POESIA ( Ideia, emoção e ritmo).
Há uma controvérsia entre Álvaro de Campos e Ricardo Reis, em que ambos, procurando “definir” poesia e prosa, tratam de ideia, emoção e ritmo.
O texto é longo, e dele me sirvo aqui com algumas citações, na busca também das mesmas elucidações de Fernando Pessoa, por via de dois dos seus heterônimos.
ÁLVARO DE CAMPOS:
“A poesias é aquela forma da prosa em que o ritmo é artificial. Este artifício, que consiste em criar pausas especiais e antinaturais diversas das que a pontuação define, embora às vezes coincidentes com elas, é dado pela escrita do texto em linhas separadas, chamadas verso, preferivelmente começadas por maiúsculas, para indicar que são como que períodos absurdos, pronunciados separadamente. Criam-se, por este processo, dois tipos de sugestões que não existem na prosa - uma sugestão rítmica, de cada verso por si mesmo, como pessoa independente, e uma sugestão acentual, que incide sobre a última palavra do verso, onde se pausa artificialmente, ou sobre a última palavra, se há uma só, que assim fica em isolamento que não é itálico.
Mas pergunta-se: por que há de haver ritmo artificial? Responde-se: porque a emoção intensa não cabe na palavra: tem que baixar ao grito ou subir ao canto. E como dizer é falar, e se não pode gritar falando, tem que se cantar falando, e cantar falando é meter a música na fala; e como a música é estranha à fala, mete-se a música na fala dispondo as palavras de modo que contenham uma música que não esteja nelas, que seja pois artificial em relação a elas. É isto a poesia: cantar sem música. Por isso, os grandes poetas líricos, no grande sentido do adjetivo “lírico”, não são musicáveis. Como o serão, se não musicais?”
RICARDO REIS:
“Diz campos que a poesia é uma prosa em que o ritmo é artificial. Considera a poesia como uma prosa que envolve música, donde o artifício. Eu, porém, antes diria que a poesia é uma música que se faz com idéias, em vez de com emoções. Com emoções fareis só música. Com emoções que caminham para as idéias, que se agregam idéias para se definir, fareis o canto. Com idéias só, contendo tão-somente o que de emoção há necessariamente em todas as idéias, fareis poesia. [...]
Quanto mais fria a poesia, mais verdadeira. A emoção não deve entrar na poesia, senão como elemento dispositivo do ritmo, que é a sobrevivência longínqua da música no verso. E esse ritmo, quando é perfeito, deve antes surgir da idéia, que da palavra.
De nada serve o simples ritmo das palavras, se não contêm idéias.[...]
RICARDO REIS:
“Um poema é a projeção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia. É tão-somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir palavras.
Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar, da própria disposição da mente, que campos estabelece. Desde que se use de palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual. A palavra contém uma idéia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente científica, que não resume qualquer suco emotivo. Por isso não há exclamação, nem a mais abstratamente emotiva que não implique ao menos o esboço de uma idéia.”
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Definir poesia seria desvendar o enigma que é o poeta. Este “fingidor” arcano, imprevisível, é um ator de si mesmo. Um ser plural que se vale da arte para expandir seus “eus” em diversidades de formas, sem grilhões de gêneros. O poeta é um pedaço de poesia de que é revestido o seu espírito em algum momento. Há poesia, na flor, na dor. No paraíso e no caos. Na prosa liricamente majestosa de Alencar, na crueza dos Servos da Morte de Adonias Filho, na profundeza do olhar da cachorra Baleia, em Vidas Secas, de Graciliano.
Continuo sem saber o que é poesia. E se poeta sou, não me defino. Nem mesmo como “fingidor”, pois “fingir é conhecer-se”.
Hermílio.
Há uma controvérsia entre Álvaro de Campos e Ricardo Reis, em que ambos, procurando “definir” poesia e prosa, tratam de ideia, emoção e ritmo.
O texto é longo, e dele me sirvo aqui com algumas citações, na busca também das mesmas elucidações de Fernando Pessoa, por via de dois dos seus heterônimos.
ÁLVARO DE CAMPOS:
“A poesias é aquela forma da prosa em que o ritmo é artificial. Este artifício, que consiste em criar pausas especiais e antinaturais diversas das que a pontuação define, embora às vezes coincidentes com elas, é dado pela escrita do texto em linhas separadas, chamadas verso, preferivelmente começadas por maiúsculas, para indicar que são como que períodos absurdos, pronunciados separadamente. Criam-se, por este processo, dois tipos de sugestões que não existem na prosa - uma sugestão rítmica, de cada verso por si mesmo, como pessoa independente, e uma sugestão acentual, que incide sobre a última palavra do verso, onde se pausa artificialmente, ou sobre a última palavra, se há uma só, que assim fica em isolamento que não é itálico.
Mas pergunta-se: por que há de haver ritmo artificial? Responde-se: porque a emoção intensa não cabe na palavra: tem que baixar ao grito ou subir ao canto. E como dizer é falar, e se não pode gritar falando, tem que se cantar falando, e cantar falando é meter a música na fala; e como a música é estranha à fala, mete-se a música na fala dispondo as palavras de modo que contenham uma música que não esteja nelas, que seja pois artificial em relação a elas. É isto a poesia: cantar sem música. Por isso, os grandes poetas líricos, no grande sentido do adjetivo “lírico”, não são musicáveis. Como o serão, se não musicais?”
RICARDO REIS:
“Diz campos que a poesia é uma prosa em que o ritmo é artificial. Considera a poesia como uma prosa que envolve música, donde o artifício. Eu, porém, antes diria que a poesia é uma música que se faz com idéias, em vez de com emoções. Com emoções fareis só música. Com emoções que caminham para as idéias, que se agregam idéias para se definir, fareis o canto. Com idéias só, contendo tão-somente o que de emoção há necessariamente em todas as idéias, fareis poesia. [...]
Quanto mais fria a poesia, mais verdadeira. A emoção não deve entrar na poesia, senão como elemento dispositivo do ritmo, que é a sobrevivência longínqua da música no verso. E esse ritmo, quando é perfeito, deve antes surgir da idéia, que da palavra.
De nada serve o simples ritmo das palavras, se não contêm idéias.[...]
RICARDO REIS:
“Um poema é a projeção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia. É tão-somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir palavras.
Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar, da própria disposição da mente, que campos estabelece. Desde que se use de palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual. A palavra contém uma idéia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente científica, que não resume qualquer suco emotivo. Por isso não há exclamação, nem a mais abstratamente emotiva que não implique ao menos o esboço de uma idéia.”
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Definir poesia seria desvendar o enigma que é o poeta. Este “fingidor” arcano, imprevisível, é um ator de si mesmo. Um ser plural que se vale da arte para expandir seus “eus” em diversidades de formas, sem grilhões de gêneros. O poeta é um pedaço de poesia de que é revestido o seu espírito em algum momento. Há poesia, na flor, na dor. No paraíso e no caos. Na prosa liricamente majestosa de Alencar, na crueza dos Servos da Morte de Adonias Filho, na profundeza do olhar da cachorra Baleia, em Vidas Secas, de Graciliano.
Continuo sem saber o que é poesia. E se poeta sou, não me defino. Nem mesmo como “fingidor”, pois “fingir é conhecer-se”.
Hermílio.