SEGUNDA PARTE


Paulo Camelo apresenta assim o seu perfil: Médico aposentado... Isso está correto, mas o ponto em que esse relato começa omite algo fundamental a respeito do homem e do poeta. Ele mesmo diz:


Nasci pobre, de prole numerosa.
O meu pai, um rapaz trabalhador
que no ano de trinta uma formosa
e prendada donzela desposou,
teve dúzia de filhos (seis casais),
criou dez na pobreza e na decência
- o oitavo fui eu, quinto rapaz,
outras duas findaram a descendência -
e, nos vendo alcançar independência,
atirou-se ao estudo e se formou.

(Paulo Camelo: E eu só queria votar...)


No início de Estética da Criação Verbal, diz Bakhtin que é absurdo fazer comparações factuais entre a visão de mundo da personagem e do autor, mas depois de esclarecer que a crença nessa identidade é falaciosa,  ele acrescenta que não está negando a possibilidade de comparar de modo cientificamente produtivo as biografias do autor e da personagem e suas visões de mundo e que isso possa ser eficiente para a análise estética.. Fazemos, pois, a ressalva de que não queremos explicar a obra pela biografia do autor, nem o autor por elementos presentes em sua obra. Sobretudo, isso escaparia ao nosso escopo e ao nosso conhecimento.

Temos por objetivo algo mais leve, mas ao mesmo tempo bastante revelador; quem sabe deixar um rastro para futuros apreciadores de sua obra. Ao expor um aspecto de seu trabalho que contraria a forma pela qual ele mais se dá a conhecer, a do Poeta que privilegia a temática do Amor, sinalizamos tanto para ele mesmo, quanto para seus leitores, o quanto de riqueza emerge toda vez que ele escreveu ou escreve sobre esse assunto, e mesmo, em sua ligação com os tipos de repentes e repentistas, o quanto dessa influência há.


UM PASSEIO PELO ENGENHO

RECORRÊNCIA TEMÁTICA EM PAULO CAMELO.

É Paulo Camelo quem diz: nasci no Recife, filho de senhores de engenho (para onde a família se mudara em 1945), ficando meu pai na obrigação de toda semana fazer uma viagem de trem, Bom Jardim - Recife - Bom Jardim, para dar assistência à família nos fins de semana e administrar o engenho durante os dias úteis. Assim era o cotidiano do garoto. Contudo, nas férias escolares, ele e os irmãos iam ao engenho; acompanhavam a moagem da cana, todo o mecanismo de moagem, fabricação de açúcar e de aguardente, o plantio de cana de açúcar, sua colheita e transporte. Mas eu era criança, continua, estava ali para brincar; minhas lembranças dão muitas linhas. Conversava com os moradores, seus filhos, ouvia suas conversas, suas histórias, e algumas delas fazem parte de minha memória.

Dentre os poemas já publicados por Paulo Camelo,, um outro aborda temática semelhante. Boi de coice, aponta para a questão da sobrecarga relacionada a um nível de exigência desmedido em relação ao que se pretende alcançar, sem considerar os sacrifícios e as consequências. O boi de coice tanto é forçado que acaba por sucumbir.

Boi de coice (Paulo Camelo)

Lá vão os bois, levando a cana fina,
a cana dura que cresceu na chã;
o carro geme no sol da manhã,
gritando ao mundo a sua dura sina.

Os bois de coice levam todo o peso,
os de cambão ajudam a puxar
o carro gemedor, bem devagar,
que ao seu pescoço se mantém bem preso.

A canga pesa, lhe dói a macaca,
o seu parceiro ao lado sofre mudo
e marca o passo no seu caminhar,

mas não demora muito e logo estaca.
Arreia os quartos num arfar agudo
e, sem gemer, encerra o seu penar.


Em minha leitura, o que se destaca, tanto no poema anteriormente analisado, quanto neste outro, é uma visão específica a respeito dos animais de tração. Além de usar a metáfora como instrumento de reflexão, o autor/ator/poeta revela um sentimento compassivo em relação aos animais. Isso não é o que mais comumente se esperaria de um filho de senhores de engenho. Na lida, os animais são considerados por seu aspecto utilitário e é isso que se pretende extrair deles; o máximo de proveito que se possa ter. Não há como avaliar essa influência, mas Raul Veríssimo, genitor de Paulo Camelo, segundo consta, foi um senhor de engenho com uma postura não usual para os parâmetros de sua época e mesmo, para os de hoje. Mais uma vez, o relato de Paulo:

Meu pai, filho único, aprendeu datilografia e, exímio datilógrafo, passou a ser secretário em uma loja de secos e molhados na cidade de Paudalho, Pernambuco, onde ele fazia quase tudo. Nas horas vagas era professor de datilografia. Seu tio, um professor conceituado naquela cidade, convidou meu pai, para ser secretário na novel prefeitura de Vicência, que seria elevada a município. Ele aceitou, e se mudou para lá; abriu a prefeitura, foi nomeado delegado de Educação. Foi convidado para ensinar datilografia a uma filha de um senhor de engenho da região, que morava no município. Iniciou-se, logo em seguida, um romance entre professor e aluna e o casamento dos dois. Logo depois, estourou a Revolução e papai perdeu o emprego. Meu avô, então, convidou-o a gerenciar um dos engenhos que ele tinha. Três anos depois, meu avô morreu e meu pai assumiu a propriedade, como herança que era de minha mãe. A administração do engenho não era fácil. Precisava de conhecimento em agricultura, em fabricação de açúcar e aguardente, administração de pessoal, segurança, além de outras atividades que complementavam tão complexa tarefa. Ele começou estudando tudo, aprendendo com os empregados mais experientes e, em pouco tempo, dominava a função. Mas não era uma atividade rendosa, como pensam os que nunca foram ao campo e leem acerca dos senhores de engenho e seus poderes.

Em Bom Jardim onde ficava a propriedade "Engenho Espadas", papai foi substituto de juiz -Juiz de paz- vereador, vice-prefeito. Naquele tempo não havia legislação trabalhista a respeito, e o dono da propriedade era também a previdência social dos trabalhadores, que eram chamados "moradores", pois recebiam uma área de terra para plantar suas lavouras de subsistência. Em contrapartida, comprometiam-se a trabalhar (com diária paga e tudo o mais) 3 vezes por semana para o engenho. Essa contrapartida fazia com que eles tivessem uma renda de manutenção durante a entressafra. Durante a safra, trabalhavam toda a semana.
Quando havia doença de algum morador, papai arcava com toda a despesa, inclusive locomoção para uma cidade, para hospitalização, quando o caso requeria. Lembro bem de um acidente de trabalho em que papai tratou do funcionário e garantiu-lhe uma renda, com pagamento semanal de sua renda de subsistência até sua morte.


A apropriação dos fatos relatadas pelo eu lírico traz os dois componentes integrados, tanto o fato de ser filho de senhores de engenho e ter experienciado as situações, guardando referências delas na memória, quanto o de ter sido filho de um homem distinto em sentido literal. Um homem vem do seu meio e do seu berço. Paulo Camelo era filho de um senhor de engenho, mas também de um homem letrado, à sua época Delegado de Educação, o que não é pouca coisa.

Em Sopotocas, seu livro de contos, há três deles em que a temática aparece de forma marcante, no uso contundente do vocabulário de um conhecedor, acima do nível daqueles que simplesmente pesquisam para escrever um texto. Em Acostumado com o dedo, encontramos logo no começo: (...) um senhor de engenho do tipo antigo, mas com idéias novas, estava aumentando sua plantação de cana (...). E queria pejar mais tarde, puxando a moagem até abril (...). A soca, em boa parte do terreno plantado, era boa e chegava até a tirar ressoca. (...) Com o mestre funileiro, aprendeu a rebitar caldeira (...),. Com o fornalheiro, foi aprendendo a tratar fogo com carinho (...). Com o mestre açúcar viu o modo de dar ponto ao mel, para que tivesse um melhor rendimento (...) com pouco mel-de-furo.

Nessas férias em que ia ao engenho, o jovem Paulo podia ver o feitor, o mestre de açúcar, o destilador, os cambiteiros, o carreiro, o maquinista, o foguista, os outros trabalhadores e ouvir os relatos das histórias de cada um. Não apenas isso; ele podia observá-los de perto e tirar suas conclusões. Conhecia os apelidos, os que viviam bêbados, e as histórias que serviam para animar as conversas. Em Os ovos há um relato sobre Zé Preto que levava alguns ovos, embrulhados em jornal para não quebrar. Em meio ao relato, surge Caetano: Bom tombador, (...). A rapidez com que desenlaçava o feixe e o punha entre os cilindros (...). E não deixava a moenda engasgar.

O vinhoto, um subproduto da destilação da aguardente é, ao mesmo tempo, um alimento e um tóxico para a terra. A terra era a terra. Servia para a plantação de cana. E havia os atoleiros de massapê, onde as crianças adoravam brincar, atolando as pernas e se sujando todas, comenta Paulo, a encerrar a entrevista.

Em Qualquer bola, ao contar um episódio sobre uma criança que supostamente ingerira uma bola de gude, há o invento do menino que queria montar uma caldeira: Severino acordara cedo e planejara fazer uma caldeira para mover seu engenho. Vivia estudando os mecanismos de manivela do Engenho de espadas onde passara umas férias de fim de ano. E queria fazer algo que se assemelhasse àquelas engrenagens: uma roda grande (a roda volante) e uma manivela que transmitisse a força da pressão ao mecanismo, para movimentá-lo. Mas faltava a caldeira. Como a faria? As latas de leite em pó que utilizava para fazer seus carros serviram-lhe de inspiração. (...) conseguiu uma e pôs água até o meio. Fechou-a com força e foi tentar aproveitar o fogo feito pelas meninas para assar castanha. (...) conseguiu outros dois tijolos e aumentou a –agora – fornalha da sua caldeira. Sobre eles colocou a lata de leite fechada. (...)um furo na tampa, para que ela salvasse, ao aumentar a pressão, evitando a explosão da caldeira. Era esse furo que, à passagem do vapor de água sob pressão, estava provocando aquele apito agudo (...) e ao ler apito agudo, ocorre uma divagação: a tal lata poderia mesmo estar produzindo tal apito, ou o sonho do ator por um momento poderia estar mesclado com o sonho do menino, misturando engenho e arte.

Nilza Azzi (publicado com autorização do autor).