“Autopsicografia” e Fernando Pessoa
Poder-se-ia dizer que Fernando Pessoa, como poeta, é um ser de extrema complexidade? Que sua poesia é, em conseqüência desse fato, altamente intrincada, ou mesmo hermética? Parecem ser indagações de grande pertinência, às quais tentaremos responder neste estudo do poema “Autopsicografia”, ao qual atribuímos essencial valor dentro da obra desse ícone da literatura de língua portuguesa e (por que não?) da literatura moderna ocidental, isso por ser o texto não só um escrito de agradável leitura, mas também um poema-chave para a compreensão da obra do grande poeta português.
À primeira vista, o que percebemos logo é ser o poema agradável de ser lido, como já dissemos. Isto se dá, talvez, em decorrência do fato de ser uma escritura de apresentação formal simples -- o que veremos mais adiante, pois o que aqui nos interessa, de momento, é uma visão mais geral conteudística.
Porém, há algo mais por trás dessa aparente simplicidade? Há, sim. Há muito mais. O que o texto nos diz numa leitura mais atenciosa? Diz-nos algo muito importante acerca do ato criador: que o poeta, ao contrário do que se pensava no Romantismo, não só transfigura a realidade, mas transfigura sua própria subjetividade -- suas emoções individuais, dores, alegrias, anseios... -- por meio do raciocínio, o que faz lembrar o trecho de um texto seu: “O que em mim sente ‘stá pensando”. Ora, este é o princípio do fingimento poético de Fernando Pessoa, que se contrapõe ao confessionalismo dos românticos e, em suma, é a essência da teoria intelectualista, que almeja explicar o ato criador.
Deparamo-nos, assim, com uma verdadeira arte-poética pessoana, segundo QUESADO (1976:18). Mas arte-poética de Pessoa, por quê? Ele inicia o poema com a definição: “O poeta é um fingidor”. É bem genérico. É como se o enunciado fosse assim: todo poeta é um fingidor (inclusive ele); mas não é só por esse motivo, não. É que, tendo já conhecimento de sua obra, podemos, logo, fazer a seguinte relação: “Autopsicografia” é, em linguagem figurada, a porta de entrada (poema-chave, como nos referimos anteriormente) para o mundo poético pessoano: mundo desdobrado em que o homem Fernando Pessoa é, ao mesmo tempo, o poeta ortônimo e os poetas heterônimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis -- os principais), cada um “com sua particular visão de mundo”. E Ricardo Reis torna esse fato evidente nestes versos: “Tenho mais almas que uma. / Há mais eus do que eu mesmo.”
O poema aqui estudado é de autoria do ortônimo, ou Fernando Pessoa “ele mesmo”, que, segundo a Enciclopédia Mirador Internacional, l989, vol. 16, pág. 8847, “... é o de mais difícil apreensão: a todos preside, fala por todos, mas dá a impressão de ser ele mesmo um heterônimo.”
E, agora, perguntamo-nos: por que o título “Autopsicografia”? Para esclarecer essa questão lembramos do lado ocultista de Fernando Pessoa (que chegou mesmo a confeccionar horóscopos para ganhar algum dinheiro), e, em seguida, recorremos a um dicionário específico. Em psicografia encontramos: “Faculdade de os médiuns, sob a atuação de Espíritos comunicantes, escrevem com a própria mão...” E em termos mais simples, achamos o seguinte num dicionário de língua portuguesa: “Ditado do espírito escrito pela mão do médium.” Mas existe ainda o prefixo auto. O que podemos deduzir disso? Que o espírito que “encarnou” no poeta, para que este psicografasse seu ditado (do espírito), era o próprio ortônimo, o Fernando Pessoa “ele mesmo”? Podemos reportar aos versos de Ricardo Reis, que citamos. Mas preferimos a seguinte assertiva: “encarnou”, por assim dizer, um “sujeito poético” no (médium) Fernando Pessoa, que em linguagem figurada psicografou o que lhe foi ditado. Então, “Autopsicografia” seria o ditado escrito (poema) do eu-ortônimo, “encarnado” em Fernando Pessoa, contendo uma definição de poeta, uma explicitação sobre o fazer poético -- o processo de criação -- e também sobre o processo de decodificação da mensagem poética pelo(s) leitor(es).
Estruturalmente, dividimos o poema em duas partes, em que a primeira sofre uma bipartição em estrofes. Explicaremos melhor: a parte primeira se divide em estrofe 1 e estrofe 2; e a parte segunda corresponde à última estrofe.
Na parte primeira o texto apresenta, essencialmente, os seguintes elementos discursivos, na primeira estrofe:
. o poeta como fingidor;
. a dor que ele finge;
. a dor que ele sente.
E na segunda estrofe:
. os que lêem;
. a dor lida;
. a dor que eles não têm.
A primeira estrofe trata do elemento poeta (emissor, elaborador do código) e a segunda, do elemento “os que lêem”, ou leitores (receptores, decodificadores). Essa relação íntima emissor/receptores faz com que as duas estrofes constituam uma parte uma, como se o poeta engendrasse uma imagem para um referente, mas que só é captada pelos leitores como um reflexo no espelho. Ou de outro modo: o poeta sente a dor, mascara-a depois ao expressá-la; o leitor sente-a ao decodificá-la, porém não é ela sua dor, é a dor lida, que também já não corresponde às do poeta.
Quesado refere-se ainda a fingidor 1 (poeta) e fingidor 2 (leitor). Não nos deteremos muito neste aspecto. Apenas reforçamos a idéia de ser o poema uma porta de entrada para o mundo desdobrado de Pessoa em heterônimos e ortônimo, que se dá por meio do eixo sentimento/pensamento, que é linha-diretriz em “Autopsicografia”.
Na parte segunda temos um reforço da primeira. O advérbio assim, no primeiro verso dessa estrofe, com sentido de desse modo, dessa maneira, faz uma espécie de (perdão pela redundância)“remissão para trás” -- é, portanto, um anafórico -- , o que caracteriza o aspecto de reforço ou redundância. Os principais elementos do discurso aqui são “razão” e “coração”. Numa linguagem bem metafórica, em que estabelece a ligação entre o coração (sentimento) e um brinquedo (“comboio de corda”), o poeta diz que o sentir entrete (ilude, diverte) a razão, o pensar, como se o processo de criação também fosse um jogo.
A despeito de toda essa complexidade conteudística, é “Autopsicografia”, como bem já o frisamos no início deste estudo, de estruturação formal simples. E a par de tudo o que é novidade em sua obra, entretanto, Pessoa “ele mesmo” utilizou-se também de recursos tradicionais: é o “poeta original e moderno dentro do tradicional”, como salientou Celso Pedro Luft.
A construção estrófica em quadras (três) e o metro em redondilha maior (lembrando quadrinhas populares, mas com musicalidade bem pessoana) configuram claramente o gosto do autor pelo folclórico e popular.
O esquema rimático apresentado em cada estrofe é dos mais singelos: abab, abab, abab -- rimas alternadas, sem lapso algum de preciosismo, pelo contrário, visto serem as rimas, quanto ao vocabulário, ricas e pobres. Há uma total inexistência, portanto, de raras, ou preciosas. Além de que, a par de todo um caráter formal simples apresentado, ainda encontramos algumas rimas que podem ser rotuladas, segundo a poética, como imperfeitas.
O poeta é parcimonioso quanto ao uso de figuras de linguagem, pois só percebemos com clareza a metáfora (principalmente) e a elipse.
Se tivermos que responder às questões propostas no início deste texto, diremos que o poeta é, realmente, como vimos no decorrer de nossa argumentação, um ser humano complexíssimo, juntamente com sua obra (é lógico), que entretanto não é hermética. A complexidade não deixa de ser uma marca do século XX, e Pessoa é homem e poeta deste século.
* * *
Para quem desconhece a obra, aqui está ela, para seu deleite e admiração, conforme figura no livro O eu profundo e os outros eus, página 104:
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
* * *
Bibliografia
1. AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Delta SA, 1981. V. 4.
2. ENCICLOPÉDIA BARSA. Rio de Janeiro─São Paulo, Encyclopaedia Britannica Editores Ltda, 1981. p. 261.
3. ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL. São PauloRio de Janeiro, Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda, 1989. V. 16, p. 8846-47.
4. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Pequeno dicionário brasileiro de língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira SA, 1966. V. 2 (E-O).
5. GRANDE ENCICLOPÉDIA DELTA LAROUSSE. Rio de Janeiro, Delta AS, 1979. p. 5295.
6. PAULA, João Ferreira de. Dicionário de Parapsicologia, Metapsíquica e Espiritismo. São Paulo, Banco Cultural Brasileiro Ltda, 1970. V. III.
7. PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus: seleção poética; seleção e nota editorial de Afrânio Coutinho. 20ª ed. Rio de Janeiro, N. Fronteira, s/d.
8. QUESADO, José Clécio Basílio. O constelado Fernando Pessoa. Rio de Janeiro, Imago, 1976. 125 p.