LITERATURA CLÁSSICA GREGA 2 POESIA, ORALIDADE, MEMÓRIA, MITO E O PODER DA MÉTIS EM HOMERO

POESIA, ORALIDADE, MEMÓRIA, MITO E O PODER DA MÉTIS EM HOMERO

Prof. Sílvio Medeiros

Compostos há cerca de 3.000 anos por Homero, os dois longos poemas épico-narrativos a “Ilíada” e a “Odisséia”, a “Bíblia” dos gregos (1) são, ambas, fontes inesgotáveis que deram de beber tanto aos “genius” (2) de Virgílio [70 a.C- 19 d.C] na “Eneida” quanto ao imaginário do homem comum de James Joyce [1882-1941] em “Ulisses”.

Há dúvidas - entre estudiosos do mundo antigo e do mundo contemporâneo - no que se refere ao ano e ao local do nascimento do famoso poeta grego. Na Grécia letrada, depois de Homero, assim afirma Herôdotos (484-425 a.C.), o chamado “pai da História” ocidental: “_ Realmente, suponho que a época de Homero e Hesíodo não é mais de quatrocentos anos anterior à nossa ...” (Herôdotos: 1988). Por conseguinte, notamos (não tão-somente pela datação) que Herôdotos, em verdade, se inscreve na tradição épico-homérica, sobretudo em seu projeto historiográfico voltado a salvar a memória. Basta citarmos as primeiras linhas herodotianas de sua “História” para ilustrar tal ponto:

“Os resultados das investigações de Herôdotos de Halicarnassos são apresentados aqui, para que a memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo, e para que feitos maravilhosos e admiráveis dos helenos e dos bárbaros não deixem de ser lembrados, inclusive as razões pelas quais eles se guerrearam.” (Herôdotos, 1988 , p.19)

Contudo, há algo que diferencia a narrativa herodotiana da narrativa mítico-épico-homérica, na medida em que Herôdotos privilegia o testemunho daquilo que ele pesquisou, viu ou ouviu falar: “ ... meu objetivo ao longo de toda a obra é registrar tudo que me foi dito tal como ouvi de cada informante.” (Herôdotos:1988). Nesse sentido, a primazia aqui ainda é da oralidade e de seus componentes mítico-poéticos. Porém, ao mesmo tempo, Herôdotos revela-se um opositor crescente da tradição mítica, porque dispõe, lado a lado, em sua “História” elementos que tendemos a considerar como não-históricos junto aos acontecimentos verdadeiros:

“Até aqui mencionei as palavras dos egípcios. Agora relatarei a propósito de sua história [do sacerdote de Héfaistos] o que dizem tanto os egípcios quanto os estrangeiros (...); acrescentarei a isso algo visto por mim mesmo.” ( Herôdotos 1988, p. 136)

Em suas investigações Herôdotos interessa-se ora pela narração com base na realidade histórica, ora pela narração puramente imaginária. Se o antigo historiador não pode evitar essa ambigüidade, é porque há em Herôdotos uma oposição entre duas narrativas que correspondem a duas formas de tempo: há uma narrativa mítica, lendária, e uma narrativa “histórica”, cronológica. Há em Heródotos, enfim, uma dinâmica oposição entre “logos” e “mythos” (3). Como bem observa Collingwood [s.d.]: “A conversão da redacção de lendas em ciência da história não esteve inata no espírito grego, foi uma invenção do século V, uma invenção de Heródoto.” Noutras palavras , Herôdotos move-se num mundo em que a cada instante se defronta com o mito. Por isso o seu modo de lidar com o mito nem sempre é o mesmo: nem aspira a racionalização, nem é um cético por princípio, mas não se demora a formular objeções críticas à tradição mítica.

Segundo as investigações de Herôdotos, com base nos eventos relatados pelos sacerdotes egípcios, o rapto da encantadora espartana Helena fôra obra dos egípcios e não dos troianos (em específico, o príncipe Paris). Trata-se, portanto, de uma interpretação que segue na contra-mão da versão épico-homérica, que, além de responsabilizar os troianos pelo referido rapto, toma-o como motivo deflagrador para destruição de Tróia. Segundo Gagnebin (1992):

“Heródoto retoma e transforma a tarefa do poeta arcaico: contar os acontecimentos passados, conservar a memória, resgatar o passado, lutar contra o esquecimento. Tarefa essencial que a voz do poeta - numa sociedade sem escrita como o era a Grécia arcaica - encarnava, e que continuou também no texto escrito”. (Gagnebin, 1992 , p.11)

De fato, pois, ao finalizar a sua história sobre Helena, Herôdotos compactua com a trama épico-homérica, fazendo prevalecer a sua parcialidade sobre os acontecimentos:

“... a vontade divina - expresso aqui o meu próprio pensamento - determinou a destruição total de Tróia para mostrar claramente aos homens que os grandes crimes são punidos com grandes castigos pelos deuses. Essa é minha opinião pessoal e por isso a expresso.” (Herôdotos 1988, p.125)

Mas a novidade é que Herôdotos não canta mais, pelo contrário, “ele tenta dar a razão, a causa (‘aitia’) dos acontecimentos, anunciando a famosa exigência platônica de ‘logan didonai’ (dar a razão)” (Gagnebin: 1992). Assim, por meio de Herôdotos, a investigação histórica surge com novas leituras do passado; as novas orientações historiográficas repercutem na tarefa do historiador, o qual põe todo o seu empenho em evitar falar das coisas divinas e, desse modo, pouco a pouco, suplanta o canto divino do aedo (poeta-cantor) glorificador dos heróis e dos deuses no Olimpo.

Uma vez estabelecida tais considerações mediante as “Histórias” de Herôdotos - um dos clássicos da Antiguidade! -, estas seriam algumas ilustrações das distâncias já existentes no mundo antigo grego com relação ao poeta épico Homero.

Após tal digressão, avancemos nas páginas da história: surge, agora, no centro dos debates, o descrédito quanto à autoria da epopéia grega. O tema vai variando sem cessar, levando ao paradoxal o que antes fôra dado como certo: o culto de Homero. Sobre a beleza da poética homérica, os modernos, durante o século XIX, derramaram a dúvida sobre a real existência de Homero enquanto autor da “Ilíada” e da “Odisséia”. As suspeitas surgiram em meio à “Controvérsia entre Antigos e Modernos”, na França, no início do século XVIII. Em fins do mesmo século, a crítica literária impôs o célebre debate denominado “A Questão Homérica” (4). Nele insiste-se nas ilegitimidades do Homero histórico e do texto homérico.

Um dos princípios norteadores da “Questão Homérica” refere-se à unidade da “Ilíada” contraposta à pluralidade da “Odisséia” (um arranjo de poemas diferentes?!), dando origem a juízos que colocam, dentre outras, a seguinte questão: seriam os dois extensos poemas, a “Ilíada” e a “Odisséia”, composições de um único autor numa Grécia iletrada? Porém, a nossa intenção não é acrescentar um comentário original sobre tal polêmica, que tende a desdobrar-se em miríades de contradições como atesta vasta literatura. Assim, sobre a famosa “Questão Homérica” preferimos, logo de saída, atermo-nos e compartilhar com alguns argumentos expressos em estudos de quatro especialistas que retomam a voz da antiga Grécia. Apesar das oscilações dos pontos de vista entre um e outro no que se refere às perspectivas das teses, preferimos conferi-las mediante uma visão de conjunto, pois, só assim, pensamos conseguir obter um certo consenso sobre a referida questão. Dentro desse quadro referencial, podemos começar por considerar a posição de Werner Jaeger (1986):

“Do ponto de vista histórico, a ‘Ilíada’ é um poema muito mais antigo. A ‘Odisséia’ reflete um estágio muito posterior da história da cultura. (...) A fonte principal para chegar à solução deste problema são os próprios poemas. Apesar de toda perspicácia consagrada a este assunto, reina quanto a ele a maior insegurança.”(Jaeger 1986 , p.27)

Em 1951, H.D.F. Kitto argumentara que “o problema importante não é saber quem foi HOMERO, mas sim ‘o que foi’.”

Em 1953, M.I.Finley apresenta um novo argumento:

“Quem era ele, onde vivia, em que data compôs os seus poemas são perguntas às quais não podemos responder com segurança, assim como os próprios Gregos o não podiam... Qual era a sua origem, é questão que permanece em aberto.” (Finley 1988 , p. 14)

Finalmente, ao debruçarmo-nos sobre as páginas do compêndio de conhecimentos homéricos do Prof. Aubreton (1953), constatamos o que segue abaixo:

“Já é tempo de abandonarmos êste estudo puramente teórico da questão homérica... o mais importante é ler, apreciar, conhecer os poemas, em lugar de deter-se diante de problemas que acabam fazendo perder de vista o essencial: a beleza estética e humana.” (Aubreton 1968, p. 35)

É neste argumento que, no presente texto, nos apoiamos.

O “KÓSMO” NO ESCUDO DE AQUILES: A CRISE DA SOBERANIA

No canto XVIII da “Ilíada”, a narrativa homérica redesenha a totalidade do universo no escudo do herói Aquiles. Coube ao deus Hefesto (deus do fogo) forjá-lo, concentrando no escudo a descrição do mundo: a terra, o céu, o mar, o sol, as luas, as estrelas, a humanidade, enfim, o escudo de Aquiles comportava o cosmo inteiro. Ordenação do cosmo, os fios, a trama... para organizar o seu universo Homero valeu-se de fragmentos de outros universos míticos anteriores. Durante a descrição do escudo de Aquiles, entre signos e símbolos, a revisão mítica de Homero a um dos mais antigos mitos da humanidade - o do Labirinto, no palácio de Cnossos - assim se apresenta:

“Plasma um recinto de dança, ainda, o fabro de membros robustos, mui semelhante ao que Dédalo em Cnosso de vastas campinas fez em louvor de Ariadne formosa, de tranças venustas.” (Homero, Ilíada: Canto XVIII)

Neste ponto, reporta-nos à epopéia homérica, rumo a um passado remoto: a Idade do Bronze da Grécia arcaica. Gregos dóricos, gregos aqueus, cultura minóica ou cretense ? Vernant (1984) sublinha que:

“A queda do poder micênico, a expansão dos dórios no Peloponeso, em Creta e até em Rodes inauguram uma nova idade da civilização grega. A metalurgia do ferro sucede à do bronze.” (Vernant 1984, p.26)

De outra parte: “_ O bronze está periclitando...”; esta é a constatação de Kazantzaki (1986) na obra “No Palácio do Rei Minos”. Recordemos, então, - resumidamente - aquilo que a tradicional lenda mitológica grega narra sobre os acontecimentos do grande palácio Minóico: o Labirinto... o Minotauro... ao redor do Palácio do divino Rei Minos, um rei lendário de Creta, a civilização grega desabrocha. O Rei Minos ao renovar, por um contato direto com Zeus, seu poder real atribuiu à Atenas - subjugada por Cnossos - um imposto anual de sete rapazes e de sete moças a serem devorados pelo monstro Minotauro, no interior do Labirinto construído por Dédalo, nos subterrâneos do palácio de Cnossos. O príncipe ateniense Teseu, voluntariamente, apresenta-se para acompanhar as quatorze vítimas e livrar o povo grego do tributo que deveria pagar ao Rei Minos e ao monstro. Ariadne, filha de Minos e irmã de Fedra, apaixona-se por Teseu. Assim, Ariadne ofereceu a Teseu um novelo de lã com o qual o herói grego descobre o caminho rumo à saída do Labirinto misterioso. Teseu mata o monstro e sai do Labirinto.

O novelo de lã é a metáfora do Labirinto: local obscuro situado nas vagas dos alicerces do Palácio e dotado de um emaranhado de voltas e mais voltas, no qual alguém entra, perde-se e desaparece. Poucas pessoas conheceram o caminho certo (5).

De outra parte, cada época possui o discurso correspondente às necessidades que o movimento da história lhe coloca. Cada voz que, em outros tempos, retoma a voz da Grécia arcaica diz, a seu modo, na perspectiva de novos horizontes, algo que lhe é estranhamente próprio. Assim, digamos que não há repetição, mas diálogo, ou melhor, abertura de diálogo; situação em que quem versa não desfaz seu próprio discurso no discurso do Outro, mas constrói um discurso próprio engatado no discurso do Outro (6).

Desse modo, a épica homérica, para além da matriz de um gênero, revela-se matriz de outros gêneros. “Homero copiou homens superiores”, recorda Aristóteles (1993). E como observa Vernant (1984):

“...os homens já tomaram consciência de um passado separado do presente, diferente dele (a idade do bronze), idade dos heróis , contrasta com os tempos novos, votados ao ferro); o mundo dos mortos distanciou-se, separado do mundo dos vivos (...); uma distância inseparável se estabeleceu entre os homens e os deuses (o personagem do rei divino desapareceu). Assim, em toda uma série de domínios, uma delimitação mais rigorosa dos diferentes planos do real prepara a obra de Homero, esta poesia épica que, no seio mesmo da religião, tende a afastar o mistério.” (Vernant 1984, p.26)

Com essa abertura para o diálogo, a poética homérica repete, com variações, a tentativa de recuperar o mito recuado no tempo. No canto XI da “Odisséia”, durante a visita do herói Odisseus (Ulisses, na tradução latina) ao reino dos mortos (Hades), Homero, mais uma vez, faz alusões à mitologia que o antecedeu. Na morada de Hades (o deus grego do subterrâneo), Odisseus revê velhos companheiros, como por exemplo, Aquiles, Agamênon, Tirésias, a própria mãe... : todos transformados em sombras. Além dos contemporâneos, aparece-lhe, também, os heróis de antanho:

“Vi também Fedra, Prócis e a bela Ariadne, filha do temível Minos; Teseu levara esta de Creta um dia para o outeiro de Atenas sagrada, mas não chegou a desfrutar o seu amor, porque Ártemis a matou antes, em Dia em meio às ondas, por denúncia de Dioniso.” (Homero, Odisséia: Canto XI)

Do trecho homérico acima citado, impõe-se - se não nos enganamos - que a épica homérica não apresenta o tempo de maneira cristalina, mas a memória épica de Homero aparece como uma fonte límpida, porque traz à tona eventos esquecidos ou existências anteriores, recriando, desse modo, o sentido de um dos mais antigos mitos da humanidade. A memória em seu poder mágico é música; é canto que repete o passado para retê-lo, não deixando-o diluir pelo tempo. O passado remoto da civilização palaciana de Cnossos, do Rei divino que desaparece do horizonte distanciado de Homero, é revelado por meio de uma mescla de narrativas poéticas com vários elementos das tradições heróicas pertencentes a um tempo que não se confunde com o tempo histórico (tempo cronológico), mas pertencentes a um tempo da ordem da eternidade (o tempo “áion”, dos deuses), pois é pela memória que Homero recupera a presença de uma realidade da qual não lhe foi dada participar.

O que vem a ser, então, o épico em Homero? Devemos lembrar que a palavra “epikós”, em grego, relaciona-se com o sentido de “épos” (palavra, narrativa, poema, recitação) (7). Os poemas homéricos estão carregados de “epos”, isto é, um coletivo de “epos” procedente da tradição oral que deita raízes nas realizações culturais pré-existentes. Homero os recolheu e os cristalizou sob a forma de poemas épicos na “Ilíada” e na “Odisséia”. Se a fonte de Homero é a épica oral, pensamos que era muito extensa a quantidade de poesia viva encontrada à sua disposição. Nesse caso, a voz do poeta é uma voz coletiva - tecida mediante outras vozes procedentes de tempos anteriores. Dando ênfase à ação verbal, pois o tema essencial do mito era a ação, o acontecimento, o fato, e não as idéias, na sociedade grega dos tempos homéricos, o aedo (poeta-cantor) passa a versar, dando ênfase aos feitos heróicos dos mortais. Nesse caso, o canto épico é o canto capaz de rememorar aquele que morreu. Assim, contra a história dos anônimos que cai no esquecimento, a palavra poética luta contra o esquecimento e a morte. Detienne ressalta que nessa sociedade as duas potências poéticas maiores são o elogio e a crítica:

“Em uma sociedade agonística, que valoriza a excelência do guerreiro, o domínio reservado ao louvor e à censura, é, precisamente, o dos atos de bravura. Neste plano fundamental, o poeta é o árbitro supremo.” (Detienne 1988, p.19)

Resumindo, podemos formular o seguinte argumento: os textos homéricos combinaram vários elementos mítico-poéticos procedentes de um passado longínquo. Homero fez desabrochar estes elementos antigos na ampla configuração da épica, dando-lhes coerência e fazendo neles refletir a situação social de sua própria época. Consoante o historiaodor M.I.Finley, o gênio da “Ilíada” e da “Odisséia” reside justamente aí:

“A superioridade de um Homero reside no nível superior em que se situa o seu trabalho de poeta, na frescura, no vigor do estilo com que soube tratar e escolher essa herança, nas variantes e inovações que introduziu, enfim, na sua maneira de ligar os temas uns aos outros.” (Finley 1988, p.33)

Por fim - e tomadas a partir de uma visão de conjunto - o que dá forma e unidade à “Ilíada” e à “Odisséia” (apesar da extensão de ambos os poemas) é a fascinante capacidade da ação verbal homérica em fundar um núcleo para cada poema, ou seja, a “Ilíada” canta a cólera de do herói grego Aquiles e a “Odisséia” canta o retorno ao lar do herói astucioso Odisseus . Eis aqui o dom do poeta: fazer uso de uma estratégia para não se perder no Labirinto.

A EPOPÉIA HOMÉRICA: ORALIDADE E ESCRITA

Estudos recentes localizam a invenção do alfabeto grego por volta de 700 a.C. Com Havelock (1996), notamos que “em algum ponto entre 700 e 550 a. C. , a ‘Ilíada’ e a ‘Odisséia’ foram, como se diz, ‘confiadas à escrita’”. Em vista desse fato, haveria métodos disponíveis para tratar com o discurso efêmero da palavra falada na Grécia não-letrada, solo, aliás, no qual fecundou a epopéia homérica?

Em suas reflexões sobre os primórdios da literatura grega, Lesky (1995) afirma o seguinte:

“Partilhamos com muitos estudiosos a crença de que a concepção de ambas as epopéias exigia necessariamente a escrita. Semelhante iniciativa era de data recente na época de Homero e é possível que ele próprio tenha sido o primeiro épico que redigiu o seu poema por escrito (...) No entanto, seria errado fazer do poeta que escreve, ponto de partida duma transmissão escrita, completamente ligada ao livro. Esta transmissão manteve-se durante muito tempo totalmente nas mãos dos rapsodos que se tinham organizado em corporações (...)Temos, pois, que pressupor, para a época arcaica, uma tradição preponderantemente oral das epopéias sobre a base de uma fixação escrita.”(Lesky 1995, p.94-5)

Rolos de papiro, tábuas de madeira e outros utilitários demonstram que os gregos pré-letrados não desconheciam inteiramente a escrita. Contudo, foi somente no século IV que o livro na antiga Grécia passou por uma imensa difusão. As análises de Lesky (1995) sobre o tema apontam dois fenômenos decisivos (ambos anteriores à época de Homero) que criaram os pressupostos necessários para o eclodir da literatura grega: o aparecimento da escrita e o nascimento do mito grego. Nas ruínas de Cnossos, na ilha de Creta, foram encontradas tabuinhas de argila com registros da escrita silábica denominada Linear B. Haveria, então, uma classe de escribas na Grécia arcaica? Teriam esses escritos um caráter puramente utilitário? Dúvidas, imprecisões e incertezas acumulam-se nos estudos dedicados a tal assunto. É por exemplo o que demonstra a tese de M.I. Finley sobre o surgimento da escrita na Grécia:

“O momento exacto em que os Gregos começaram a escrever permanece um segredo encerrado nas tabuinhas por decifrar de Creta e Micenas; as mais recentes investigações sugerem uma data que pode remontar até 1400 a.C.” (Finley 1988, p.17)

Em contrapartida, as análises de Havelock (1996) apontam para as construções complexas da “Odisséia” e da “Ilíada” enquanto o começo de uma parceria ou de uma tensão dinâmica entre o oral e o escrito, que se mostrou bastante fecunda. De acordo com Havelock, por esta ocasião, existia, simultaneamente, o tratamento da linguagem de forma acústica alavancada pelos princípios de ressonância (eco) em competição com a linguagem, tratada segundo princípios arquitetônicos, ou seja, pelo alfabeto e pela escrita.

Na verdade, a passagem de um mundo compartilhado em comunidade para um mundo em silêncio - lido a sós - parece-nos colocar um problema tempestuoso e irresolúvel no campo da poética.

Ademais, do lado da sofisticação da poética homérica é preciso destacar o emprego por Homero da poesia métrica em seus poemas amparada pelas técnicas dos versos hexâmetros-dactílicos somada à dança, à recitação e à música. Estes eram os elementos que davam o ritmo musical da linguagem poética do grego arcaico. A palavra poético-musicada, além do aspecto mágico, permitia ao poeta o poder de penetrar no oculto, isto é, de ter um acesso profundo do humano junto aos deuses.

“Os termos que o grego empregava para caracterizar a rítmica confirmam que eles a sentiam corporalmente: pé (pé métrico),‘thesis’, ‘arsis’. O primeiro é como sabemos, uma determinada associação de longas e breves facilmente reconhecível por uma repetição regular... ‘Thesis’ significa o abaixamento dos pés e ‘arsis’ a sua elevação... A palavra que não é apenas dita ou cantada, mas também corporalmente realizada, adquire uma presença mágica. Em nenhuma das línguas ocidentais modernas encontramos nada que de longe se lhe assemelhe.”(Grassi [s.d.], p.143-4)

Cumpre, finalmente, lançarmos algumas considerações de Marcel Detienne - importante mapeador da geografia do saber na Grécia arcaica -, as quais acrescentam mais conhecimento sobre tal problemática. Afirma o helenista francês:

“ ‘Que memória não era necessária naqueles tempos? ! (...) Uma civilização oral exige um desenvolvimento da memória, ela necessita da execução de técnicas de memória muito precisas. A poesia oral, da qual resultam a ‘Ilíada’ e a ‘Odisséia’, não pode ser compreendida sem se postular uma verdadeira ‘mnemotécnica’ (...) Sob a inspiração poética, suspeita-se um lento adestramento da memória (...) Nesses meios de poetas inspirados, a Memória é uma onisciência de caráter adivinhatório; define-se como saber mântico, pela fórmula: ‘o que é , o que será, o que foi’”. (Detienne, 1988, p.16-17)

A despeito dessas posições, que comportam uma boa dose de hipóteses - algumas vezes contraditas, outras vezes sedutoras ou altamente prováveis -, aceitamos a hipótese de que a criação homérica deita raízes na esfera do canto heróico oral. Portanto, a fonte de Homero é a épica oral. Os poemas homéricos seguem regras formulares, características da composição oral. É bem provável que os aedos tenham afeiçoado definitivamente a “Ilíada” e a “Odisséia” por escrito. Porém, pensamos que a difusão dos dois poemas homéricos permaneceu oral, malgrado a introdução do alfabeto e outras técnicas da escrita no mesmo período.

MITO E COMPOSIÇÃO ÉPICA

Mito e Logos são palavras equivalentes (8). Foram os discursos da História e da Filosofia que vieram, posteriormente, decidir o que é mito ou logos, ambos pretendendo que o último termo signifique um relato racional e verdadeiro. Como observa Eliade (1972), “é a vitória do livro sôbre a tradição oral”. A filosofia grega, num dos seus maiores pensadores (Platão, que “escreve” Sócrates), não reconciliou mito e logos, ao contrário, aprofundou o contraste entre os dois termos. Numa passagem do “Fédon”, Platão (1983) diz que ”um poeta para ser verdadeiramente poeta deve empregar mitos e não raciocínios.” Lembremos, também, as tentativas de Herôdotos na “História” ao recusar a narrativa mítica, quando se trata de descrever o tempo histórico na escrita da nossa história. Em estudos sobre a afirmação da filosofia em solo grego, Detienne ressalta que:

“A palavra ‘mythos’ - que, desde a epopéia, faz parte do vocabulário da palavra e do verbo - ainda se não mobilizou para designar o discurso dos outros, que a filosofia, apenas nascida mas já escandalizada, aponta com o dedo e denuncia tão ruidosamente.” (Detienne, 1987, p.66 )

Feitas essas breves considerações, como então definir o Mito?

Mito é palavra primordial, poética, nomeadora de sentido. Mito é palavra que remete à origem porque “êle relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’ (...) êle relata de que modo algo foi produzido e começou a ‘ser’” (Eliade:1972) . “Na ‘Teogonia’de Hesíodo, no verso 24, ‘mýthos’ tem o sentido de palavra divina que se apresenta em forma de palavra humana...” revelando o sentido do ser (Jaa Torrano: 1996): “Esta palavra primeiro disseram-me as deusas”. Os mitos são narrativas freqüentemente históricas que apontam para certo tipo de verdades que não poderiam ser ditas de outra forma. O mito coloca os eventos isolados num contexto mais amplo, dando-lhes sentido e significação, isto é, o mito é fruto de uma prática elaborada mediante a inserção da comunidade em seu meio ambiente. Nesse caso, o mito é um saber a-sistemático, pois não visa uma explicação objetiva do real. Sua meta não é a formulação lógica sobre algo, visto que ele se situa num horizonte imediato, que se descerra e é desnudado a uma comunidade. Referindo-se ao mito épico, Octavio Paz afirma o seguinte:

“O que Homero nos conta não é um passado datável e, a rigor, sequer é um passado; é uma categoria temporal que flutua, por assim dizer, sobre o tempo, sempre com avidez de presente.” (Paz 1982, p. 226-7)

Por meio do poema mítico-épico e da palavra primordial as experiências individuais e coletivas são narradas à comunidade, que as preserva na memória. Nesse caso, não há separação entre poética e história, pois “a história é o lugar da encarnação da palavra poética.” (Paz: 1982)

O TEMA DO AEDO: O PAPEL DO AEDO NO NARRAR POÉTICO

A função do aedo é celebrar os grandes feitos humanos, para que se perpetuem na memória dos mortais. Celebrar os imortais, os deuses e as façanhas dos homens corajosos e famosos. Nesse sentido, o poeta inspirado (o aedo) pela Musa é aquele que consegue lutar contra a morte de uma e/ou da (s) tradição(ões) cultural (is). Desse modo, no interior do plano mitológico, o poeta é o Mestre da Verdade.

“O poeta é pois um homem possuído pela memória, o aedo é um adivinho do passado, como o adivinho o é do futuro (...) A poesia, identificada com a memória, faz desta um saber e mesmo uma sageza, uma ‘sophia’. O poeta tem o seu lugar entre os ‘mestres da verdade’”(Le Goff 1990 , p.438)

Todavia, o que é a Verdade? Ou, como convém defini-la (a Verdade) no contexto mítico da epopéia homérica?

Numa palavra: é aquilo do que nos lembramos. Na trama da “Odisséia” o herói Odisseus está, sempre, a pronunciar algo semelhante à seguinte frase: “agora vou te falar sem rodeios...”. Em seguida, Odisseus apenas profere uma sucessão de mentiras! É o que verificamos num episódio do Canto XIV da “Odisséia”, quando Odisseus, durante o seu longo retorno a Ítaca - disfarçado de mendigo -, relata uma história mentirosa ao seu fiel porqueiro Eumeu. Odisseus principia a história, dizendo o seguinte : “ _Pois bem, eu to direi com inteira franqueza...”

Assim, num primeiro momento, a função da palavra no mito não se relaciona com a Verdade ou com a Mentira tal como as entendemos, mas relaciona-se com o lembrar e o esquecer. É em torno do par de opostos memória-esquecimento (Mnemósyne-Lethe) que se estrutura a palavra poética. O primeiro papel da palavra, neste caso, é lembrar, pois, caso contrário, tudo cai no esquecimento. Em última instância, a “Odisséia” é um conjunto de lembranças, lembranças, lembranças... O episódio da viagem do herói da “Odisséia” (Canto XI) ao reino dos mortos ilustra como o guerreiro Aquiles é lembrado pelo herói vivo, Odisseus. As almas, no reino de Hades, se esquecem de tudo, porque são, na verdade, totalmente tolas! (Eu preferiria ser escravo na terra, a ser rei no Hades - eis o lamento da sombra de Aquiles dirigido a Odisseus no reino dos mortos). As sombras devem beber o sangue do sacrifício para, assim, se lembrarem. Memória e verdade: “alethéia” é verdade articulada ao plano mítico. Assim, a questão da palavra é ajudar a não esquecer e não definir o que seja verdadeiro ou falso, como faz o pensamento subjugado pela lógica da racionalidade – perdendo, dessa forma, a linguagem a sua função nomeadora. “Alétheia” é o originário, é o impensado digno de ser pensado, como já observara Heidegger; é Verdade que se dissimula, apelando ao poeta para captá-la e restituir à linguagem a sua proveniência nomeadora.

No mundo mítico, o poeta recebe dos deuses a dádiva inspiradora e narra um conjunto de belas ações heróicas. Em última instância, lá no fundo do horizonte, o épico é a soma da memória e do poder divinos. Assim, o poeta invoca as Musas, pois um feito sem canto é algo amorfo. Neste caso, o aedo é um seguidor de Apolo (dentre outros atributos, Apolo é o deus que conduz as Musas. É, também, o deus da inspiracão, da música e, especialmente, da lira). O poder dos deuses tece os feitos heróicos, para que os poetas possam tecer os seus cantos. Doadoras da inspiração poética (as Musas), quando Homero - no proêmio da “Odisséia” - invoca as Musas, tudo já é “mais ou menos” conhecido (“Canta, ó Musa, o varão que astucioso...”). Canta o que já sei! Com efeito, a Musa reconta ao aedo, e o aedo inspirado canta e reconta. Assim, o aedo pede inspiração à Musa para cantar-contar algo que já conhece; o aedo já sabe, pois já tem um certo saber sobre aquilo que vai narrar. Nesse sentido, a Musa o auxilia; a Musa, na verdade, se inscreve no saber prévio do aedo.

Tanto para Homero como para Hesíodo são as Musas que concedem ao homem comum uma voz melodiosa e harmônica: “Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar” (Hesíodo: 1981); nesse instante, o poeta abre a boca e canta, sem necessidade de buscar as palavras certas, pois estas eclodem de seu íntimo. A palavra poético-musical tem como conteúdo a inesgotável compreensão do real em sua totalidade, alcançando três níveis de temporalidade: o passado, o presente e o futuro. Surgindo como música que reivindica o Sagrado, a palavra poética é o ponto mais alto de elevação da comunidade, desempenhando dessa forma a função formadora dos homens. Nesse sentido, Homero é o aedo divino que ensina o povo, centrando-se no papel fundamental da Memória. Segundo Jaa Torrano:

“O cantor (aoidós), chamado ‘servo das Musas’ ( Mousáon therápon, T.100) , neste ‘serviço’ que propriamente constitui o culto, imprime antes de tudo à sua própria existência a forma contemplada por meio da interpelação divina e torna-se assim ele mesmo imagem das Musas entre os homens imortais.” (Torrano, 1996 , p.26)

Entretanto, se tudo já é mais ou menos sabido, quem são, afinal, as Musas?

As Musas nascem de Zeus. “Nove noites copulou com Memória o sábio Zeus, e ela pariu nove moças unânimes...” (Torrano: 1996). As musas são filhas de “Mnemosýne”, personificação da Memória. A linhagem das cantoras plenas de Memória é a seguinte: Clio (Musa da História); Euterpe (Musa da Música), Talia (Musa da Comédia); Melpómene (Musa da Tragédia); Terpsícore (Musa da Dança); Érato (Musa da Poesia Lírica); Polímnia (Musa da Harmonia), Urânia (Musa da Astronomia) e Calíope (Musa da Poesia Épica).

Na palavra do poeta Musa e Memória são duas noções complementares. Musa (de ‘Mousai’ e ‘agein’ = “conduzir”) é memória do passado, é palavra cantada e ritmada. Enfim, é o próprio canto. Por outro lado, a invocação do passado pela memória do poeta requer um esforço mental (uma profunda imersão do intelecto na recitação) de difícil compreensão para uma mente letrada como a nossa. Além disso, o poeta, enquanto agregador da comunidade, não se preocupa com o individual, mas com o coletivo. O canto épico visa, então, manter os rastros... Aliás, se existe uma idéia forte na “Odisséia” é esta: a palavra poética luta contra o esquecimento e contra a morte, pois a memória é uma maneira de sobreviver na lembrança dos homens.

A IMPORTÂNCIA DA POESIA E DA MÉTIS NA “ODISSÉIA”

Afinal, o que rememora e narra a “Odisséia”?

Inicialmente cumpre-nos apresentar uma constatação: a “Odisséia” é um espelho da “Ilíada”, na medida em que preenche lacunas da “Ilíada” : Nestor, Menelau e Agamênon são reis oriundos da “Ilíada”, com os quais Ulisses sempre se confronta na “Odisséia”.

A “Odisséia” está dividida em vinte e quatro cantos. Esta divisão (como a da “Ilíada”) é freqüentemente atribuída a Aristarco, célebre gramático e crítico alexandrino, que viveu no século II a.C. Em geral, o conteúdo da obra rememora as aventuras do herói astucioso Odisseus, ou melhor, os fatos daquilo que acontece entre a “Ilíada” (que trata dos acontecimentos da guerra de Tróia) e a “Odisséia” (que trata das aventuras do solerte Odisseus em seu retorno a Ítaca, quando termina a guerra de Tróia). Nesse caso, podemos afirmar sem dúvida que a “Odisséia” tem por função preencher as lacunas da tradição. Considerando, por exemplo, o episódio do Canto VIII da “Odisséia”, no qual Odisseus, narrando suas maravilhosas aventuras na corte do Feácios, revela sua identidade. Dessa forma, Homero converte o herói Odisseus em narrador de suas próprias aventuras, expediente que na “Ilíada” não se conhece. Odisseus, na corte do Feácios se assume como poeta, pois o mérito do herói ter visitado o reino de Hades (Canto XI) está em ter se tornado um aedo, um narrador.

Por outro lado, ao contrário da “Ilíada” (24 cantos épicos que “num só fôlego” tratam das disputas entre os heróis, das batalhas entre gregos e troianos e das discórdias entre os deuses), a “Odisséia” desdobra-se em três linhas de ação bem definidas.

A história começa quando já se haviam passado dez anos da queda de Tróia. Enquanto todos os chefes gregos tinham voltado aos seus lares, Odisseus encontrava-se retido na ilha de Ogígia, junto à deusa Calipso. Durante a ausência do esposo (Odisseus), Penélope procurava adiar a escolha entre os seus numerosos pretendentes, tecendo durante o dia uma mortalha para o sogro Laertes (pai de Odisseus), e desfazendo-a durante a noite (encontra-se neste episódio o registro de uma bela metáfora da escrita!). Nenhuma notícia de Odisseus chegava a Ítaca, até que a Assembléia dos Deuses decide pelo regresso do herói. Esses quatro cantos iniciais são chamados de “Telemaquia”, porque neles preponderam os episódios que narram as viagens de Telêmaco em busca do pai (Odisseus) desaparecido. Telêmaco, amparado pela deusa Atena (deusa da sabedoria), busca informações sobre o pai em Pilos, onde o chefe guerreiro Nestor o acolhe amavelmente. Em Esparta, foi acolhido pelo chefe guerreiro Menelau e pela sua bela esposa Helena (cujo rapto foi a causa da guerra de Tróia). Em Ítaca, os pretendentes, sabendo da viagem às escondidas de Telêmaco, preparam-lhe um cilada mortal (Cantos I a IV).

Em seguida, temos os episódios que compõem o núcleo central da história. A ninfa Calipso recebe ordens de Zeus para libertar o herói Odisseus. Com uma balsa, Odisseus navega até a ilha dos Feácios. Odisseus é lançado desfalecido numa das praias da referida ilha, devido à fúria de Poseidon (deus dos mares), que odeia Odisseus, porque o último cegara seu filho Polifemo, um monstruoso Ciclope (Canto V). Encontrado por Nausícaa, filha de Alcínoo (rei dos Feáceos), esta o acolheu, conduzindo-o ao palácio do pai (Cantos VI a VII). Lá, Odisseus, motivado pelo aedo Demódoco, revela seu nome e narra suas numerosas aventuras desde a partida de Tróia, suas incursões pelas terras dos lotófagos (os comedores de lótus), dos Ciclopes (onde enfrenta o gigante Polifemo); suas aventuras com os lestrigões (os canibais gigantescos); sua chegada à ilha da feiticeira Circe (deusa que transforma os companheiros de Odisseus em porcos) que o aconselha a consultar Tirésias (adivinho grego) no reino de Hades (reino dos mortos); Tirésias lhe profetiza as circunstâncias do seu retorno. Odisseus também relata a passagem de sua nau pelas Sereias, pelos rochedos Cilas e Caríbdes, até a embarcação ser destroçada pelos fortes ventos enviados por Éolo (deus dos ventos). Odisseus, agora só, é levado até Ogígia. Lá é acolhido, bondosamente, pela deusa Calipso (Cantos VIII a XII). Ao terminar o relato de sua história, Odisseus é levado por uma nau dos Feácios até Ítaca (Canto XIII).

Por fim, temos os episódios que cobrem a parte final da “Odisséia”. Por intermédio de Eumeu, o fiel pastor de porcos, Odisseus (disfarçado de mendigo) conhece as insolências dos pretendentes enfrentadas pela esposa, Penélope. Na cabana de Eumeu, Odisseus reencontra o filho e revela sua verdadeira identidade a Telêmaco (recém-chegado de Esparta e a salvo da cilada preparada pelos pretendentes). Pai e filho combinam a matança dos pretendentes (Cantos XIV a XVI). Assim, ambos dirigem-se ao lar, onde Odisseus é reconhecido pelo velho cão Argos, e pela velha ama Euricléia. Penélope revela sua intenção de casar-se novamente com o homem que fosse capaz de vergar o arco de Odisseus, e disparar as flechas por meio dos furos de doze machados. Odisseus, ainda disfarçado de mendigo, acerta o alvo. Depois, auxiliado por Eumeu e Telêmaco, promove a matança dos pretendentes. Odisseus revela sua identidade a Penélope e a seu pai Laertes. Finalmente, a deusa Atena põe fim ao derramamento de sangue (Cantos XVII ao XXIV).

Estando, assim, o conjunto de narrativas que compõe o enredo sumariamente delimitado da “Odisséia”, seria importante indicarmos nossa orientação (o nosso fio de Ariadne), ou o nosso principal interesse ao percorrermos este extenso poema.

Em primeiro lugar, pressupomos que a “Odisséia” não é uma narração simples perpassada por reflexões sobre o ato de narrar, mas entendemo-la, na verdade, como uma narrativa transpassada por uma reflexão, uma profunda reflexão sobre as modalidades e as qualidades da Métis. Por conseguinte, perguntamos: o que é Métis? No já consagrado tratado sobre a Métis, os autores, Detienne e Vernant, tecem, dentre outras, as seguintes considerações:

“La métis est bien une forme d’intelligence et de pensée, un mode du connaître; elle implique un ensemble complexe, mais très cohérent, d’attitudes mentales, de comportementes intellectuels qui combinent le flair, la sagacité, la prévision, la souplesse d’esprit, la feinte, la ‘debrouillardise, l’attention vigilante, le sens de l’opportunité, des habiletés diverses, une expérience longuement acquise; elle s’applique à des realités fugaces, mouvantes, déconcertantes et ambiguues, qui ne se pretent ni à la mesure précise, ni au calcul exact, ni au raisonnement rigoureux.” ( Detienne e Vernant 1974, p.10)

“Na ‘polytropía’ de seu herói concentra-se a ‘Odisséia’”, lembra Torrano (1996). A postulação da Métis (a prudência) de Odisseus percorre, portanto, toda a “Odisséia”, porque com um Odisseus sem “tropos” (isto é, sem rodeios, sem “voltas”...) - e aqui pensamos ser fundamental ressaltar - não existiria a “Odisséia”. Durante o desenvolvimento de grande parte do enredo da “Odisséia”, a impressão que fica para o leitor, face aos inúmeros adiamentos do retorno do herói a Ítaca, é a de um Odisseus possuidor de mais de um “tropos”, ou melhor , o herói ao mesmo tempo quer e não quer chegar a Ítaca ( devemos lembrar que, entre ninfas e deusas, Ulisses desfrutou da companhia da deusa Calipso por mais de sete anos. Viveu um ano feliz na ilha da deusa Circe; e finalmente despertou o amor da bela adolescente Nausícaa, na ilha paradisíaca dos Feácios).

Nessa medida, parece-nos que Odisseus é o único herói de Homero dotado de uma inteligência irrepreensivelmente elevada, pois jamais se lança às cegas em suas numerosas aventuras. Poderíamos, então, definir o seguinte: se por um lado, o colérico Aquiles (na “Ilíada”) é o herói homérico que não tem “tropos”, pois age por impulsos, pelas paixões; ao contrário, Odisseus (na “Odisséia”) é o herói homérico que tem muitos “tropos” (“Polytropos”: numa tradução aproximada do grego, a palavra “polytropos” adquire o significado de “muitos jeitos”, “muitos rodeios”, “muitas voltas”, “muitos lugares”...). O proêmio da “Odisséia” já procura acentuar tais qualidades em Odisseus/Ulisses:

“Musa, narra-me as aventuras do herói engenhoso, que, após saquear a sagrada fortaleza de Tróia, errou por tantíssimos lugares e conhecendo o pensamento de tantos povos e, no mar, sofreu tantas angústias no coração, tentanto preservar a sua vida e o repatriamento de seus companheiros (...); eles perderam-se por seu próprio desatino; imbecis...”. (Homero, Odisséia: canto I)

Na variações de sentido, Odisseus é o herói homérico dotado da faculdade de uma espécie de inteligência (Métis), a qual lhe permite apreender rapidamente uma situação e adaptar-se a ela. Portanto, Odisseus é o herói portador “de muitas métis” (“Polymétis”).

O Canto XIII da “Odisséia” narra o retorno do herói Odisseus a Ítaca. Ele é transportado por um navio feácio e, lá chegando, é depositado dormindo na praia. Ao despertar ele se encontra desamparado, pois não sabia onde realmente se encontrava. Então, surgi-lhe à frente a oferecer-lhe auxílio a deusa Atena, disfarçada de pastor de ovelhas. Odisseus pergunta ao “pastor de ovelhas” onde afinal se encontrava. Atena lhe diz que se encontrava em Ítaca. Receoso, o solerte Odisseus “disfarçou” sua própria identidade, enganando dessa forma, a deusa Atena. Esta então lhe responde prontamente:

“_ Quão astucioso e dissimulado seria quem te superasse em tudo que é ardil, mesmo que fosse um deus a competir contigo! Mísero! Artificioso! Insaciável de enganos! Então, havias de abandonar a linguagem enganosa e astuta? Eia, pois tu és, entre todos os mortais, incomparavelmente o melhor na persuasão e na eloqüência e eu sou famosa, entre todos os deuses, pela inteligência e astúcia.” (Homero, Odisséia: canto XIII)

O Canto XIV da “Odisséia” nos remete a uma outra configuração da Métis. O porqueiro Eumeu solicita ao solerte Ulisses (disfarçado de mendigo) que conte sua história. O “mendigo” conta ao porqueiro uma história falaciosa, enganadora, mentirosa. O mais interessante é que ao iniciar a história o solerte Ulisses diz a Eumeu: “_Pois bem, eu to direi com inteira franqueza”. Entretanto, a partir daí tem início um desenrolar de mentiras, mentiras, mentiras...

Um dos episódios da narrativa de Odisseus atinge um ponto crucial no que se refere ao uso da Métis, relacionada com a mentira sobre a própria identidade. Trata-se do episódio em que Odisseus e seus companheiros encontram-se detidos no interior da caverna do Ciclope Polifemo (Canto IX). Odisseus embebeda o monstro e vaza seu único olho. O gigante, gritando de dor, chama os outros companheiros (os outros Ciclopes), dizendo que “Ninguém” o estava matando por astúcia. “Ninguém” é o nome que Odisseus atribuíra a si mesmo, quando interrogado pelo Ciclope: “Ciclope, perguntaste o meu glorioso nome; eu vou dizer-to. Chamam-me Ninguém minha mãe, meu pai e todos os meus companheiros.” Os demais ciclopes, pensando tratar-se de uma brincadeira não socorrem Polifemo, abrindo espaço, dessa forma, para que Odisseus e seus companheiros fugissem do lugar antes de serem devorados pelo monstro.

O episódio das Sereias (Canto XII) oferece outra variante do poder da Métis, concentrado na feiticeira Circe. O canto mavioso das Sereias possui um perigoso poder que leva os ouvintes ao esquecimento, à morte. A isto o herói responde da seguinte forma:

“_ Amigos, não é justo que só um ou dois conheçam os vaticínios que me fez Circe, a augusta deusa; por isso vou contá-los (...) [Circe] aconselhou que só eu lhes ouvisse a voz [das sereias]; por isso, amarrai-me de pé sobre a carlinga, com rudes laços, para que eu daqui não saía (...) Se eu insistir convosco para que me solteis, apertai-me, então, em laços mais numerosos.”(Homero, Odisséia: canto XII)

A Métis, enquanto “inteligência prática”, é uma inversão de forças na qual o fraco vence o forte. As artimanhas de Penélope em tecer um véu para a mortalha do sogro Laertes, enganando, desse modo, os pretendentes é uma das maiores Métis da “Odisséia”. No horizonte temporal da Métis, não existe nem uma perspectiva racional quanto moral “a priori”, pois ela se caracteriza como uma premeditação vigilante. Nesse sentido, o homem e a mulher da Métis agem como um relâmpago. Ao mesmo tempo, não se deixam levar por impulsos. Se a loucura tende a abolir o tempo, a Métis, ao contrário, sabe trabalhar a temporalidade, pois ela possui o domínio do tempo em três situações: tem a experiência do passado, agarra o momento presente, fugaz, e faz predições para o futuro.

Finalmente, concebida dessa maneira, a Métis, enquanto “inteligência prática” não é uma categoria mental, mas uma forma de inteligência dotada de argúcia, sagacidade e fingimento aliada à experiência adquirida. A cultura filosófica posterior, sobretudo devido à sobrevalorização do pensamento contemplativo, marginalizará o discurso da Métis.

NOTAS

1. Cf. Kitto, H.D.F. Os Gregos. 3 ed. Coimbra : Arménio Amado Editor,1980, p. 75.

2. “Genius”, para os romanos o espírito (“numen”) que coabitava com o homem e lhe dava poder gerador.

3.Cf. Gagnebin, Jeanne Marie. O início da História e as lágrimas de Tucídides. Margem: Educ, n. 1, pp. 11-15.

4. A primeira objeção séria levantada contra a historicidade de Homero foi feita por Augusto Wolf (1759-1824), filósofo e erudito alemão. Wolf sustentou em seus “Prolegômenos” que a “Ilíada” e a “Odisséia” haviam sido constituídas pela justaposição de trechos épicos de diferentes épocas.

5. Cf. Kazantzaki, Nikos. No palácio do Rei Minos. São Paulo: Editora Marco Zero, 1986, p. 216.

6. Cf. Brandão, Jacyntho Lins. Primórdios do épico: ILÍADA. In: APPEL, Myrna Bier et al. “As Formas do Épico: da epopéia sânscrita à telenovela”. Porto Alegre: Editora Movimento, 1992, p. 41.

7. Cf. idem, p.43.

8. Ambos os termos comungam em idêntica significação ao expressarem o sentido de relato, discurso ou narrativa. Sobre a dinâmica do binômio mito-logos no interior do pensamento ocidental, sugerimos a consulta ao dicionário de “Termos Filosóficos Gregos”, de F.E.Peters.

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Fonte: http://www.recantodasletras.com.br/artigos/84966 (12/12/2005)