Soneto Único de Guilherme de Almeida - Análise Literária.

Guilherme de Almeida em seus primeiros livros Nós (1917), a Dança das Horas, Messidor, O Livro de Horas de Sóror Dolorosa e Era uma Vez marcam algumas constantes da poesia de Guilherme de Almeida: a temática crepuscular; a técnica parnasiana (o soneto com chave de ouro, a métrica portuguesa); o caráter sensual e estetizante; o virtuosismo a formação clássica apoiada em sólido conhecimento do Grego e do Latim e da cultura renascentista; o pendor para a heráldica e a inclinação para o passadismo.

Guilherme de Almeida pertenceu só episodicamente ao movimento de 1922. Não bastasse sua produção poética, suas atitudes comprovam essa afirmação: foi o primeiro "modernista” a entrar para a Academia Brasileira de Letras (1930), quando ainda sangravam as feridas dos combates entre os rebeldes de 22 e os imortais. (Mário e Oswald desferiram suas farpas contra esse "trânsfuga" do Modernismo). Em 1958 Guilherme de Almeida foi coroado o quarto "Príncipe dos Poetas Brasileiros" (depois de Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia), o que bem demonstra o estofo parnasiano e beletrista de suas atitudes.

A popularidade Guilherme de Almeida deriva de sua adequação aos padrões vigentes e ao gosto do leitor médio. Mesmo na sua fase de mais "radical" modernidade, foi dos poucos poetas aplaudidos durante a Semana de Arte Moderna, prova de que, no fundo, jamais rompeu com a poesia convencional.

As traduções de Sófocles, Baudelaire, Omar Kayan, Tagore; a realização de delicados hai-kais; as rimas riquíssimas ("olhos” \ "molhe os", "lágrimas” / “milagre mas"); a métrica impecável; as derivações imitativas dos sonetos de Camões e das cantigas dos trovadores medievais, são alguns dos momentos mais felizes, dentro da proposta de uma poesia voltada para o malabarismo, para a habilidade, para a técnica e , não raro, para o efeito, para a arte pela arte. É o que se nota na fase de maturidade do poeta- Você (1930), Acaso, Camoniana, Pequeno Cancioneiro, Poesia Vária etc.

Contribuiu para aumentar a popularidade de Guilherme de Almeida o fato de ele ter sido o intérprete literário de alguns movimentos históricos como: a Revolução Constitucionalista de 1932 (MMDC), que inspirou os versos de Moeda Paulista, Nossa Bandeira, Piratininga; a ida dos pracinhas à II Guerra (Canção do Expedicionário); o IV Centenário de S. Paulo ( Acalento de Bartira); a fundação de Brasília.

A importância deste poeta, primeiro modernista na Academia Brasileira de Letras, tradutor de Tagore, autor de versos elegantes em composições sofisticadas em diversas formas, nos conduz a um olhar mais atento a estrutura de suas composições.

Chama a atenção sua versificação delicada com efeitos e condução desenvolvidos no propósito de dotar de fluência e naturalidade, este precioso talento para a composição.

É de Guilherme de Almeida a próxima análise literária.

SONETO ÚNICO

Vejo a sombra partir-se pelo meio

e pôr-me duas pálpebras na face;

minha boca de sede bebe o seio

de alguma estrela que me amamentasse;

tem um peso de terra o corpo alheio

que há no meu corpo; em meus ouvidos nasce

uma árvore cantando um vento cheio

de céu em cada enlace e desenlace;

em minhas mãos paradas pousam ninhos;

vão os passos de todos os assombros

andando as minhas veias de caminhos;

e há, para o vôo aceso numa aurora,

pressentimentos de asas nos meus ombros

— quando a Moça da Foice me namora.

Aspectos de versificação.

Para realizar anotações relevantes sobre o ritmo, realizei a escansão observando a acentuação clássica portuguesa, utilizada com maior freqüência pelo poeta visitado.

A construção do verso obedece a um esquema rítmico preestabelecido onde heróicos ora iniciam em jambo ou anapesto, esta variação realiza uma declamação precisa para os efeitos sonoros realizados em alguns versos.

Exemplos: no verso quatro as duas elisões pré-tônicas acelerando a declamação e a seguir um grupo de bilabiais que força uma dicção cadenciada; no verso oito a fluidez da aliteração em /c/ com a sonoridade da rima preciosa em paradoxo em “enlace e desenlace”.

É possível considerar o propósito destas ocorrências específicas nos versos que encerram as estrofes de desenvolvimento do poema, tensão rítmica e confrontação semântica, quando a imagem construída busca significação subjetiva devido à limitação que a imagem de superfície apresenta.

Os tercetos são abertos com pentâmetro jambico e heróico em um ritmo binário bem acentuado e versos impecáveis em sua realização. Para favorecer a compreensão dos elementos empregados devemos observá-los em dois movimentos, isolados e fundidos como fossem uma estrofe única.

Há aspectos sutis relativos as subtônicas que buscam o ritmo binário como na acentuação mais evidente na composição, em algumas situações o heróico aproxima-se do pentâmetro ou flerta com o sáfico, enriquecendo ainda mais a condução do ritmo do poema.

As aliterações em /m/, /p/ e /s/ realizam efeitos de superfície tornando a declamação grave e cadenciada, os versos dez e doze criam uma quase sinestesia por conta da aliteração em /s/, criando fluidez e leveza, que explicita-se objetivamente como preâmbulo da chave de ouro “pressentimentos de asas nos meus ombros”.

Outro aspecto importante a considerar neste poema é o cavalgamento, enjambement, onde o verso completa sua imagem no verso seguinte se desconectando da unidade sonora, realizar tal efeito exige atenção ao ritmo da declamação de modo que a pausa não prejudique a compreensão e o nível semântico não obscureça por conta da sonoridade. Quando o cavalgamento se realiza em toda sua plenitude suas dimensões semânticas se abrem pela subjetividade que esta ruptura de sentido costuma provocar.

SONETO ÚNICO

Ve/ jo a/ som/bra/ par/tir/-se/ pe/lo/ mei/o (H- 3,6,10)

e/ pôr/-me/ du/ as/ pál/ pe/ bras/ na/ fa/ce; (H- 2,6,10)

mi/ nha/ bo/ ca/ de/ se/de/ be/ be o/ sei/o (H- 3,6,10)

de al/ gu/ ma es/tre/ la/ que/ me a/ ma/men/ta/sse; (H- 2,4,6,10)

tem/ um/ pe/ so/ de/ te/ rra o/ cor/ po a/ lhei/ o (H- 3,6,10)

que há/ no/ meu/ cor/ po; em/ meus/ ou/ vi/ dos/ nas/ ce (H- 3,6,10)

u/ ma ár/ vo/ re/ can/ tan/ do um/ ven/ to/ chei/ o (H- 2,6,10)

de/ céu/ em/ ca/ da en/ la/ ce e/ de/ sen/ la/ce; (H- 2,4,6,10)

em/ mi/ nhas/ mãos/ pa/ ra/ das/ pou/ sam/ ni/ nhos; (H- 2,4,6,10)

vão/ os/ pa/ ssos/ de/ to/ dos/ os/ a/ ssom/ bros (H- 3,6,10)

an/ dan/ do as/ mi/ nhas/ vei/ as/ de/ ca/ mi/ nhos; (H- 2,6,10)

e há,/ pa/ ra o/ vô/ o a/ ce/ so/ nu/ ma au/ ro/ ra, (Pentãmetro)

pre/ ssen/ ti/ men/ tos/ de a/ sas/ nos/ meus/ om/ bros (H- 4,6,10)

— quan/ do a/ Mo/ ça/ da/ Foi/ ce/ me/ na/mo/ ra. (H- 3,6,10)

Anotações sobre o nível semântico.

Este soneto realiza alguns efeitos consideráveis na sua dimensão semântica e em qualquer leitura apresenta uma abertura ascendente para os seus significados. O tempo apresentado pelos verbos estabelece do presente ao presente continuado (gerúndio) ação e reflexão em igual medida.

Duas realidades projetadas pela sombra fendida em duas partes apresentam aspectos de subjetividade ao poema, sombrio representa desconhecido ou indeterminado, tratando-se primeiramente da dimensão de bem e mal, céu e inferno podemos admitir que haja o desejo (sede) de acreditar, sentir-se alimentado pela estrela (sol), como referencial celestial ou divino.

O corpo alheio da segunda estrofe que pesa no eu - lírico, seja alma ou centelha divina, almeja alguma coisa que dê sentido aos movimentos que ele descreve como “enlace e desenlace” na dinâmica dos eventos que fogem de sua compreensão, mesmo viver e morrer.

Os tercetos são a preciosidade desta lição de composição, neles o poeta transmuta o eu – lírico em árvore, numa metáfora insinuada na segunda estrofe que se realiza abertamente no primeiro terceto e a existência passa a ser a experiência de assombros no caminho, tudo que traga coerência e conforme sua noção de existir.

Há em seguida um movimento de esperança, representado pelo vôo buscando a aurora, que o torna pássaro ou anjo em “pressentimento de asas nos ombros”, o anticlímax do verso treze estabelece a tensão que permeia todo o poema, e viver é enfim definido como um permanente flerte com a “Moça da Foice”, a morte.

Há, por certo, outras leituras possíveis, de maior ou menor abrangência, mas é na riqueza da subjetividade que um texto poético confronta o tempo e conforma sua lição cabal influindo sobre novas janelas para ver o mundo.

Tratamento estilístico:

Este poema realiza imagens e efeitos em dois tempos distintos, na unidade verso a figura criada estabelece parte de um significante que disposta dentro da estrofe amplifica seu alcance, fazendo a leitura desprender-se do poema.

O nível léxico empregado traz um vocabulário informal oriundo do cotidiano para conduzir a uma experiência de introspecção literária de alto nível, ou seja, com ingredientes simples realizar uma criação sofisticada e de largo alcance.

As figuras partem de suas unidades significativas para contornar de forma subjetiva a imagem que a leitura conduz para o desvendamento, o emprego preciso desconstruindo a dimensão denotativa do texto produziu sugestões e imagens que realizaram a densidade do poema e o que inicialmente era tensão tornou-se gravidade.

SONETO ÚNICO

Vejo a sombra partir-se pelo meio

e pôr-me duas pálpebras na face; - Metáfora

minha boca de sede bebe o seio - Eufemismo

de alguma estrela que me amamentasse; - Prosopopéia/Aliteração em /s/ e /m/

tem um peso de terra o corpo alheio

que há no meu corpo; em meus ouvidos nasce - Metáfora

uma árvore cantando um vento cheio - Prosopopéia

de céu em cada enlace e desenlace; - Aliteração em /c/

em minhas mãos paradas pousam ninhos;

vão os passos de todos os assombros – Aliteração em /s/

andando as minhas veias de caminhos; - Metonímia

e há, para o vôo aceso numa aurora,

pressentimentos de asas nos meus ombros – Aliteração em /s/

— quando a Moça da Foice me namora. – Perífrase

Ao realizar a leitura analítica de um texto qualquer, longe de estar destruindo a beleza pretendida, estamos, de fato, desvendando os valores que diferenciam um texto de outros; talentos devem ser maturados, submetidos à crítica, ao convívio com o confronto sob pena de mistificação.

Há quem diga que poesia não careça de analise ou interpretação, há ainda quem estude e consiga realizar grandes interações com textos poéticos em qualquer tempo, são duas teses díspares, será que alguém tem razão?

Minha posição admite as duas vinculações, somos razão e emoção a todo tempo, algumas vezes prevalece uma das faces apontadas, então cada pessoa haverá de adequar sua abordagem para melhor acomodar a sua natureza; a minha literatura passa pelo propósito racional, quer dizer, atende a uma finalidade estabelecida que conduzo conscientemente; então, ao menos para mim, é possível mensurar e analisar, nesta arte como em tantas outras.

Saudações,