Cacófatos, casos de humor 

                                                                 (Hélio Consolaro* ) 

O ensino da Língua Portuguesa no Brasil foi muito repressor, pois os professores passavam seu tempo a procurar defeitos na linguagem dos alunos e a acusá-los, com o dedo em riste, como se meninos e meninas fossem criminosos hediondos. Reprimiam em vez de ensinar. Como se fossem donos da língua.

Os estudiosos da gramática tradicional denunciavam publicamente galicismos, vícios de linguagem.O autor de algum erro tinha de vir a público fazer sua defesa, apoiar-se nos clássicos, invocar autores consagrados que lhe avalizassem a frase suspeita.

Nem Machado escapou! Só Camões passou livre, mas assim mesmo cometeu cacófato, quando escreveu: "Alma minha gentil que te partiste" bem na entrada de um de seus sonetos: falou maminha.

Segundo o professor Cláudio Moreno, foi um tempo de trevas para os estudos do português. Estudiosos da língua e professores de Português eram inquisidores, aliados aos maus poetas do Parnasianismo.

Essa época deixou marcas profundas no ensino do idioma pátrio, pois se confunde até hoje o ensino do português com o de gramática. E ainda, segundo o professor Moreno, tais estudiosos e professores gramatiqueiros falam, sem moral alguma, da crise atual da linguagem. Não construíram nada, suas ranhetices foram ignoradas.

Uma das preocupações eram os cacófatos, classificados pelos tradicionalistas como "palavras torpes, obscenas ou ridículas", que eram formadas por aqueles encontros casuais das sílabas finais de um vocábulo com as iniciais do outro.

Exemplos:

"Não pense nunca nisso" Falou caniço.

"Já que tinha resolvido ..." Falou jaquetinha.

"O irmão pôs a culpa nela" Falou panela.

"Existe uma herdeira" Falou merdeira.

Na verdade, o leitor que faz leitura silenciosa sequer percebe tais cacofonias, e necessita-se apontá-las com o dedo, sublinhá-las para que o leitor finalmente se dê conta de que elas podem estar ali.

Foi por causa do cacófato que chegaram a propor o uso do apóstrofo (na escrita) em expressões como "u'a mão", para evitar o som "mamão" na fala.

Hoje só se admite uma certa preocupação com os cacófatos no caso da tevê e do rádio, e, mesmo assim, dificilmente o ouvinte vai fazer essas segmentações tendenciosas. Só mesmo quando o efeito é gritante.

Sérgio Nogueira, da revista Seleções, apontou na transmissão do jogo Brasil e Coréia, em que ouviu "Fábio Conceição pediu a bola e Cafu deu". Nesse caso, não se pode deixar de ouvir, como também no famoso "chuta Neneca, gol!".

Na verdade, há um uso humorístico do cacófato, que o autor faz questão de sinalizar para que todos percebam. Uma receita fornecida em que a apresentadora fala: "Amasse sal e alho no aparelho de socar alho". Em seguida, com sorriso maroto, diz: "Perdão pelo cacófato inevitável!"

Ou ainda de um quadro do Moacyr Franco, no programa A Praça é Nossa em que ele interpretava um tal de Jeca Gay.

E é com esse espírito que o professor Cláudio Moreno relembra uma pequena estrofe que costumava recitar no seu tempo de ginásio:

Lá, onde

Abunda a pita,

E a doce flor
No cume cheira.

* Hélio Consolaro é cronista diário da Folha da Região, coordenador deste site, professor de Português, autor de três livros e membro da Academia Araçatubense de Letras.



Observação de internauta

A esse tipo de preocupação, sinceramente, não me prendo tanto - salvo raras exceções, claro. Já até usei este termo 'na alma minha' em uma de minhas poesias. Pedia isso. Não houve como colocar 'na minha alma'....
Já li um comentário sobre esse "deslize" de Camões, com a justificativa de que o vocábulo "maminha" não existia quando Camões escreveu tal verso...
Achei interessante, curiosa a colocação que fizeram. E se formos parar pra pensar, verdade ou não, quantas situações podemos ter em que foram encontrados cacófatos quando nem havia este ou aquele vocábulo?...
Abraços...
Rosinha Rosa 

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