Intertextualidades com percevejos

Camilo Castelo Branco dedicou ao «percevejo» uma das mais extraordinárias páginas da sua prosa.

José Saramago viajou com Camilo.

A transcrição que segue, para quem não o acompanhou nas «Vinte Horas de Liteira», É DE LEITURA OBRIGATÓRIA.

“Entrei com uma candeia na alcova, e deitei-me fatigado de alma e espírito, apagando a luz.

Vinte minutos depois, sentei-me de salto no leito, sacudindo dos ombros os grifos encravados de uma legião de demónios.

– Há horrores ignotos neste quarto! – exclamei eu, e acendi a luz.

Olhei sobre mim, e em roda de mim: eram grosas de esquadrões de percevejos, que irrompiam em caravanas das cavernas do catre, e das luras do tabique. Saltei ao soalho com os cabelos hirtos e os nervos em vibrações catalépticas. Peguei das botas à Frederico, e dei morte a milhares daquelas alimárias, que renasciam umas de outras, como tantas hidras de Lerna. Fez-se um fétido homicida na alcova. Abri as janelas, e bebi o ar balsâmico dos pinhais. Voltei á carnificina, sacudi os lençóis à viração da madrugada, e tornei a reclinar o corpo lasso no catre ensanguentado, conservando a candeia acesa.

Daí a instantes, as hordas ressaltando das tocas, acardumavam-se nas paredes, e formavam concílios em temerosa quietação; depois abriam fileiras, e subiam ao tecto. E eu, sentado no cavalete de torturas, examinava, com a luneta, estas infandas evoluções, e via-os despenharem-se do tecto sobre mim a prumo, às centúrias, ferozes de fome e sede de vingança. E eu voltava de novo a carregá-los com as botas, e eles fugiam com uma velocidade insultadora. Pela primeira vez em minha vida eu vi percevejos com asas, a esvoaçarem naquele ambiente empestado do sangue deles. Referi a vários naturalistas este facto, e ninguém acreditou na existência dos percevejos alados de Baltar. Ontem abri um livro do zoólogo dr. Charbonnier, e tive ocasião de ver que este hemíptero tem asas rudimentares, e não duvida o sábio absolutamente que o percevejo as tenha completas. Deus traga este naturalista a Baltar para honra e glória da ciência!

Eu senti então um incêndio febril, e tonturas de cabeça, vertigens mortais a cada nova ferroada. Já me faleciam forças para brandir as botas contra a parede. Sentei-me no tabuado, e chorei á laia de Mário nas lagoas de Minturais. Aqui tenho um livro de ciência a explicar-me aquelas angústias. É o doutor Charbonnier que sai em defesa da sinceridade desta narrativa: «Há indivíduos muito irritáveis em quem a mordedura dos percevejos produz tão viva excitação que os torna febricitantes.»

Eu pensei que podia morrer de tão ignóbil desastre. A candeia apagara-se á míngua de óleo. As alimárias, protegidas pelas trevas, atacavam-me no meu refúgio. Ergui-me de golpe, e não sei que gementes rugidos de delírio e desesperação atirei á face da providência, que criara o percevejo. Quis fugir pela porta, mas perdera o tino. Raspava com as unhas nas paredes, e estripava chusmas de infames.

Refugia, estrincando os dentes; e quebrava a minha fúria com gemidos.

Vejamos, então, os mesmos bichos, vistos, no tempo de D. João V, por José Saramago:

“Quando a cama aqui foi posta e armada ainda não havia percevejos nela, tão nova era, mas depois, com o uso, o calor dos corpos, as migrações no interior do palácio, ou da cidade para dentro, donde este bichedo vem é que não se sabe, e sendo tão rica de matéria e adorno não se lhe pode aproximar um trapo a arder para queimar o enxame, não há mais remédio ainda não o sendo, que pagar a Santo Aleixo cinquenta reis por ano, a ver se livra a rainha e a nós todos da praga e da coceira. Em noites que vem el-rei, os percevejos começam a atormentar mais tarde por via da agitação dos colchões, são bichos que gostam de sossego e gente adormecida. Lá na cama do rei estão outros à espera do seu quinhão de sangue, que não acham nem pior nem melhor que o restante da cidade, azul ou natural.”

In «Memorial do Convento».

ANTONIO JORGE
Enviado por ANTONIO JORGE em 11/10/2009
Reeditado em 14/10/2009
Código do texto: T1859944