A Busca do Poeta pelo Desconhecido, Um Comentário.
“Que se arrebente no salto rumo às coisas inauditas e inomináveis: outros trabalhadores horríveis virão; e começarão pelos horizontes onde o outro sucumbiu!”
(Arthur Rimbaud)
O trabalho do poeta é um trabalho de morte.
Antes de qualquer divagação sobre a Poesia, é devido que se esteja ciente: precisa-se morrer. E isto não é um aviso, é uma constatação. A busca necessária do poeta, tal qual seu “trabalho” é uma busca absurda. É preciso, ainda que em vida, encarar de forma inaudita a morte; matar a si mesmo, e seus fantasmas, numa catábase pelo desconhecido da alma. Uma alma que se multiplica e se torna várias, um Eu que se conhece como Outro.
É uma jornada que se inicia muito antes de termos consciência de que estamos caminhando, mas é necessário ter consciência, para que de fato ela se inicie. Seus sinais são claros, mas estão todos encobertos por véus que precisam ser desmembrados, e novamente costurados, - e que isso seja feito por mãos hábeis! Que consigam firmemente segurar o fio sem deixar que ele se rompa, mas que o permita nodificar - formando pausas e novos tecidos. É preciso ouvir o Vazio, deixar que se soe por dentre os ouvidos o silêncio, e que dele se tire sussurros e orações, pistas do desvelar, que desvendem atalhos demorados, e nos guiem durante as curvas mais estreitas e sombrias. Tanto o Leitor, quanto o Poeta, têm de escutar o Vazio, desaventurá-lo, desfigurá-lo, sem jamais tapar os ouvidos, que atentos sempre devem estar ao som do Nada, que se levanta e se retrai, para que assim, se descubra o caminho por onde tateante segue, e tome razão de porque está ainda a percorrer.
Quando se depara com a sombra do abismo de si, tal como na epopéia grega, encontra-se um barqueiro que irá cobrar-lhe pela travessia, mas a moeda que será a ele entregue, terá de ter estampada a sua face. O seu eu, persona, precisa ser deixado para trás a fim de que se possa ter a passagem para o inaudito. Neste pagamento está contido o primeiro sacrifício do Poeta, a primeira morte de si, que dará inicio à busca pelo desconhecido.
Abandonando-se a si, entra-se em um labirinto, e cada constatação torna-se absurda. Ao poeta, tudo parece singular, e o mais costumeiro habito não demonstra familiaridade nenhuma. Habita nas estranhas de si o eterno começar, e tudo torna-se um jogo, um jogo onde as experiências são despudoradamente dissecadas, elevadas, exaltadas, onde o poeta, com a pena, entusiasma-se, afundando-se em si mesmo, aprofundando a tinta em sua carne. No entanto, sabendo que esta é uma brincadeira perigosa, séria, e cruel: as apostas são pagas com a alma, e com a própria vida. Cada descoberta, cada carta mal posta à mesa, cada pequena vitória, cada derrocada de amor, indicam uma nova passagem por dentro do labirinto. E assim, o artista vai-se deixando, esquecendo aos poucos, dependurando as máscaras usuais à porta, e adotando novas máscaras, mais finas, que não mais protegem o rosto e a identidade, mas deixam-as a mercê de todos os possíveis arranhões e ferimentos, cicatrizes cultivadas através dos despenhadeiros, das flechas, das armadilhas implantadas dentro de si mesmo, e então, quando o caminho for clareando, e parecer assombrar-lhe uma saída, estará diante de um lago, das mais negras águas, e no entanto verá refletido o seu rosto: Um rosto que já não é mais seu. Pois, tornou-se Outro. Inominável e sem nome; Assim, com a alma posta em chamas, e com o Eu tornado à origem, terá cometido o segundo sacrifício, o cumprimento do tratado. E agora, sem identidade, poderá seguir adiante, através do deserto do indenominável e da morte, na sua busca imensa pelo Nada.
“Agora se entende o lugar que ocupa a obra de arte. Ela marca ao mesmo tempo a morte de uma experiência e a sua multiplicação”. Disse Albert Camus, em seu consagrado livro “O Mito de Sísifo”, onde trata, de forma geral, a relação entre o sentimento do absurdo e da aspiração ao nada, com o suicídio. Fazendo um paralelo, podemos considerar que este lugar que, para Camus, a obra de arte ocupa, também é ocupado, não mais que obviamente, pelo artista. No entanto, este espaço é preenchido de outra maneira, não só a vivência da experiência é levada ao último limite, e assim, exaurida, tornando-se várias outras experiências, inovadoras e desconhecidas, mas o artista também o é. Quando cria, além de viver duas vezes, o artista vive-se outro. Com o espírito exaurido de seu antigo jogo, ele se reproduz, toma outro timbre, outra forma, outra coloração, e dá à si a condição de metamorfo. Amorfo ou de forma ignóbil, o artista cria sua obra, e torna-se monumento, sem identidade própria, mas um conjunto de “personagentes” que modificam-se ao decorrer do seu trabalho de amadurecimento e de criação incomensurável.
No entanto, ainda falta um sacrifício a ser feito. E é neste último (?) sacrifício que se fundamenta o trabalho do poeta: É preciso dar o salto.
É preciso romper com tudo; encarar, sem titubear ou fugir, o Nada. Pular através do abismo, com a lúgubre certeza de que não chegará ao outro lado sem tombar à fundo. Mas é preciso tal coragem. E este, diferente de todos os outros sacrifícios, é um sacrifício consciente, e que acima de tudo, só pode ser cometido pelas próprias mãos.
Depois de tornar-se estrangeiro para si mesmo, e para o antigo mundo familiar que o rodeava, o Poeta, precisar ir além, e sua função fundamenta-se nesta coragem aparentemente insensata e irresponsável. Pois tal como o herói-trágico (que se define por uma desmesura), seu papel é pré-potente; Mas, de uma prepotência necessária e consciente. Pois é preciso estar de acordo com sua efemeridade, mesquinhez, e transitoriedade. Inserido no âmago da condição humana (pois antes de qualquer coisa, o homem é um animal Poético), ele (o poeta, o artista, o criador...) sente o ímpeto de superá-la, indo além e através do Ser, e do ser vidente, - conceito já tão bem trabalhado por Rimbaud em sua carta a Paul Demeny, e por todos os seus seguidores seculares - tomando assim, a ousadia imortal, e roubando o fogo inaudito do interior do desconhecido. Toma a chama para si e para o mundo, pois contemplando intrinsecamente os olhos do Nada, o poeta recebe-o de maneira brusca e crava seu nome nas entranhas da eternidade humana, comparando-se à um deus e desafiando, através de sua revolta e rebeldia, todos os outros deuses (e mortais).
E esta constatação de morte e criação pelo desconhecido fundamenta, no Poético, o absurdo. Através de uma nadificação institui-se o mais profundo e fundamental instinto humano: o de criação. Deixando com o poeta este gozo eternamente suicida. Pois o Poeta tem de estar aberto para a amplitude do mundo, a partir da negação do Eu, podendo com esta transgressão tornar-se vários e nenhum. E esta abertura tem de ser pura, por crucialmente lidar com o indizível, permitindo assim ao poeta, no seu salto mortal, transpor até o outro lado do Inapreensível.
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Bibliografia:
Camus; ALBERT: O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch.
Rio de Janeiro – 5ª edição – Record.
Rimbaud; ARTHUR: Carta de Rimbaud à Paul Demeny, escrita dia 15 de maio de 1871.