele era membro da Academia de Artes e Ciências de Israel”.

Diante de toda escrita de Freyre em que responsabiliza os judeus por praticamente tudo que possa haver de ruim no caráter do português, Moacir alivia a “morte intelectual da obra e de Freyre ao afirmar:

“O problema e a salvação da fala de Freyre com relação a isso é dizer que essa é uma característica “quase” biológica. Este “quase” salva o Gilberto Freyre, porque ele admite que pode estar errado. Caso contrário ele seria um candidato a integrar o grupo dos nazistas”.

Para Scliar e toda a sua geração; Freyre também não foi bem recebido na época por ser “amigo da Revolução de 64”. Cito um artigo escrito por ele denominado: “Enfoque Sociológico da Revolução”, em que escreve o seguinte:

“O que teria sido o Brasil se em 1964 lhe tivesse faltado um movimento de “basta” a desvios, os mais antibrasileiros?... Foi o grande papel, revolucionário, que 1964 desempenhou na dinâmica da formação brasileira... Foi um movimento que impediu graves antibrasileirismos de perturbarem afirmações do Brasil, em dias turvos, como nação construtivamente brasileira no essencial dos seus rumos, além de políticos, socioeconômicos”.

Já, o professor RICARDO BENZAQUEN faz uma reflexão sobre o autor homenageado como um ensaísta e divaga sobre o ensaio como: uma modalidade de texto bastante usada na academia, especialmente nas áreas de Ciências Humanas, é o ensaio que consiste na exposição das idéias e pontos de vista do autor sobre determinado tema, buscando originalidade no enfoque, sem, contudo, explorar o tema de forma exaustiva.

O Ensaio como Interpretação Nacional foi muito praticado no Brasil doa anos 30 por Mário de Andrade. Caio Prado Junior, no ensaio o importante é atingir o ponto essência para iluminar o todo. Ricardo mostra que na obra de Freyre:

“Praticamente todos os argumentos significativos que ele examina são avaliados de maneira positiva e negativa ao mesmo tempo”.

Gilberto Freyre considerava-se, acima de tudo, escritor. E foi como ensaísta que ele projetou-se no cenário nacional. Para Ricardo Benzaquen, além de ensaísta o homenageado da Flip também faz ciência: sociologia social!

EDSON NERY DA FONSECA fala sobre as três características mais importantes do estilo literário de Gilberto Freyre:

a) O Imagismo criado por Pound em que mostra o valor do uso da linguagem coloquial, a criação de novos ritmos sonoros ultrapassando a métrica, liberdade na escolha do assunto, verso livre, poesia clara e apresentação de imagens, procurando traduzir detalhes com precisão.

b) A enumeração caótica: que consiste no acúmulo de palavras que designam objetos, seres, sensações, vinculados a uma idéia ou várias idéias básicas, sem ligação evidente entre si.

(c). O expressionismo; como a arte do instinto, dos sentimentos humanos tais como: o amor, o ciúme, o medo, à solidão, à miséria humana, à prostituição. Predominância dos valores emocionais sobre os intelectuais.

No final de sua palestra, NERY, como fez no ano passado, arrebatou a platéia declamando de cor um longo poema de Gilberto Freyre inspirado por sua primeira visita à Cidade de Salvador: Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados.

em que o IMAGISMO aparece logo nos primeiros versos:

Bahia de todos os santos (e de quase todos os pecados)

casas trepadas umas por cima das outras

casas sobrados igrejas como gente se espremendo pra sair

[num retrato de revista ou jornal

Aqui alguns exemplos de ENUMERAÇÃO CAÓTICA, como nos seguintes versos:

Bahia

Salvador

São Salvador

Todos os Santos

Tomé de Sousa

Tomés de Sousa

Padres negros caboclos

a Primeira Missa

os malês

índias nuas

vergonhas raspadas

candomblés santidades heresias sodomias

quase todos os pecados

ranger de camas de lona

corpos suando de gozo

todos os santos

missa das seis

comunhão

E AQUI VAI O POEMA COMPLETO EM QUE EDSON NERY DA FONSECA MOSTRA TODA A SUA MEMÓRIA PRODIGIOSA AO DECLAMÁ-LO SEM LEITURA, E É OVACIONADO POR TODOS OS PARTICIPANTES DA FLIP 2010.

BAHIA DE TODOS OS SANTOS E DE QUASE TODOS OS PECADOS

Bahia de Todos os Santos (e de quase todos os pecados)

casas trepadas umas por cima das outras

casas, sobrados, igrejas, como gente se espremendo pra sair num

retrato de revista ou jornal

(vaidade das vaidades! diz o Eclesiastes)

igrejas gordas (as de Pernambuco são mais magras

toda a Bahia é uma maternal cidade gorda

como se dos ventres empinados dos seus montes

dos quais saíram tantas cidades do Brasil

inda outras estivessem para sair

ar mole oleoso

cheiro de comida

cheiro de incenso

cheiro de mulata

bafos quentes de sacristias e cozinhas

panelas fervendo

temperos ardendo

o Santíssimo Sacramento se elevando

mulheres parindo

cheiro de alfazema

remédios contra sífilis

letreiros como este:

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo

(Para sempre! Amém!)

automóveis a 30$ a hora

e um ford todo osso sobe qualquer ladeira

saltando pulando tilintando

para depois escorrer sobre o asfalto novo

que branqueja como dentadura postiça em terra encarnada

(a terra encarnada de 1500)

gente da Bahia! preta, parda, roxa, morena

cor dos bons jacarandás de engenho do Brasil

(madeira que cupim não rói)

sem rostos cor de fiambre

nem corpos cor de peru frio

Bahia de cores quentes, carnes morenas, gostos picantes

eu detesto teus oradores, teus otaviosmangabeiras

mas gosto das tuas iaiás, tuas mulatas, teus angus

tabuleiros, flor de papel, candeeirinhos,

tudo à sombra das tuas igrejas

todas cheias de anjinhos bochechudos

sãojoões sãojosés meninozinhosdeus

e com senhoras gordas se confessando a frades mais magros do que

eu

O padre reprimido que há em mim

se exalta diante de ti Bahia

e perdoa tuas superstições

teu comércio de medidas de Nossa Senhora e do Nossossenhores do

Bonfim

e vê no ventre dos teus montes e das tuas mulheres

conservadoras da fé uma vez entregue aos santos

multiplicadores de cidades cristãs e de criaturas de Deus

Bahia de Todos os Santos

Salvador

São Salvador

Bahia

Negras velhas da Bahia

vendendo mingau angu acarajé

Negras velhas de xale encarnado

peitos caídos

mães de mulatas mais belas dos Brasis

mulatas de gordo peito em bico como para dar de mamar a todos os

meninos do Brasil.

Mulatas de mãos quase de anjos

mãos agradando ioiôs

criando grandes sinhôs quase iguais aos do Império

penteando iaiás

dando cafuné nas sinhás

enfeitando tabuleiros cabelos santos anjos

lavando o chão de Nosso Senhor do Bonfim

pés dançando nus nas chinelas sem meia

cabeções enfeitados de rendas

estrelas marinhas de prata

tetéias de ouro

balangandãs

presentes de português

óleo de coco

azeite-de-dendê

Bahia

Salvador

São Salvador

Todos os Santos

Tomé de Sousa

Tomés de Sousa

padres, negros, caboclos

Mulatas quadrarunas octorunas

a Primeira Missa

os malês

índias nuas

vergonhas raspadas

candomblés santidades heresias sodomias

quase todos os pecados

ranger de camas-de-vento

corpos ardendo suando de gozo

Todos os Santos

missa das seis

comunhão

gênios de Sergipe

bacharéis de pince-nez

literatos que lêem Menotti del Picchi e Mário Pinto Serpa

mulatos de fala fina

muleques

capoeiras feiticeiras

chapéus-do-chile

Rua Chile

viva J. J. Seabra morra J. J. Seabra

Bahia

Salvador

São Salvador

Todos os Santos

um dia voltarei com vagar ao teu seio moreno brasileiro

às tuas igrejas onde pregou Vieira moreno hoje cheias de frades

ruivos e bons

aos teus tabuleiros escancarados em x (esse x é o futuro do Brasil)

a tuas a teus sobrados cheirando a incenso comida alfazema

cacau.

Extraído de: FREYRE, Gilberto. Bahia e baianos. Apresentação de Edson Nery da Fonseca. Salvador: Fundação das Artes, 1990. 167 p.