"Neste mundo é mais rico, o que mais rapa" Gregório de Matos - Análise Literária.
Poeta baiano (1633-1696). Considerado um dos escritores mais originais da língua portuguesa no século XVII durante o período barroco. Gregório de Matos Guerra nasce em Salvador. De família rica e proprietária de engenho, entre 1652 e 1661 estuda direito na Universidade de Coimbra, em Portugal, onde faz carreira como jurista.
Volta ao Brasil em 1682 e é nomeado tesoureiro-mor da Sé, na Bahia, depois de ordenado clérigo tonsurado - grau de iniciação nas ordens sacras que prevê a tonsura, corte de cabelo em formato de coroa típico dos prelados da época.
Por se recusar a vestir batina é destituído do posto em 1683. Passa a viver da advocacia e a escrever sua obra satírico-erótica, que retrata a sociedade baiana da época. Seus poemas, de forte inspiração clássica, denunciam a ganância e a busca do prazer pelos poderosos. Por isso, ganha o apelido de Boca do Inferno. Leva vida boêmia até ser deportado para Angola, em 1694.
Torna-se conselheiro do governador Henrique Jaques Magalhães na colônia portuguesa e, como compensação pelos serviços prestados, autorizado a retornar ao Brasil, passa a viver no Recife, onde morre. Sua poesia sobrevive graças a manuscritos apócrifos.
É publicado pela primeira vez em 1831, numa coletânea organizada por Januário da Cunha Barbosa chamada Parnaso Brasileiro ou Coleção das Melhores Poesias dos Poetas do Brasil, Tanto Inéditas como Já Impressas.
É do “Boca do Inferno” a próxima análise literária.
Soneto.
Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O Velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
A flor baixa se inculca por Tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra, o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
Gregório de Matos.
Gregório de Matos apresenta alguns aspectos particulares que demandariam uma atenção mais demorada, a sua lírica se dividiu em três interesses distintos, o amor, a filosofia e a religião.
Porém o Gregório destas anotações é o poeta degredado, o satírico, que pela sua crítica a sociedade e aos costumes da Bahia colonial, onde o “Boca do Inferno” apontava sua pena contra os mandatários da metrópole, tornou-se a primeira referencia do Barroco brasileiro.
A sátira constitui a parte mais original da poesia de Gregório de Matos, pois se desvincula dos padrões vigentes na descrição formal do Barroco e atenta para a realidade baiana do século XVII.
Há uma relação direta com a realidade e com o Brasil, numa crítica direta a situação de exploração colonial empreendida pela política portuguesa.
Observando o soneto, construído em decassílabos heróicos e sáficos, com um vocabulário, popular e chulo, que conferem a sua execução uma comunicação original e inaugura uma relação de meta linguagem pela transgressão temática do soneto, nestas terras.
Há palavras que necessitam de alguma investigação pela sua ocorrência rara nos nossos dias.
Glossário
Carepa: caspa, sujeira;
Vil: ordinário;
Increpar: censurar, repreender;
Garlopa: ferramenta de marcenaria, termo usado como sinônimo de trabalho braçal.
Um soneto com desenvolvimento temático expressivo, com referenciais de superfície claros, e de fácil abordagem. O ritmo e a sonoridade são explorados com habilidade, de modo que aliterações em /m/, /s/ e /p/ e assonâncias em /a/, /e/ e /o/ fluem naturalmente na leitura do poema.
A desenvoltura na construção dos paralelos é facilitada pelo confronto de “mais” e “menos” em todo poema, os advérbios são aplicados para dar uma situação de imutabilidade para a ação (v.10), que a forma verbal anotada no presente constrói o que ocorre agora, ocorre desde sempre, denuncia o eu lírico.
O soneto é uma crônica dos costumes na Bahia colonial com a diferença de tratamento entre os mandatários e o povo. Há uma referencia histórica a tulipamania, que estava em vigor nos Países Baixos e deu a esta flor um valor inexplicável naquele período.
Lido unidade a unidade notaremos o tema desenvolvido de maneira crítica até o primeiro terceto, quando assume o seu tom satírico e realiza as sugestões chulas e encerra o poema com um verso inusitado.
Atentando para a meta linguagem é possível perceber a crítica ao esvaziamento da temática pelos poetas contemporâneos de Gregório de Matos, o esquema rítmico e as rimas são uma provocação aos poetas do período.
A forma utilizada e a execução das suas unidades de nexo levam a crer num embate entre as idealizações formais dos seus pares e a expressividade radical cultivada pelo poeta.
A riqueza da construção semântica confere alto valor a este poema, as antíteses realizando os paralelos e anotando os contrastes entre rico e pobre, moral e amoral vai estabelecendo a tensão que se cumpre na síntese do ultimo terceto (v.12), onde o eu lírico “vaza a tripa”, uma expressão chula, e deixa sugerida a intenção da musa num verso onomatopaico.
A sátira é parte da poesia, inúmeros poetas realizaram textos satíricos, de Bocage a Manuel Bandeira, o singular em Gregório de Matos é a sua maneira de manipular a língua, sem proselitismo, apropriando-se de termos populares e chulos; conferindo ao uso da língua um atributo de comunicação e confrontando o elemento de segregação contido nas representações formais do idioma.