O poema “O bicho”

O poema “O bicho”, de Manuel Bandeira, integra o livro de poesia Belo belo, publicado em 1948. É tipicamente modernista: é o que se pode observar e afirmar, de chofre, em todos os aspectos: sonoro, lexical, sintático e semântico.

O texto se apresenta sob uma forma não-fixa e não-tradicional (não é soneto, ode, écloga ou haicai, por exemplo), dividido em três tercetos e um monóstico, com versos livres (isto é, polimétricos) com apenas rimas ocasionais. Observe:

1 2 3 4 5

“Vi / on / tem / um/ bi / cho

1 2 3 4 5 6

Na _ i / mun / dí / cie / do / pá / tio

1 2 3 4 5 6 7

Ca / tan / do / co / mi / da_ en / tre _ os /

8 9

de / tri / tos.”

O 1º verso é um pentassílabo (redondilha menor); já o 2º, um hexassílabo; e o 3º, um eneassílabo, o que comprova a polimetria ou versilibrismo.

Abaixo, perceba as rimas ocasionais:

“Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão.

Não era um gato.

Não era um rato.”

A rima achava/examinava/cheirava não tem classificação na poética tradicional. Já a rima gato/rato poderia ser chamada de paralela ou emparelhada.

O ritmo poético, propriamente dito, surge apenas no 3º terceto. Nas demais estrofes, predomina o procedimento da prosa, como, aliás, é bastante comum a um texto narrativo, como é o caso do texto em questão.

No que diz respeito ao léxico, o poema apresenta apenas dois vocábulos da língua culta: detritos e voracidade. Nada que um dicionário não resolva. De resto, como é de praxe em um texto modernista, o nível de linguagem é o coloquial (o do cotidiano). Ou seja, uma linguagem próxima, bem próxima do povo.

Manuel Bandeira organiza “O bicho” como um filme hitchcockiano: vai em conta-gotas revelando-nos a trama, o enredo, para só no final, num clímax de emoção, de suspense, mostrar quem é o bicho -- um bicho-homem. Ou será um homem-bicho? Vejamos, por meio da estrutura da narrativa, a trilha especial por onde nos conduz Bandeira:

“Vi (ele, o eu-lírico, testemunhou o fato) ontem (quando? – no dia anterior ao qual foi escrito o poema) um bicho (quem? – o bicho-homem/homem-bicho) / Na imundície do pátio (onde? – o lugar, o ambiente onde se dá o fato) / Catando comida entre os detritos (o quê? -- a ação, o fato central). //Quando (quando? –- o tempo, o momento em que ocorre o fato) achava alguma coisa, / Não examinava nem cheirava: / Engolia com voracidade (como? – o modo como age o ser/personagem – o enredo). // O bicho não era um cão. / Não era um gato. / Não era um rato (quem? – aqui, para manter o suspense e elevar apenas no final a um máximo grau a emoção, o poeta diz quem não era o bicho). // O bicho, meu Deus, era um homem (eis aqui o ápice da emoção, do sentimento, da revelação).”

Só um elemento nos falta agora: o porquê: a semântica de tudo que está no texto, suas significações explícitas ou mesmo implícitas, conduzindo-nos a uma fulcral indagação a ser feita: por que “O bicho”, por que tal título? Seria ele condizente com o texto e com o contexto? Lógico que sim, já que o homem (o ser humano enfocado no poema, assim como milhões de outros como ele no mundo) , em face dos descasos dos governos, dos órgãos competentes, da própria sociedade e, muito provavelmente, por ser esquecido por sua família também, encontra-se abandonado à própria sorte, sem ter com que e com quem contar. Não era um tema fictício ou inatual naquela época a denúncia social, nem o seria agora, mais atual ainda do que nunca. É o ser marginalizado, animalizado pela degradação que o atinge física, psicológica e socialmente -- e não por sua escolha, lembremo-nos --, assumindo, aos olhos dos desinformados, ‘atitudes de bicho’.

Contudo, se o primeiro verso (“Vi ontem um bicho”) desperta o leitor para o sentimento da indignação pelo cruel e grotesco destino do “bicho”, e de milhões de desvalidos tais como ele mundo afora, já o último verso (“O bicho, meu Deus, era um homem”), permite o resgate da humana condição do ser, uma redenção, mesmo que apenas no plano do poético. Porém, um poético chocante, pois Bandeira expõe nua e cruamente a dura realidade que a hipocrisia da sociedade capitalista e de consumo tenta escamotear: a existência de centenas de milhões de deserdados das benesses sociais, pessoas que a miséria e o abandono, sem nenhuma dúvida, arrastam para uma condição de quase desumanizados.

Bandeira, por isso tudo, é testemunha de seu tempo e das mazelas sociais de então. Com aparente singeleza, constrói um poema que emociona e desperta para a reflexão, para perguntas imperiosas e que requereriam respostas mais que imediatas: Por que se abandonou o homem? Quem ganhou e ainda ganha com isso? Por que não revolucionamos essa sociedade falha? Podemos -- a curto, médio ou longo prazo (quem dera fosse a curto!) -- solucionar as questões sociais?... Ora, quem diria... É um pequeno-grande poema de um poeta gigante. Viva Bandeira!

E para quem o desconhece, aí vai “O bicho”:

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio,

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão.

Não era um gato.

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.