18/04/09
 
     8:30 já! A droga desse despertador não tocou de novo! Agora tenho que sair sem banho e sem café. O Jailson vai falar um monte quando me vir chegando atrasado. Também, quem inventou essa coisa de aulas aos sábados? E pela manhã, pra ajudar! Cadê minha calça? Putz! Acabou a calça limpa. Lá no cesto de roupa suja deve ter uma com cheiro razoável. Deixa eu ver: esta está ótima. Nem parece que usei ontem. Pronto, tá tudo aqui: telefone, carteira, dinheiro, pen drive, chaves... acho que dá pra tomar um café rápido na padaria. Afinal, vai ser impossível agüentar o falatório daquele professor sem um aditivo despertador.      

     - Bom dia, Seu Renato! Tudo certo?
     - Tá sim. Sem novidade.
     - Falou! Até mais!
     - Boa aula, Pedro!
     - Valeu!
 
     Esse Renato é mesmo um figura, conhece o pessoal do edifício todo, inclusive os adjacentes, faz de tudo pra agradar a todos. Bem, deve fazer parte da função de porteiro. Parece um pouco com a de jornalista: sabe tudo de todos, tenta ser imparcial e não se envolve nem se aprofunda em assunto nenhum. Por isso escolhi essa carreira, não estou nem um pouquinho interessado em mudar o mundo, mas quero saber e contar quem o fez, quando, e por que.

     - Bom dia!
     - Oi, moço! Pingado e pão na chapa?
     - Não. Hoje, só um cafezinho com leite. Acordei atrasado.
     - Ficou até tarde na balada ontem, né?
     - Pior que não, Silvia. Eu tava era cansado mesmo. Trabalhar durante o dia e estudar à noite não é fácil. E o jornalismo é só correria. Por mais facilidade de comunicação que tenhamos hoje em dia, a gente precisa estar sempre na rua. Ainda mais nessa cidade que quase não produz pauta.
     - É. Entendo. Taubaté é meio parada mesmo.
     - Não é isso. Acontece que jornal vive de notícia, de acontecimento, e eu, na verdade, me interesso pela área de cultura, e como aqui o pessoal que produz arte não é lá muito ativo nem inovador, tenho que caçar outras novidades pra entreter o leitor, e, geralmente, consigo apenas notícias sobre política. Esses sim, os políticos da região, inventam falcatruas e picaretagens quase que diariamente.
     - É...
     - Bom, preciso andar. Quanto é o café?
     - Noventa.
     - Tá aqui. Trocadinho.
     - Obrigada.
     - Até mais.
 
     Como é difícil conversar com as pessoas dessa cidade! Elas levam tudo pro lado pessoal. Só estava relatando um fato real e concreto, e ela parece achar que estava lhe chamando de caipira. Além do mais, ser caipira é até motivo de orgulho, eu também sou, sou dessa terra de bandeirantes, de mineradores, de cafeicultores e de tudo mais que engrandeceu nossa terra de cidades mortas, até a chegada de Lobato com seu Jeca Tatu. Mas as coisas mudaram, e muito. Taubaté ficou com tanto medo de perder o controle sobre sua cultura, baseada em raízes e tradições de sua gente, que nem isso tem mais. Cidades vizinhas apostaram no futuro, e aumentaram seu IDEB e sua arrecadação, abriram suas portas para o estrangeiro e sua cultura, e conseguiram fazer resgate de suas tradições e mantê-las vivas e criativas, exatamente por servirem de contraponto ao que vinha de outras bandas, contribuindo para a riqueza da diversidade, se opondo à pobreza da monocultura taubateana.

     - Bom dia, Emerson!
     - Bom dia!
                
      Esse também é porteiro, mas parece menos interessado em se comunicar do que o Renato lá do edifício. Talvez as pessoas aqui na faculdade se comuniquem tanto que o Emerson fique até cansado de saber tanto, ou fique encabulado por todos quererem saber tanto, sobre sua vida, sobretudo.
                
       Aula de sociologia. Professor Jailson. Quando vi a disciplina como parte do currículo da faculdade, achei interessante, mas esse Jailson... é difícil de engolir. O cara se gaba por ser o professor comedor do curso, leu uma porralhada de filósofos e a única coisa pra que isso serviu foi pra ele se mostrar pedante e levar as calouras pra cama, e, de preferência, as lourinhas. Um professor de sociologia afro descendente, que tem fetiche por alunas novatas, brancas e, como ele diz, alienadas, isso daria um bom roteiro pra cinema, ou talvez um estudo comportamental psicológico. Qualquer dia converso sobre isso com a Bruna.
                
       - Senhor Pedro de Alcântara, o Senhor sabe que de imperador só tens o nome, não é? Então não lhe pedirei mais uma vez para que chegue no horário estipulado pela universidade, junto com seus colegas, que têm as mesmas dificuldades que o senhor.
      Eu sabia que ele não iria perder essa oportunidade de chamar minha atenção. Agora vai me perguntar sobre a leitura recomendada pra hoje e me submeter novamente, por ter assistido a um documentário a respeito.
 
       - O Senhor leu Darci Ribeiro, “Casa Grande e Senzala”, como a grande maioria nesta sala o fez?
       - Não. Mas assisti aos documentários “Casa Grande e Senzala” e “Povo Brasileiro”, ambos com a participação do próprio Darci Ribeiro.
       - Muito bem, Senhor Alcântara! O Senhor já está pronto para o mercado de trabalho no ramo de comunicação, onde não se encontra leitores, e somente televisionários. Se queres um diploma, lhe entrego um agora, o meu, já que não queres aprender e, logo, eu não posso ensinar. Então o Senhor poderá se empregar e continuar massificando a comunicação que já virou geléia geral há muito tempo.
       - Espera, Jailson, já te falei muitas vezes que entrei nesse curso por que queria mesmo ser cinegrafista, e nem penso muito além disso. Sempre gostei de documentários, e esse é meu interesse maior, não pretendo ser acadêmico, escritor, intelectual nem bambambam de coisa nenhuma, por tanto, o que precisava saber sobra Darci Ribeiro consegui captar através dos documentários a que assisti, inclusive como se produzir um.
      - Muito bem, Geléia Geral, continuemos então...
 
      Eu sabia.
 
 
 
 
 
     - O Jailson pegou no teu pé mesmo, heim, Pedro? Eu vou querer um café, por favor.
     - Pra mim também. É, Ana. Já faz tempo que tento ficar na minha, não falar muito, fazer o que se pede, mas qualquer deslize se torna motivo pr’uma tempestade de desaforos.
     - Você percebeu, Ana, que o Jailson discursava como se tentasse convencer alguém da superioridade do povo mestiço brasileiro. Vamos sentar ali! Tem lugar pra três.
     - Sim, Wander. Será que ele tava tentando seduzir outra caloura ou se impor ao nosso amiguinho branquelo aqui.
     - Aí é que tá: vai saber? Vai ver ele resolveu repensar seus conceitos sexuais e anda querendo discutir isso com nosso D. Pedro.
     - E, cara, sai que é rolo! Já te falei que tô satisfeitíssimo com minha sexualidade, ainda mais com uma mulher como a Bruna do meu lado.
     - Só que ela nem é tua mulher nem tá do teu lado agora.
     - Não, mas é como se fosse, além de namorada, é amiga, irmã e mãe.
     - E também não tá do teu lado, mas é como se estivesse.
     - Pois é, meu caro.
     - Mas, quando você bebe, vira uma moça.
     - E é quando mais tenho vontade de estar com ela.
     - Pois, se você se descuidar, eu te dou uns amassos da próxima vez que te encontrar no bar, chorando tuas mágoas de novo.
     - Puta que pariu! Por isso que tem tanta gente homofóbica no mundo. O cara tenta ser compreensivo, aceitar a diversidade, e acaba por ser desrespeitado em sua individualidade. Vai à merda, meu! Esse negócio de amigo gay não existe.
     - Hum, que grosseria!
     - Calma, Pedro! Porra! Você também é foda, Wander!
     - Que culpa tenho eu da paixão do Jailson por esse daí.
     - Falou, pessoal. É melhor eu encontrar com a Bruna lá na psicologia. Até mais.
 
     Bolas! Só o amor salva.
 
 
     Se não fosse a Bruna, acho que já teria feito muita besteira por aí. Sempre que meu sangue ferve, a imagem dela me vem e eu me seguro um pouco mais.
Feliz dia aquele em que ela se aproximou de mim enquanto assistíamos a palestra do Caco Barcelos durante a Semana de Comunicação. Foi, realmente, um encontro mágico: sempre me interessei muito por psicologia e conflitos sociais e, de repente, uma psicóloga em formação aparece a meu lado em um debate sobre jornalismo e sociedade. Depois que minha mãe faleceu, ela se tornou meu único porto seguro, e olha que não é fácil agüentar minhas paranóias e inseguranças, se eu e ela não nos casarmos, acho que passarei a vida toda procurando-a em outras mulheres.
     Prédio da medicina. Nunca entendi por que o curso de psicologia foi instalado na faculdade de medicina. Pra mim, ele deveria fazer parte do núcleo de filosofia, afinal, trata-se de uma área do conhecimento muito mais investigativa do comportamento do que dedutiva baseada em conhecimento químico e fisiológico. Mas... sou apenas um estudante e jornalista em início de carreira, os mestres e doutores devem saber muito bem o que fazem, eu não conheço nada além de mim e de minha Canon XH.
     Bem! A bruna costuma ficar aqui nessa praça, com alguns colegas de curso, logo que sai da aula. Ali, ela! Conduzindo as discussões, como quase sempre. Essa garota tem um grande futuro pela frente; articulada, simpática, comunicativa, inteligente e, principalmente, cheia de idéias e vontade.
     - Bruna!
     Ela acenou. Sinal que não vou atrapalhar se me aproximar.
     - Oi, Pê! Como foi sua manhã de sábado com o Jailson?
     - Outra manhã perdida em minha vida. Se esse cara tem alguma coisa a me ensinar, é como não devo agir com as pessoas. Pra variar, cheguei atrasado novamente. Sem contar que não havia lido o que ele recomendara. Aí, ele pegou no meu pé de verdade. Falar sobre o fato das pessoas não lerem hoje em dia foi pouco pra ele. Virei o inculto do curso, um belo exemplo a não ser seguido. O Wander também tava foda hoje. Depois da aula, começou de novo com aquele papinho furado dele...
     - Começou a dar em cima de você?
     - É. E, dessa vez, parecia que ele realmente quer cumprir o que promete. Falou que ia me dar uns amassos quando me visse sozinho no bar outra vez.
     - Pode ficar sossegado, que ele pode até tentar, mas eu sei que ele não vai conseguir nada. Eu conheço muito bem meu namorado.
     - Onde agente vai almoçar hoje?
     - Eu falei pra minha mãe que almoçaríamos com ela hoje, mas acho que você tá precisando muito mais de mim do que ela de nós, não é?
     - É.
     - Então... a gente se despede do pessoal aqui, passa no supermercado, compra algumas coisas e leva pro teu apartamento. Tava afim de fazer um estrogonofe hoje. Que achas?
     - Hummm! Enquanto você faz o estrogonofe, eu preparo um sagu, que tal?
     - Faz tempo que eu não vejo isto, achava até que não existisse mais!
     - Pois é. Vi uma caixinha outro dia e resolvi comprar, me deu saudade dos tempos de infância.
     - Mas é um menino mesmo!
cimatti
Enviado por cimatti em 11/01/2010
Código do texto: T2024090
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