A catarse nos best-seller da modernidade

Por: Arlânia Menezes

Catarse (katharsis), em relação à estética, segundo o dicionário Magno (p.247), significa “reação moral dos espectadores após uma representação dramática”. Mas também significa “purgação”, e em relação à psicanálise é uma “psicoterapia que consiste em estimular o paciente” até levá-lo ao estado de “purificação da mente”.

Ouvindo a palestra da Professora Dra. Cleise Mendes, na sala 17, do Curso de Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural da UEFS, a idéia de catarse tomou uma forma mais próxima, quero dizer, mais clara. Para a autora catarse pode ser um circuito entre um sujeito e outro, alguma coisa que acontece entre o texto e o leitor:

“Mas seja como efeito da predominância de uma ou outra tendência, a catarse caracteriza-se como um processo, um acontecimento, um circuito que vai de um sujeito a outro sujeito, de um desejo a outro desejo. (...) o processo catártico parte da emoção e a ela retorna, mas nesse percurso possibilita uma aventura de natureza afetiva e intelectual a um só tempo. (MENDES, 2008, p. 07)”

Neste contexto, podemos afirmar que a catarse não é apenas uma descarga emocional, já que possibilita também uma aventura, uma experiência intelectual e, conseqüentemente, desafia o surgimento de idéias, mexe com os valores e com os repertórios humanos. Neste contexto, o repertório imaginário do receptor precisa comportar essa catarse, para Mendes (2008, p.07), “é preciso que o repertório imaginário do fruidor comporte a situação que lhe é representada para que a comunhão aconteça”.

Os estudos sobre estética da recepção é um resgate dos estudos literários por meio da análise da experiência estética e da função do leitor. Para Jauss (1979) o prazer de uma criação estética parte de três atividades distintas: poesis (produção), aisthesis (percepção prazerosa) e katharsis (a experiência estética resultante do ato de ler). Ainda segundo ele, “a experiência estética não se inicia pela compreensão e interpretação do significado de uma obra (...), realiza-se na sintonia com seu efeito estético (...) na compreensão fruidora e na função compreensiva” (p.46). Sendo assim, o leitor tem uma importância fundamental para que o texto literário exista, ou seja, os textos só existem na realidade depois que são lidos, depois que são “recebidos”. Entretanto, mesmo que os textos representem “uma perspectiva do mundo, criada por seu autor” (ISER, 1996, p.73), o leitor tem oportunidade de assumir um ponto de vista a partir de sua experiência estética.

Analisando de forma simples, se um texto mantém sintonia com o leitor, se “toca” na mente e no coração deste, independente do lugar onde esteja, do seu código lingüístico, do tempo em que vive, da cultura em que está inserido, houve comunicação e, conseqüentemente, houve catarse entre o texto e o leitor. É no plano da karthasis, segundo Hans Robert Jauss (1979), que ocorre o processo de identificação que leva o espectador, não apenas a sentir o prazer, mas a ser motivado a agir, a refletir sobre suas idéias e tomar novas posturas, completando o ciclo da comunicação.

O leitor da atualidade parece preferir se distanciar do real, fugir do caos que se instalou no mundo, por isso tem se voltado para leituras anódinas que o atinja naquilo que o está afligindo, sente-se atraído por histórias fantásticas e fabulosas, por narrativas ligadas à espiritualidade e à magia. Neste contexto, muitos autores se deram bem, ou seja, se aproveitaram desta situação e acabaram construindo teorias simplificadas para as massas agredidas pelas neuroses do cotidiano. Este pode ser um aspecto relevante para o sucesso de venda de alguns livros, que justamente por isto são chamados de best-seller.

Best-Seller é uma palavra inglesa que sugere o conceito de “mais vendido”, ou seja, um livro que atingiu um elevado número de vendas. Partindo desse pressuposto, vem-nos a idéia de que o livro é muito bom, já que vende muito. Entretanto, essa idéia cai por terra se formos analisar alguns desses best-sellers, visto que o fato de um livro vender muito não o coloca num lugar de destaque na história da literatura, pelo menos não dentro dos pré-requisitos (?) acatados pela crítica literária.

Neste contexto de experiência estética em liberdade para cada receptor, que pode sentir o gozo estético individualmente, é que ocorre a catarse, do prazer pela leitura. Provavelmente existe, para milhares de leitores, um grande prazer na leitura dos livros do autor Paulo Coelho, apesar de a crítica literária ser adversa a ele. Entretanto, independente da não aceitação da crítica, o autor continua sua caminhada de sucesso de vendas, aliás, não apenas de venda como também de tradução como é o caso do best-seller, “O alquimista”, que rendeu ao autor o prêmio Guinnes World Record por ser o livro mais traduzido do mundo, em 67 idiomas, sendo que já foram vendidos 35 milhões de exemplares do mesmo (VEJA, 2003).

Podemos perceber que em suas narrativas Paulo Coelho utiliza elementos exóticos, esotéricos, místicos, bem ao gosto dos leitores da modernidade, o que é um traço marcante de seus livros; além disso, utiliza uma linguagem simples, lugares comuns, tramas sem rupturas e a utilização de pouquíssimas personagens. Se a recepção estética tem como ponto de partida as sensações que despertará no leitor, ou o prazer que trará ao receptor, é possível afirmar, ousadamente, que Coelho, tendo, noção ou não disto, acaba norteando seus escritos dentro deste processo de recepção estética, pois o autor consegue, aparentemente, abstrair a catarse desse leitor, que está buscando leituras “confortáveis”, que lhe indique caminhos para viver bem, como no trecho abaixo do livro “O alquimista”:

“Havia uma linguagem no mundo que todos compreendiam, e que o rapaz tinha utilizado durante todo aquele tempo para fazer a loja progredir. Era a linguagem do entusiasmo, das coisas feitas com amor e com vontade, em busca de algo que se deseja ou em que se acreditava. Tanger não era mais uma cidade estranha e ele sentiu que da mesma maneira que tinha conquistado aquele lugar, poderia conquistar o mundo. Quando você deseja uma coisa, todo o universo conspira para que possa realizá-la.” (COELHO, 1997, p. 98)

O livro conta a história de um jovem pastor que viaja pelo deserto em busca de seu sonho, na verdade, é uma jornada de autoconhecimento com o propósito de entender seu próprio coração, de viver intensamente aquilo que deseja. Mas, o que parecia ser apenas uma “fábula”, eu chamo de romance fabuloso, ou de um conto de fadas moderno, pois traz também uma história de amor e de mistério, primeiro do homem pela vida, depois do homem por uma mulher. O romance, em qualquer época da vida humana, é sempre bem recebido pelos leitores, mesmo que cada um tenha seu prazer estético, que cada história produza um efeito diferente em cada receptor. Em relação a esse prazer Barthes (1973) diz que:

“Este prazer do texto não pertence forçosamente ao tipo triunfante, heróico, maculado. Não tem necessidade de se curvar. O meu prazer pode tomar forma de uma deriva. A deriva acontece sempre que eu não respeito o todo, e sempre que a força de parecer arrastado por vezes ao sabor das ilusões, seduções e intimidades de linguagem, como uma rolha nas ondas, eu permaneço imóvel, girando em torno da fruição intratável que me liga ao texto (ao mundo).” (p.55)

“O alquimista”, é uma narrativa que tem um caráter mágico, fala de encontros fantásticos, de desertos cheios de vida e mistérios, de alquimistas, de pirâmides, de amor; leva a uma reflexão sobre sonhos e as aspirações a que, geralmente, o ser humano está em busca. Parece querer dar uma lição de vida: a lição de ensinar que a vida dá sinais que devemos seguir, porém, que é preciso, como os alquimistas, decifrá-los; que todos os sonhos são possíveis, pois tudo aquilo que você realmente precisa está sempre perto de você, basta seguir o seu coração. No trecho abaixo, o pastor, já no deserto em busca de seu sonho, ouve a história de um cameleiro:

“(...) ninguém sente medo do desconhecido, porque qualquer pessoa é capaz de conquistar tudo o que quer e necessita. Só sentimos medo de perder aquilo que temos, sejam nossas vidas ou nossas plantações. Mas este medo passa quando entendemos que nossa história e a história do mundo foram escritas pela mesma Mão.” (COELHO, 1997, p.115)

É essa a perspectiva que se encontra neste livro: ir em busca de uma vida melhor. Até mesmo o significado da palavra alquimia conota para essa idéia, visto que é “uma arte antiga que reunia conhecimentos, com os quais se procurava descobrir a pedra filosofal, a panacéia universal ou o elixir da longa vida, e o meio de transformar os metais em ouro (Dicionário Magno, p.114). Então, a jornada de um alquimista é sempre a do aperfeiçoamento. No livro de Coelho, é a de moldar a essência espiritual humana para que esta seja perfeita, ou seja, no contexto da narrativa, levar o pastor de ovelhas a encontrar sua própria alma através dos caminhos da espiritualidade, do encontro com o seu próprio coração. Encontramos durante a leitura do “romance”, uma explicação sobre o que seria um alquimista:

“Eram homens que tinham dedicado sua vida inteira a purificar metais nos laboratórios, acreditavam que se um metal fosse cozido durante muitos e muitos anos, terminaria se libertando de todas as suas propriedades individuais e, em seu lugar, sobraria apenas a Alma do Mundo. Esta coisa Única permitia que os alquimistas entendessem qualquer coisa sobre a face da terra, porque ela era a linguagem pela qual as coisas se comunicavam. Eles chamavam a essa descoberta de Grande Obra – que era composta de uma parte liquida e uma parte sólida. (...) O rapaz descobriu que a parte liquida da Grande obra era chamada elixir da longa vida e curava todas as doenças, além de evitar que o alquimista ficasse velho. E a parte sólida era a camada da pedra filosofal.” (COELHO, 1997, p.127)

Numa leitura fácil, óbvia e atraentemente doce, o autor vai levando o leitor a viajar com o pastor pelo deserto em busca de um sonho, durante a caminhada os dois, leitor e pastor, vão encontrando pessoas e situações que lhes fazem refletir sobre suas próprias vidas. O pastor encontra o amor no meio do deserto:

“Quando ele olhou seus olhos negros, seus lábios indecisos entre um sorriso e o silêncio, ele entendeu a parte mais importante e mais sábia da Linguagem que o mundo falava, e que todas as pessoas da terra eram capazes de entender em seus corações. E isto era chamado de Amor, uma coisa mais antiga que os homens e que o próprio deserto, e que no entanto ressurgia sempre com a mesma força onde quer que dois pares de olhos se cruzassem, como se cruzaram aqueles pares de olhos diante de um poço. (...) Ali estava a pura linguagem do mundo, sem explicações, porque o Universo não precisava de explicações para continuar o seu caminho no espaço sem fim. (COELHO, 1997, p. 153)

Tendo o leitor como espectador, o pastor encontrou o grande amor de sua vida e, no final de sua jornada encontrou realmente um tesouro. Bem ao gosto romântico, o final do livro traz um pastor rico e apaixonado, que através de muitas lições e sofrimento encontrou, enfim, a felicidade. E o pastor pensou: “Realmente a vida é generosa com quem vive sua lenda pessoal”. (COELHO, 1997, p.246).

Provavelmente existe uma conexão entre o que ele escreve e o que os receptores querem ler, senão, como justificar o que o torna este fenômeno de vendas? Sabemos que não é apenas uma questão de mercado. Provavelmente algum efeito seus livros operam sobre os leitores, senão não teria vendido (e ainda vende muito) tantos milhões de exemplares. Provavelmente as pessoas se identificam com o pastor, um homem simples que vive em busca do amor e do dinheiro, da felicidade. O livro tem um viés de auto-ajuda, e esse viés tem tornando muitos autores grandes vendedores de livros, o que não quer dizer grandes escritores, mas este é outro discurso, que não envolve a questão da recepção da leitura. Pra fundamentar essa idéia de recepção prazerosa, Jauss (1979) diz:

Mas a experiência estética não se esgota em um ver cognoscitivo (aisthesis) e em um reconhecimento perceptivo (anamnesis): o expectador pode ser afetado pelo que se representa, identificar-se com as pessoas em ação, dar assim livre curso às próprias paixões despertadas e sentir-se aliviado por sua descarga prazeirosa, como se participasse de uma cura (katharsis). (p.65)

Nesta mistura entre busca espiritual, encontro pessoal e amoroso, o livro acabou se tornando uma espécie de “lição de vida”, algo aparentemente atraente para o leitor da atualidade. É nessa perspectiva de atração que, ouso dizer que se operou a katharsis, ou a comunhão entre o leitor e o texto.

BIBLIOGRAFIA:

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução: BARAHONA, Maria margarida. Lisboa: Edições 70, 1973.

COELHO, Paulo. O alquimista. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1996.

JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. In: LIMA, Luis Costa. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

MENDES, Cleise Furtado. A gargalhada de Ulisses: a catarse na comédia. São Paulo: Perspectiva, 2008.

WIKIPEDIA. Best-seller. Origem: Wikipedia, a enciclopédia do livro. Http://wikipedia.org/wiki/best-seller.

VEJA, revista . Seção Holofote. São Paulo. Editora Abril Cultural, 06.08.03.