Apesar de você, de Chico Buarque de Holanda

Pequena análise, com fundamentação nas reflexões de Antonio Carlos Secchim, em Poesia e Desordem - Escritos sobre poesia & alguma prosa.

APESAR DE VOCÊ

Hoje você é quem manda, falou, tá falado, não tem discussão

a minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão, viu

você que inventou esse estado e inventou de inventar toda a escuridão

você que inventou o pecado, esqueceu-se de inventar o perdão

Apesar de você amanhã há de ser outro dia

eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia?

como vai proibir quando o galo insistir em cantar?

água nova brotando e a gente se amando sem parar

Quando chegar o momento, esse meu sofrimento vou cobrar com juros, juro

todo esse amor reprimido, esse grito contido, este samba no escuro

você que inventou a tristeza, ora, tenha a fineza de desinventar

você vai pagar, e é dobrado, cada lágrima rolada nesse meu penar

Apesar de você amanhã há de ser outro dia

inda pago pra ver o jardim florescer qual você não queria

você vai se amargar vendo o dia raiar sem lhe pedir licença

e eu vou morrer de rir, que esse dia há de vir antes do que você pensa

Apesar de você amanhã há de ser outro dia

você vai ter que ver a manhã renascer e esbanjar poesia

como vai se explicar vendo o céu clarear de repente, impunemente?

como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente?

Apesar de você amanhã há de ser outro dia

você vai se dar mal etc e tal.

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Secchim, antes de situar o "lugar do discurso poético na nova ordem mundial", caracteriza a poesia como espaço de insubordinação, dizendo que "é inegável que a maior parcela da poesia engajada situa-se à esquerda no espectro político".

Na MPB percebemos isso, por exemplo, na letra Apesar de você, de Chico Buarque, na qual o próprio título já anuncia essa insubordinação.

Se, nessa letra, temos versos como "Hoje você é quem manda/ Falou, tá falado/ Não tem discussão, não", que poderiam passar a ideia de obediência e submissão, isso não acontece porque esses versos são seguidos por um que diz que "amanhã há de ser outro dia".

Nessa letra, encontramos exemplo para a afirmação de Secchim, quando ele diz que não cabe à poesia "abraçar o lado do bem e exorcizar os fantasmas que o ameaçam". A poesia é justamente o fantasma que ameaça o 'lado do bem', é a "corrosão de normas que estanquem a pluralidade", normas essas que fazem com que a gente ande falando de lado e olhando pro chão, como em Apesar de você.

"A poesia tende a fortalecer-se quando não é convocada para a consolidação de visões dicotômicas da realidade, podendo assumir, ao contrário, sua condição de processo fomentador de sentidos à deriva", diz Secchim.

Por isso, a poesia é desordem, é o "sangramento inestancável do corpo da linguagem", e, por isso, o sujeito lírico de Apesar de você pergunta a quem estabelece a 'ordem': "Onde vai se esconder da enorme euforia? Como vai proibir quando o galo insistir em cantar?" e representando a "palavra rigorosa diante de todo arbítrio classificatório", diz "quando chegar o momento, vou cobrar com juros, juro! (...) Você vai pagar, e é dobrado, cada lágrima rolada nesse meu penar".

A metáfora introduz "tensões e atritos" como em "ainda pago pra ver o jardim florescer, qual você não queria".

Nessa 'desordem sob controle', a letra de Chico Buarque vai buscando "objetos que desregulam o modo operacional e previsível da matriz".

Nos versos "você vai ter que ver a manhã renascer e esbanjar poesia" temos, então, exemplo da poesia como algo que 'ameaça', que desordena um sistema instituído, mesmo que tentem estancá-la, pois ela está ali para "vigorar sem outro compromisso que não seja a afirmação de que nossa liberdade passa não apenas pelas palavras em que nos reconhecemos, mas, sobretudo, pelas palavras com as quais aprendemos a nos transformar".

Natália Cristina de Almeida Souza
Enviado por Natália Cristina de Almeida Souza em 26/09/2009
Reeditado em 27/09/2009
Código do texto: T1833086
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