Oficina Irritada – Análise Literária do poema de Carlos Drummond de Andrade.

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro - MG, em 31 de outubro de 1902. De uma família de fazendeiros em decadência, estudou na cidade de Belo Horizonte e com os jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo RJ, de onde foi expulso por "insubordinação mental". De novo em Belo Horizonte, começou a carreira de escritor como colaborador do Diário de Minas, que aglutinava os adeptos locais do incipiente movimento modernista mineiro.

Ante a insistência familiar para que obtivesse um diploma, formou-se em farmácia na cidade de Ouro Preto em 1925. Fundou com outros escritores A Revista, que, apesar da vida breve, foi importante veículo de afirmação do modernismo em Minas. Ingressou no serviço público e, em 1934, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação, até 1945.

Passou depois a trabalhar no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e se aposentou em 1962. Desde 1954 colaborou como cronista no Correio da Manhã e, a partir do início de 1969, no Jornal do Brasil.

O modernismo não chega a ser dominante nem mesmo nos primeiros livros de Drummond, Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934), em que o poema-piada e a descontração sintática pareceriam revelar o contrário. A dominante é a individualidade do autor, poeta da ordem e da consolidação, ainda que sempre, e fecundamente, contraditórias.

Torturado pelo passado, assombrado com o futuro, ele se detém num presente dilacerado por este e por aquele, testemunha lúcida de si mesmo e do transcurso dos homens, de um ponto de vista melancólico e cético. Mas, enquanto ironiza os costumes e a sociedade, asperamente satírico em seu amargor e desencanto entrega-se com empenho e requinte construtivo à comunicação estética desse modo de ser e estar.

Vem daí o rigor, que beira a obsessão. O poeta trabalha, sobretudo com o tempo, em sua cintilação cotidiana e subjetiva, no que destila do corrosivo. Em Sentimento do mundo (1940), em José (1942) e, sobretudo em A rosa do povo (1945), Drummond lançou-se ao encontro da história contemporânea e da experiência coletiva, participando, solidarizando-se social e politicamente, descobrindo na luta a explicitação de sua mais íntima apreensão para com a vida como um todo.

A surpreendente sucessão de obras-primas, nesses livros, indica a plena maturidade do poeta, mantida sempre.

Porém é com Claro Enigma de 1951 que Drummond consolida a sua estética, e expressa os vazios do mundo moderno e do homem contemporâneo. Um livro rigoroso desde o apuro da versificação, passando pelas intertextualidades mais flagrantes as citações veladas; Drummond revela nesta obra as raízes e as ramificações de sua lira, até a liberdade consumada no rigor que amparou a clareza de sua lírica.

Neste Drummond há versos secos vasculhando o vazio dos sentimentos interditados, uma nostalgia lisboeta numa citação simbolista e uma ponte entre dois bardos num único soneto, por tudo que registra e pelo poeta que se depura Claro Enigma é trabalho de carpintaria, como diria Saramago.

Várias obras do poeta foram traduzidas para o espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, sueco, tcheco e outras línguas. Drummond foi seguramente, por muitas décadas, o poeta mais influente da literatura brasileira em seu tempo, tendo também publicado diversos livros em prosa.

Em mão contrária traduziu os seguintes autores estrangeiros: Balzac (Les Paysans, 1845; Os camponeses), Choderlos de Laclos (Les Liaisons dangereuses, 1782; As relações perigosas), Marcel Proust (La Fugitive, 1925; A fugitiva), García Lorca (Doña Rosita, la soltera o el lenguaje de las flores, 1935; Dona Rosita, a solteira), François Mauriac (Thérèse Desqueyroux, 1927; Uma gota de veneno) e Molière (Les Fourberies de Scapin, 1677; Artimanhas de Scapino).

Alvo de admiração irrestrita, tanto pela obra quanto pelo seu comportamento como escritor, Carlos Drummond de Andrade morreu no Rio de Janeiro RJ, no dia 17 de agosto de 1987, poucos dias após a morte de sua filha única, a cronista Maria Julieta Drummond de Andrade.

Vem da exasperação de Drummond a próxima análise literária:

Oficina Irritada

Eu quero compor um soneto duro

como poeta algum ousara escrever.

Eu quero pintar um soneto escuro,

seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,

não desperte em ninguém nenhum prazer.

E que, no seu maligno ar imaturo,

ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro

há de pungir, há de fazer sofrer,

tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,

cão mijando no caos, enquanto Arcturo,

claro enigma, se deixa surpreender.

Carlos Drummond de Andrade

Observando a escansão constatamos versos decassílabos heróicos, sáficos, pentâmetro e moinheira, meticulosamente ordenados para os efeitos propostos para o poema.

Os versos quatro e nove são decassílabos em moinheira, exatamente nas descrições mais agudas do poema: “seco, abafado, difícil de ler. (v.4) e Esse meu verbo antipático e impuro (v.9). Tal situação se deve a anotação rítmica da tensão poética que neste expediente confere um alto nível de consciência e domínio da versificação na variação do ritmo do poema.

Há na estrofação um esquema de rimas binário com alternâncias de graves e agudas em rimas alternadas. Esta opção restringe a leitura para uma sonoridade previsível, não há a variação nos tercetos que distende a leitura e permite alterar o andamento. Nota-se a intenção de provocar o leitor gerando uma leitura restritiva, aonde o nexo do poema vai se fechando nos tercetos e o último verso ironiza num oximoro.

Considerando o desenvolvimento estilístico a primeira estrofe anota anáfora em “Eu quero” no primeiro e terceiro verso, ainda na primeira estrofe sinestesia em: duro, pintar, escuro, seco e abafado.

A situação semântica criada nesta estrofe é a expressão de um desejo do eu lírico, provavelmente o mesmo soneto lido pelo leitor. Os versos três e quatro denunciam as restrições que o eu lírico pretende impor ao leitor, um texto fechado em oposição a exploração contemporânea do soneto.

O verso cinco reitera a anástrofe apesar da elisão do pronome:

“(Eu) Quero que meu soneto, no futuro,” e reafirma o desejo consciente que impulsiona o poema, o verso seguinte anota o abandono da gratuidade estética e preconiza em reiteradas negativas (não, ninguém e nenhum) a obstrução do prazer.

Esta estrofe traz ainda um componente que acrescenta dolo à consciência do eu lírico, ao evocar um “maligno ar imaturo” e fecha numa ligação com Sheakspeare: “ao mesmo tempo saiba ser, não ser.” (v.8).

A grande metáfora da estrofe é que o poema alcance o futuro, e que o prazer estético possa estar contido na essência do poema, que seja na forma e no conteúdo e todos os leitores possam tê-lo; o ser e não ser.

O primeiro terceto confronta as opções do eu lírico diante de um padrão de beleza, Vênus a versão romana para a deusa da beleza, o poeta é o pedicuro que deveria cuidar da beleza da Vênus e opta por impingir sofrimento a beleza no seu labor.

O último terceto é um trabalho de elevado nível de realização:

Ninguém o lembrará: tiro no muro,

cão mijando no caos, enquanto Arcturo,

claro enigma, se deixa surpreender.

O poeta tem todos os recursos disponíveis para perseguir este intento, abrindo a palavra ao mundo fantástico e para ao absoluto; mostrando que a língua não é apenas um sistema (para isto até outro Sol, Arcturus, a guardiã das ursas, é evocado) e que a realidade e riqueza interior do sujeito consciente podem não se submeter a nenhum enclausuramento limitante que a expressão estruturante do sentido possa sugerir.

A pretensão de criar uma atmosfera de rara preciosidade, distante das preocupações rasteiras do cotidiano, mostra-se efetiva através do impacto profundo que causa: na grande estrela de Arcturus, surpresa, no vulgo, sofrimento. Só existe beleza na ordem (expressa por Vênus), mas o impulso da oficina busca ainda mais distante e primevo: o caos, também um deus mitológico, cuja figuração inusitada no poema rompe a rotina, trazendo a estranheza.

As rupturas que podem alterar o cotidiano e a nossa forma de ver os fenômenos terminam por fundar uma nova ordem, uma superestrutura sobre os escombros do status quo, a novidade substitui a figura, não liberta.

O tiro no muro é um ruído que assusta, mas não mata enquanto o cão mijando no caos é a consciência desconhecendo qualquer ordem.

Arcturus é o novo sol, como Horus, e tudo que o zeitgeist indica como divindade, um atavismo confessional, a divinação da nova ordem, o novo dogma que o oximoro “Claro enigma põe a nu numa sentença bastante sofisticada: “se deixa surpreender.”

Arcturus é ainda a ligação com o outro bardo Camões em Os Lusíadas – Canto I, na invocação dos Deuses.

Há neste soneto uma exasperação em relação ao ideário contemporâneo e o vazio da estética despida de sentidos, o poeta sugere um exame na ordem das coisas e cobra responsabilidade na condução do verso, e não por acaso convoca os bardos para o seu verso.

Saudações.