LITERATURA CLÁSSICA GREGA 1 ILÍADA

ORFEU SPAM APOSTILAS

HOMERO

A Ilíada - por Daniel Duclós

A Ilíada (do grego Iλιάς, Ilias) é um poema épico grego e narra uma série de acontecimentos ocorridos durante o décimo e último ano da Guerra de Tróia. O título da obra deriva do nome grego de Tróia, Ílion.

A Ilíada e a Odisséia são comumente atribuídas a Homero, que acredita-se ter vivido por volta do século VIII a.C. na Jônia ( lugar que hoje é uma região da Turquia), e tratam-se dos mais antigos documentos literários gregos a sobreviverem aos nossos dias. Porém, até hoje se debate a existência desse poeta e se os dois poemas foram compostos pela mesma pessoa.

Visão geral

A Ilíada é composta de 15.693 versos em hexâmetro dactílico, que é o formato tradicional da épica grega. Hexâmero é um verso composto de seis sílabas poéticas e dactílico faz alusão ao ritmo do poema, composto de uma sílaba longa e duas breves, já que o grego (e o Latim) não possuem sílabas tônicas, e sim breves e longas.

A linguagem utilizada é o grego, num dialeto Jônico, e acredita-se que a Ilíada venha da tradição oral, ou seja, era cantada pelo rapsodo. Existem diversas seções que se repetem, como “ganchos” que facilitariam a memorização pelos aedos, indicando sua natureza de obra transmitida oralmente. Só muito mais tarde os versos foram compilados numa versão escrita, no século VI a.C. em Atenas. O poema foi então posteriormente dividido em 24 Cantos, divisão que persiste até hoje. A divisão é atribuída aos estudiosos da Biblioteca de Alexandria, mas pode ser anterior.

Os gregos acreditavam que a guerra de Tróia era um fato histórico ocorrido durante o período micênico, durante as invasões dóricas, por volta de 1200 a.C.. Entretanto há na Ilíada descrições de armas e técnicas de diversos períodos, do micênico ao século VIII a.C., indicando ser este o século de composição da epopéia.

A Ilíada influenciou fortemente a cultura clássica, sendo estudada e discutida na Grécia (aonde era parte da educação básica) e, posteriormente, no Imperio Romano. Sua influência pode ser sentida nos autores clássicos, como na Eneida, de Virgílio.

Até hoje considerada uma das obras mais importantes da literatura mundial.

Argumento

A Ilíada se passa durante o décimo e último ano da guerra de Tróia e trata da ira do herói e semideus Aquiles, filho de Peleu e Tétis. A ira é causada por uma disputa entre Aquiles e Agamémnom, comandante dos aqueus e consumada com a morte do herói troiano Heitor (ou Héctor, como também é traduzido o nome, especialmente na versão de Haroldo de Campos, de 2002), terminando com seu funeral.

Embora Homero se refira a uma grande diversidade de mitos e acontecimentos prévios, que eram de amplo conhecimento dos gregos e, portanto da sua platéia, a história da guerra de Tróia não é contada em sua íntegra. Dessa forma, o conhecimento prévio da mitologia grega acerca da guerra é relevante para a compreensão da obra.

A guerra de Tróia

Helena de Tróia segundo Evelyn de Morgan, 1898

Os gregos antigos acreditavam que a guerra de Tróia era um fato histórico, ocorrido por volta de 1200 a.C. no período micênico, mas estudiosos atuais tem dúvidas se ela de fato ocorreu. Até a descoberta do sítio arqueológico na Turquia, em Anatólia, se acreditava que Tróia era uma cidade mitológica.

A Guerra de Tróia se deu quando os aqueus atacaram a cidade de Tróia, buscando vingar o rapto de Helena, esposa do rei de Esparta, Menelau, irmão de Agamémnom. Os aqueus eram os povos que hoje conhecemos como gregos, que compartilhavam uma cultura e língua comuns, mas na época se enxergavam como vários reinos, e não como um povo só.

A lenda conta que a deusa (ninfa) do mar Tétis era desejada como esposa por Zeus e seu irmão Poseidon. Porém Prometeu fez uma profecia que o filho da deusa seria maior que seu pai, então os deuses resolveram dá-la como esposa a Peleu, um mortal já idoso, intencionando enfraquecer o filho, que seria apenas um humano. O filho de ambos é o guerreiro Aquiles e sua mãe, visando fortalecer sua natureza mortal, o mergulhou quando ainda bebê nas águas do mitológico rio Estige. As águas tornaram o herói invulnerável, exceto no calcanhar, por onde a mãe o segurou para mergulhá-lo no rio (daí a famosa expressão “calcanhar de Aquiles”, significando ponto vulnerável). Aquiles se torna o mais poderoso dos guerreiros, porém, ainda é mortal. Mais tarde, sua mãe profetisa que ele poderá escolher entre dois destinos: lutar em Tróia e alcançar a glória eterna, mas morrer jovem ou permanecer em sua terra natal e ter uma longa vida, porém ser logo esquecido.

Para o casamento de Peleu e Tétis todos os deuses foram convidados, menos Éris, ou Discórdia. Ofendida, a deusa compareceu invisível e deixou à mesa um pomo de ouro com a inscrição “à mais bela”. As deusas Hera, Atena e Afrodite disputaram o título de mais bela e o pomo. Zeus então ordenou que o príncipe troiano Páris, à época sendo criado como um pastor ali perto, resolvesse a disputa. Para ganhar o título de “mais bela”, Atena ofereceu a Páris poder na batalha, Hera o poder e Afrodite o amor da mulher mais bela do mundo. Páris deu o pomo à Afrodite, ganhando assim sua proteção, porém atraindo o ódio das outras duas deusas contra si e contra Tróia.

A mulher mais bela do mundo era Helena, filha de Zeus e Leda. Leda era casada com Tíndaro, rei de Esparta. Helena possuía diversos pretendentes, que incluiam muitos dos maiores heróis da Grécia, e o seu pai adotivo, Tíndaro, hesitava tomar uma decisão em favor de um deles temendo enfurecer os outros. Finalmente um dos pretendentes, Odisseu (cujo nome latino era Ulisses), rei de Ítaca, resolveu o impasse propondo que todos os pretendentes jurassem proteger Helena e sua escolha, qualquer que fosse. Helena então se casou com Menelau, que se tornou o rei de Esparta.

Quando Páris foi a Esparta em missão diplomática, se enamorou de Helena e ambos fugiram para Tróia, enfurecendo Menelau. Este apelou aos antigos pretendentes de Helena, lembrando o juramento que haviam feito. Agamémnom então assumiu o comando de um exército de mil naus e atravessou o Mar Egeu para atacar Tróia. As naus gregas desembarcam na praia próxima a Tróia e iniciam um cerco que iria durar 10 anos e custaria a vida muitos heróis de ambos os lados. Finalmente, seguindo um estratagema proposto por Odisseu, o famoso Cavalo de Tróia, os gregos conseguem invadir a cidade governada por Príamo e terminam a guerra.

A Ilíada não conta o final da guerra, nem narra a morte de Aquiles.

Personagens principais

A Ilíada é um poema extenso e possui uma grande quantidade de personagens da mitologia grega e Homero assumia que seus ouvintes estavam familiarizados com esses mitos, o que pode causar confusão no leitor moderno. Segue um resumo dos personagens que tomam parte na Ilíada:

Os Aqueus

Os gregos antigos não se enxergavam como “gregos” ou “Helênicos”, denominação posterior, mas como “aqueus”, compostos por diversos povos de diversos reinos que tinham uma língua e cultura razoavelmente compartilhada. Os aqueus também são chamados de “Dânaos” por Homero.

• Aquiles: Herói e melhor de todos os guerreiros, filho da deusa marinha Tétis e do mortal Peleu, rei dos Mirmidões. Sua ira é o tema central da Ilíada.

• Agamémnom: Rei de Micenas e comandante supremo dos aqueus, sua atitude de tomar a escrava Briseida de Aquiles é o estopim do desentendimento entre eles.

• Pátroclo: Amigo de Aquiles. Alguns argumentam que há envolvimento homossexual entre Aquiles e Pátroclo.

• Odisseu: Rei de Ítaca, considerado “astuto”, ou “ardiloso”. Freqüentemente faz o papel de embaixador entre Aquiles e Agamémnom.

• Calcas Testorídes: Poderoso vidente que guia os aqueus. Foi ele que predisse que a guerra duraria 10 anos, que era preciso devolver Criseida ao pai e muitas outras coisas.

• Ajax, Nestor, Diomedes, Idomeneu: Reis e heróis gregos, que comandavam exércitos de seus reinos sob a supervisão geral de Agamémnom.

• Menelau: Rei de Esparta, marido de Helena.

Os Troianos e seus aliados

• Heitor, ou Héctor: Príncipe de Tróia, filho de Príamo e irmão de Páris. É o melhor guerreiro Troiano, herói valoroso que combate para defender sua cidade e sua família. Líder dos exércitos troianos.

• Príamo: rei de Tróia, já é idoso, portanto quem comanda de fato a luta é seu filho, Heitor.

• Páris: Príncipe de Tróia, sua fuga com Helena é a causa da guerra. É sua flecha que termina por matar Aquiles, embora isso não seja retratado na Ilíada.

• Enéias: Primo de Heitor e seu principal tenente. É o personagem principal da Eneida, obra máxima do poeta latino Virgílio.

• Helena: Esposa de Páris, antes casada com Menelau, e pivô da guerra. Com a queda de Tróia volta para Esparta e para Menelau.

• Andrómaca: Esposa de Heitor, com quem tem um filho bebê, Astíanax.

Os Deuses

Os deuses gregos tomam parte ativa na trama, se envolvendo na batalha e ajudando ambos os lados. Notadamente temos Tétis ( mãe de Aquiles) Apolo, Hera, Atena, Poséidon, Afrodite, Ares.

Resumo da narração

No décimo ano do cerco a Tróia, há um desentendimento entre as forças dos aqueus, comandadas por Agamémnom. Ao dividirem os espólios de uma conquista, o comandante aqueu fica, entre outros prêmios, com uma moça chamada Criseida, enquanto que a Aquiles cabe outra bela jovem, Briseida. Criseida era filha de Crises, sacerdote do deus Apolo, e este pede a Agamémnom lhe restitua a filha em troca de um resgate. O chefe aqueu recusa a troca, e o pai ofendido pede ajuda a seu deus. Apolo passa então a castigar os aqueus com a peste. Quando forçado a devolver Criseida ao pai para aplacar o castigo divino, Agamémnom toma a Aquiles sua Briseida, como forma de compensação e desagravo a Aquiles. Este, ofendido, se retira da guerra junto com seus valentes Mirmidões. Aquiles pede então a sua divina mãe que interceda junto a Zeus, rogando-lhe para que favoreça aos troianos, como castigo pela ofensa de Aquiles. Tétis consegue a promessa de Zeus de que ajudará aos troianos, a despeito da preferência de sua esposa, Hera, pelo lado aqueu.

Então Zeus manda, através de Oneiros, a Agamémnom um sonho incitando-o a atacar Tróia sem as forças de Aquiles. Agamémnom resolve testar a disposição de seu exército. A tentativa por pouco não termina em revolta generalizada, incitada pelo insolente Tersites. A rebelião só é evitada graças à decisiva intervenção de Odisseu, que fustiga Tersites e lembra a profecia de Calcas de que Ílion cairia no décimo ano do cerco.

Os dois exércitos se perfilam no campo de batalha, diante de Tróia. Páris, príncipe de Tróia, se adianta, mas logo recua ao ver Menelau, de quem roubara a esposa causando a guerra. Menelau o insulta e Páris responde propondo um duelo entre ambos. Os aqueus respondem com agressões, porém seu irmão Heitor, o maior herói troiano, reitera o desafio, propondo que o destino da guerra seja decidido numa luta entre Menelau e Páris. Menelau aceita, exigindo juramento de sangue sobre o pacto de respeitar o resultado do duelo. Enquanto os preparativos são feitos, Helena se junta a Príamo, rei de Tróia, no alto de uma torre para observar a contenda. Ela apresenta os maiores comandantes gregos, apontando-os para Príamo.

O duelo tem início e Menelau leva vantagem. Quando está para derrotar Páris, Afrodite intervém e o retira da batalha envolto em névoa, levando-o ao encontro de Helena. Agamémnom declara então que Menelau venceu a disputa e exige a entrega de Helena e pagamento do resgate. Porém Hera e Atena protestam junto a Zeus, pedindo a continuidade da guerra até a destruição de Tróia. Zeus cede em troca da não intervenção de Hera caso deseje destruir uma cidade protegida por ela. Atena então desce entre as tropas troianas e convence Pândaro, arqueiro troiano, a disparar contra Menelau, ferindo-o e rompendo o pacto com os gregos. O exército troiano avança, e Agamémnom incita os aqueus ao combate. Tem lugar então uma luta violenta, na qual os gregos começam a levar vantagem. Porém Apolo incita aos troianos, lembrando-os que Aquiles não participa da peleja.

Os troianos então avançam, retomando a vantagem sobre os gregos, a despeito dos grandiosos esforços de Diomedes, que insuflado pela deusa Palas Atena, chega a ferir os deuses Afrodite e Ares, que defendem os troianos. Os gregos por sua vez parecem retomar a vantagem, o que faz com que Heitor então retorne à cidade para pedir a sua mãe tente acalmar à Palas com oferendas. Após falar com a mãe, se encontra com sua esposa e filho em uma torre. O encontro é bastante triste, onde Heitor fala com a esposa e o filho sobre o seus futuros, pois pressente que Tróia cairá. A seguir, convoca Páris e com ele volta à batalha.

Aquiles cura Pátroclo

Detalhe de vaso em técnica de cerâmica vermelha 500 a.C.

Apolo combina com Atena uma trégua na batalha e para conseguí-la incitam Heitor a desafiar um herói grego ao duelo. Ajax é os escolhido num sorteio e avança para o combate. O duelo é renhido e prossegue até a noite, quando é interrompido. Os aqueus então aproveitam para recolher seus mortos e preparar um baluarte.

Com a manhã, o combate recomeça, porém Zeus proíbe os outros deuses de interferir, enquanto que ele dispara raios dos céus, prejudicando aos aqueus. O combate prossegue desastroso para os gregos, que acabam por se recolher ao baluarte ao final do dia. Os troianos acampam por perto, ameaçadores.

Durante a noite Agamémnom se desespera, percebendo que havia sido enganado por Zeus. Porém Diomedes garante que os aqueus tem fibra e ficarão para lutar. Agamémnom acaba por ouvir os conselhos de Nestor, e envia a Aquiles uma embaixada composta por Odisseu, Ajax, dois arautos e o veterano Fenix presidindo, para oferecer presentes e pedir ao herói que retorne à batalha. Aquiles, porém, ainda irado, não cede.

Agamémnom então envia Odisseu e Diomedes ao acampamento troiano numa missão de espionagem. Heitor, por sua vez, envia Dolon espionar acampamento aqueu. Dólon é capturado por Odisseu e Diomedes, que extraem informações e o matam. A seguir invadem o acampamento troiano e massacram o rei Reso e doze guerreiros que dormiam, se retirando de volta para o lado aqueu, onde são recebidos com festa.

Durante o dia o combate retoma, e os troianos novamente são superiores, empurrados por Zeus. Heitor manda uma grande pedra de encontro a um dos portões e invade o baluarte grego, expulsando-os e empurrando-os até as naus, de onde não haveria mais para onde recuar a não ser para o oceano. Há amargo combate, com os aqueus recebendo apoio agora de Poséidon enquanto Zeus favorece os troianos, com heróis realizando grandes feitos de ambos os lados.

Hera, então, consegue convencer Hipnos a adormecer Zeus. Os gregos, acuados terrivelmente, se aproveitam desse momento para recuperar alguma vantagem, e Ajax fere a Heitor. Porém Zeus acorda e, vendo os troianos dispersos e a momentânea vitória grega, reconhece a obra de Hera e a repreende. Hera diz que Poséidon é o único culpado, e Zeus a manda falar com Apolo e Íris para que estes instiguem os troianos novamente à luta. Então Zeus impede Poséidon de continuar interferindo, e os troianos retomam a vantagem. Os maiores heróis aqueus estão feridos.

Pátroclo, vendo o desastre dos aqueus, vai implorar a Aquiles que o deixe comandar os Mirmidões e se juntar à batalha. Aquiles lhe empresta as armas e consente que lidere os Mirmidões, mas recomenda que apenas expulse os troianos da frente das naus, e não os persiga. Pátroclo então sai com as armas (incluindo a armadura) de Aquiles e combate os troianos junto às naus. Ao ver fugindo os troianos, Pátroclo desobedece a recomendação de Aquiles e os persegue até junto da cidade. Lá, Heitor o confronta em duelo e acaba por matá-lo.

Há uma disputa pelas armas de Aquiles, e Heitor as ganha, porém Ajax fica com o corpo de Pátroclo. Os troianos então repelem os gregos, que fogem, acossados. Aquiles, ao saber da morte do companheiro, fica terrivelmente abalado, e relata o acontecido a Tétis. Sua mãe promete novas armas para o dia seguinte e vai ao Olimpo encomendá-las a Hefestos. Enquanto isso o Aquiles vai de encontro aos troianos que perseguem os aqueus e os detém com seus gritos, permitindo que os gregos cheguem a salvo com o cadáver. A noite interrompe o combate.

Na manhã seguinte Aquiles, de posse das novas armas e reconciliado com Agamémnom, que lhe restituíra Briseida, acossa ferozmente os troianos numa batalha em que Zeus permite que tomem parte todos os deuses. Trucidando diversos heróis, Aquiles termina por empurrar o combate até os portões de Tróia. Lá Heitor, aterrorizado, tenta fugir de Aquiles, que o persegue ao redor da cidade. Por fim Heitor é enganado por Atena, que o convence a se deter e enfrentar o maior herói aqueu. Ele pede a Aquiles que seja feito um trato, com o vencedor respeitando o cadáver do vencido, permitindo seu enterro digno e funerais adequados. Aquiles, enlouquecido de raiva, grita que não há pacto possível entre presa e predador. O terrível duelo acontece e Aquiles fere mortalmente Heitor na garganta, única parte desprotegida pela armadura. Morrendo diante de seus entes queridos, que assistiam de dentro das muralhas, Heitor volta a implorar a Aquiles que permita que seu corpo seja devolvido a Tróia para ser devidamente velado. Aquiles, implacável, nega e diz que o corpo de Heitor será pasto de abutres enquanto o de Pátroclo será honrado.

Aquiles amarra o corpo de Heitor pelos pés à sua biga e o arrasta diante da família e depois o traz até o acampamento grego. São feitos os jogos funerais de Pátroclo. Durante a noite, o idoso Príamo vem escondido ao acampamento grego pedir a Aquiles pelo corpo do filho. O seu apelo é tão comovente que Aquiles cede, chorando, com a ira arrefecida. Aquiles promete trégua pelo tempo necessário para o adequado funeral de Heitor. Príamo leva o cadáver de seu filho de volta para a cidade, onde são prestadas as honras fúnebres ao príncipe e maior herói de Tróia.

Resumo dos Cantos

• Canto I: É o décimo ano da guerra de Tróia. Aquiles e Agamémnom se desentendem devido a disputa sobre uma jovem cativa

• Canto II: Odisseu impede uma revolta e os gregos se preparam para um ataque a Tróia.

• Canto III: Páris desafia Menelau para um duelo, propondo decidir o destino da guerra. Menelau vence, mas Páris sobrevive, salvo por Afrodite.

• Canto IV: O pacto é quebrado pelos troianos e a guerra recomeça.

• Canto V: Diomedes realiza grandes prodígios, ferindo Afrodite e Ares.

• Canto VI: Heitor retorna à Tróia para pedir que se tente apaziguar Afrodite. Encontra-se com esposa e filho e retorna à batalha junto de seu irmão Páris.

• Canto VII: Heitor duela com Ajax. A luta empata, interrompida pela noite.

• Canto VIII: Os deuses se retiram da batalha.

• Canto IX: Agamémnom tenta se reconciliar com Aquiles, mas este recusa.

• Canto X: Diomedes e Odisseu saem em missão de espionagem e atacam o acampamento troiano.

• Canto XI: Páris fere Diomedes, e Pátroclo fica sabendo da desastrosa situação grega.

• Canto XII: Retirada grega até as naus.

• Canto XIII: Poséidon se apieda dos gregos e os motiva.

• Canto XIV: Hera adormece a Zeus, permitindo a reação grega.

• Canto XV: Zeus acorda e impede que Poséidon continue interferindo. Os troianos retomam a vantagem no combate.

• Canto XVI: Pátroclo pede a armadura a Aquiles e permissão para entrar na luta. Aquiles concede, porém Pátroclo é morto por Heitor.

• Canto XVII: Há uma disputa pelo corpo e armadura de Pátroclo. Heitor fica com a armadura e Ajax com o corpo.

• Canto XVIII: Aquiles fica sabendo da morte de Pátroclo, e sua mãe lhe providencia uma nova armadura.

• Canto XIX: Aquiles, de armadura nova e reconciliado com Agamémnom, se junta à guerra.

• Canto XX: Batalha furiosa, da qual participam livremente os deuses.

• Canto XXI: Aquiles chega aos portões de Tróia

• Canto XXII: Aquiles duela com Heitor e o mata. A seguir, desonra seu cadáver, arrastando-o ao acampamento grego.

• Canto XXIII: Pátroclo é velado adequadamente

• Canto XXIV: Príamo pede o cadáver do filho e Aquiles, comovido, cede. Heitor é devidamente velado em Tróia.

Traduções

Existem muitas traduções para a Ilíada em português, tanto em verso como adaptações em prosa. A qualidade e fidelidade das traduções variam bastante, mas destacam-se três, todas em verso. A mais antiga das três é a de Odorico Mendes, feita no século XIX (1874), que possui a peculiaridade de trocar os nomes dos deuses gregos pelos seus arquétipos equivalentes latinos. Ou seja, em vez de Zeus, Júpiter, de Poséidon, Netuno, etc. A outra tradução é a de Carlos Alberto Nunes, feita em 1962. Por fim, há a tradução de Haroldo de Campos, em uma edição bilíngüe em dois volumes de 2002 (editora Arx), em versos que buscam resgatar a sonoridade do original grego, inclusive com diversos neologismos. Todas as três são consideradas de grande qualidade, e tem características próprias.

Temas na Ilíada

Corpo de Heitor sendo levado de volta à Tróia – Alto relevo romano em mármore, detalhe de um sarcófago

Embora a Ilíada narre uma série de acontecimentos da guerra de Tróia e se refira a uma série de outros, seu tema principal é o ciclo da ira de Aquiles, da sua causa ao seu arrefecimento. Isto fica claro logo na primeira linha do poema. A palavra grega mēnin, ira, é a primeira do poema, cuja famosa primeira linha é “Menin aeide, Thea, Peleiadeo Aquileos“. Em português seria “Ira canta, Deusa, Peléio Aquiles” ou, adaptando, “Cante, Deusa, a ira do filho de Peleu, Aquiles”. Através da consumação dessa ira, é tratada a humanização do herói e semideus Aquiles, sempre conflitado por sua dupla natureza, filho de deusa e homem, portanto mortal.

A questão da escolha entre valores materiais, como a segurança e a vida longa e valores morais, mais elevados, como a glória e o reconhecimento eterno é tratada na escolha com que Aquiles se defronta: lutar e morrer jovem, e ser lembrado para sempre, ou permanecer seguro e ser esquecido.

A soberba de Aquiles contrasta grandemente com a sobriedade de Heitor, também grande herói, que não busca a glória como Aquiles, mas luta pela segurança de sua família e de sua cidade, e a preservação de suas raízes troianas.

A guerra e suas conseqüências também é tema central na Ilíada, sendo ricamente retratada.

A condição humana é magistralmente trabalhada por Homero, mostrando os dilemas mortais, as interferências de instâncias superiores e suas conseqüências, personificadas nos deuses que tomam partido.

Amizade, honra e muitos outros temas abstratos também fazem parte da obra, compondo um belo painel da alma humana o que é, sem dúvida, uma das qualidades que tem determinado a longieviedade da narrativa homérica na cultura universal.

Este texto, desenvolvido por Daniel Duclós, estudante da Letras-USP e colaborador do Consciência.org, foi também publicado na Wikipédia - PT, no verbete Ilíada

Fonte: http://www.consciencia.org/iliadadaniduc.shtml

Ilíada de Homero

Tradução de Odorico Mendes

Fonte: Clássicos Jackson

Argumento do Livro I da Ilíada

Exposição do assunto. — Crises, sacerdote de Apolo, vem ao campo

dos gregos para resgatar sua filha. — Repelido e ultrajado por

Avamémnon, invoca a protecção de Apolo. — A peste, como um castigo

ilivino, lavra pelo exército grego e mata muitos de seus heróis. —

Aquiles convoca a reunião dos chefes, promete sua protecção ao

adivinho Calcas, e lhe pergunta a causa da cólera de Apolo. — O

adivinho a revela e indica como único meio de afastar o flagelo a

instituição de Criseida. — Cólera de Agamémnon contra Calcas: suas

ameaças contra Aquiles. — Este lança mão da espada, Minerva lhe

aconselha, e dócil à voz da deusa limita-se a responder apenas com

insulto o recebido ultraje. — Agamémnon forçado a restituir Criseida

n seu pai, toma de Aquiles a cativa Briseida. — Aquiles, indignado,

não quer mais combater pelos gregos; invoca sua mãe Tétis, que o

consola e lhe promete vingança. — Volta de Criseida à sua pátria;

sacrifício em honra de Apolo. — Entrevista de Tétis e de Júpiter con-

sentindo em dar a vitória aos troianos. — Queixas de Juno e ameaças

de Júpiter em presença dos habitantes do Olimpo. — Graças à inter-

venção de Vulcano, restabelece-se a paz na assembleia dos imortais.

Canto I

Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles

A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,

Verdes no Orço lançou mil fortes almas,

Corpos de heróis a cães e abutres pasto:

Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem

O de homens chefe e o Mírmidon divino.

Nume há que os malquistasse? o que o Supremo

leve em Latona. Infenso um letal morbo

No campo ateia; o povo perecia,

Só porque o rei desacatara a Crises.

Com ricos dons remir viera a filha

Aos alados baixéis, nas mãos o ceptro

E a do certeiro Apolo ínfula sacra.

Ora e aos irmãos potentes mais se humilha:

"Atridas, vós Aqueus de fina greva,

Raso o muro Priâmeo, assim regresso

Vos dêem feliz do Olimpo os moradores!

Peço a minha Criseida, eis seu resgate;

Reverentes à prole do Tonante,

Ao Longe-vibrador, soltai-me a filha".

Que, aceito o preço esplêndido, se acate

O sacerdote murmuraram todos;

Mas desprouve a Agamémnon, que o doesta

E expele duro: "Em cerco às naus bojudas

Não me apareças mais, quer ouses, velho,

Deter-te ou retornar; nem áureo ceptro,

Nem ínfula do deus quiçá te valha.

Nunca a libertarei, té que envelheça

Fora da pátria, em meu palácio de Argos

A urdir-me teias e a compor meu leito.

Sai, não me irrites, se te queres salvo."

Taciturno o ancião treme e obedece.

Busca as do mar fluctissonantes praias.

Ao que pariu pulcrícoma Latona

Afastando-se impreca: "Arcitenente,

Ouve, Esminteu, que Ténedos enfreias,

Crisa proteges e a divina Cila,

Se de festões colguei teu santuário,

Se de cabras e touros coxas pingues

Te hei queimado, compraze-me os desejos,

A tiros teus meu choro os Dânaos paguem."

Febo, a tais preces, arco e aljava cruza,

Do vértice do céu baixa iracundo;

Vem semelhante à noite, e a cada passo

Tinem-lhe ao ombro as frechas. Ante a frota

Suspenso, a farpa do carcás descaixa,

Terrível o arco argênteo estala e zune:

Moles primeiramente a cães e a mulos,

Depois com vira acerba ataca os homens,

De cadáveres sempre a arder fogueiras.

Al tropas dias nove asseteadas,

Ao décimo as convida e ajunta Aquiles;

Inspiração da bracinívea Juno,

Que seus Dânaos morrer cuidosa via.

Ele, em pinha o congresso, velocípede

Si alça e diz: "A escaparmos, julgo, Atrida,

Retrocedermos errabundos cabe:

Peite os nossos consome e os ceifa a guerra.

Eia, adivinho, arúspice, ou de sonhos

(Jove os envia) conjector se inquira,

Qe explique a ofensa do agastado Febo:

Sc a votos e hecatombes lhe faltámos;

Se, para desarmar-se, olor de assados

Cordeiros nos reclama e nédias cabras."

A seu lugar tornou. De augures mestre,

No passado e presente e porvir sábio,

Surgiu Calcas Testórides, que a Tróia

Por influxos de Apolo as naus guiara,

E concionando exordiou prudente:

"Mandas-me, ó caro a Júpiter, o agravo

Do grã frecheiro expor. Aqui prometas

Com braço e voz cobrir-me: o fel eu temo

Do amplo-reinante que domina os Graios;

E ao fraco se um monarca ódio concebe,

Cose-o e concentra, enquanto o não sacia.

Tu me assegura." — "Afouto, brada Aquiles,

Vaticina. Por Febo, a Jove grato,

A quem rogas e oráculos te ensina,

Nenhum, desfrute eu vivo o térreo aspecto,

Nenhum violentas mãos te porá, Calcas;

Nem que seja Agamémnon, que entre Aquivos

De mais prestante e augusto se ufaneia."

Anima-se o bom velho: "Sacrifícios

Nem votos pede Apolo; em nós o ultraje

Punindo vai do Atrida, que ao ministro

O livramento rejeitou da filha;

Nem grave a dextra poupará castigos,

Se não reverte a jovem de olhos pretos,

Sem resgate ou presente, ao pai querido,

Remetendo-se a Crisa uma hecatombe.

Com isto por ventura o deus se aplaque."

O áugur mal se abancava, o rei suberbo,

Senhor pujante, merencório ergueu-se:

Raiva as entranhas lhe intumesce e afuma,

Cintila a vista em brasa; esguelha a Calcas

Tétrico senho: "Desastroso vate,

Nunca essa boca aprouve-me: o teu ponto

Ê pregoar desditas; nem palavra

Nem obra tens que preste. Agora os Dânaos,

Pena-os Febo em vingança da retida

Criseida em quem me inflamo, a quem pospunha

Clitemnestra gentil que esposei virgem,

Que não lhe cede em garbo, engenho e prendas.

Pois mais convém, liberta a restituo;

Sadio o anseio, não padeça o povo.

Mas preparai-me um prémio; eu só dos Gregos

Dele excluído ser não me é decente;

O meu, testemunhais, me foi roubado."

Controverte o Peleio: "Vanglorioso

Avidíssimo Atrida, que outra paga

Exiges dos magnânimos Aquivos?

Por dividir ignoro onde haja espólio;

Partiu-se o das cidades saqueadas;

Hoje um novo sorteio é repugnante.

Ao deus concede-a; recompensa triple

E quádrupla terás, quando o Satúrnio

Derrocar nos outorgue a excelsa Tróia."

Retorque o rei: "Se és bravo, ó divo Aquiles,

Com dolo e subterfúgios não me enganes;

Possuis tua cativa, eu perco a minha;

E impões que de perdê-la me contente?

Meu peito satisfaçam de igual prenda

Os liberais Aqueus; senão, teu prémio,

De Ulisses ou de Ajax, trarei comigo:

Amargará quem for. Sobrestejamos

Nisto por ora. Ao pélago deitemos

Negra nau bem remada, que transporte

A hecatombe e Criseida esbelta e linda.

Um dos cabos, Ajax, o egrégio Ulisses,

ídomeneu comande-a, ou tu Pelídes,

Tremendíssimo herói, para que Apolo

Nos tentes granjear com sacrifícios."

"Ah! como, o vulto fecha e estronda Aquiles,

Vulpina alma sem pejo, a teus acenos

Há quem marche a conflitos e emboscadas?

Não vim bater os valorosos Teucros

Por queixa pessoal; corcéis nem reses

Me furtaram, nem agros destruíram

Da altriz guerreira Ftia; entre nós muita

Serra medeia opaca e o mar sonoro.

Viemos, cão protervo, para em Tróia

A Menelau e a ti lavar a nódoa.

Alardeias, ingrato, e nos desprezas;

Audaz cominas arrancar-me a escrava,

A dádiva de Aqueus por tantas lidas.

Caia llion famosa: embora o peso

Da guerra em mim carregue, o mais opimo

Quinhão terás; com pouco eu volte a bordo

Sem boquejar, de choques fatigado.

A Ftia me recolho e os meus navios,

Já que aviltas a mão que de tesouros

A fome te fartava: eu te abandono."

"Foge, Agamémnon replicou-lhe, foge,

Se é teu prazer; que fiques não te imploro:

E formam-me outros, e em Júpiter confio.

Dos reis alunos dele és quem detesto;

Só respiras discórdias, rixas, pugnas.

Tens valor? agradece-lho. Os navios

Recolhe e os teus; nos Mírmidões impera:

Não te demoro; esse rancor desdenho.

Priva-me de Criseida Febo Apolo:

Em nau minha esquipada vou mandá-la.

À tenda hei-de ir-te mesmo, eu to previno,

Tomar-te a elegantíssima Briseida;

Sentirás em poder como te excedo,

E outrem se me antepor e ombrear trema."

Chameja o herói, no hirsuto peito volve

Se de ante o fémur desbainhe o estoque

E por entre os Aqueus lho embeba todo,

Ou se o furor no coração reprima.

Já meia espada a cogitar sacava:

Eis da alva Juno, que os escuda e preza,

Por ordem Palas desce, e aos mais invisa,

Atrás o aferra pela flava coma.

Volta-se ele espantado e a reconhece

Pelo medonho olhar, e sem demora:

"A que vens ó do Egífero progénie?

A assistir aos convícios de Agamémnon?

Pois to declaro, e conto já fazê-lo,

Tem de acabar a vida esse orgulhoso."

E a deia olhicerúlea: "Vim, de acordo

Com Juno albinitente, amiga de ambos,

Comedir-te e amansar. Anda, em palavras

Tu desabafa, a lâmina embainha.

Por esta injúria, to predigo certo,

Inda haverás em triplo insignes prémios.

Sê-nos pois dócil, a paixão modera."

"Cumpre, o fogoso torna-lhe, é cordura

Mesmo irado curvar-me a tais preceitos:

Quem se submete, os deuses mais o escutam."

Logo a pesada mão no argênteo punho

Conteve, encasa e esconde o gládio horrendo.

Ela a Júpiter se ala e às mais deidades.

Não deposto o furor, contra Agamémnon:

"Ébrio, acérrimo Aquiles vocifera,

Cara de perro e coração de cervo,

Nunca te armas e à liça te abalanças,

Nunca às ciladas os homens acompanhas:

Isso te é morte. Em vasto acampamento,

Sim, mais vale esbulhar os que te arrostam:

Cobardes reges, vorador do povo;

Senão, tanta insolência aqui findara.

Por este ceptro juro, que estroncado

Jamais rebentará, pois na montanha

Folhas e casca cerceou-lhe o gume;

Por este, que os Grajúgenas arvoram

Do justo guarda e das leis divinas,

Juro, Atrida, é solene o juramento,

Suspirarão sem falta por Aquiles;

Nem lhes serás de auxílio, quando em barda

Esse Heitor homicida os vá segando.

Então de raiva e nojo hás-de comer-te,

Porque o maior dos Gregos rebaixaste."

Nisto, arrojando o ceptro auricravado

Sentou-se. O Atrida em cólera abafava.

Nestor Pílio intervém, de cuja língua

Doce eloquência mais que o mel fluía.

Dos falantes que, nados na alma Pilos,

Criaram-se com ele, idades duas

Decorridas, reinava na terceira.

Discreto e afável, o discurso tece:

"Numes eternos, oh! que luto à Grécia!

Oh! que júbilo a Príamo e seus filhos!

Folgue llio à nova de que assim litigam

Os de mor pulso e tino. Obedecei-me,

Sou velho, ó moços. Tido em boa conta

Com melhores que vós me dava outrora.

\Varoes vi nunca, nem verei, qual Drias

Das gentes regedor, Ceneu e Exádio,

Um Pirítoo, um divo Polifemo,

Teseu Egides a imortais parelho.

Outros como estes não nutria a terra:

Feros pugnaram trucidando a feros

Montícolas Centauros. Lá de Pilos,

Da Ápia eu vinha rogado; conversava-os,

Quanto era em mim nas lutas me exercia.

Ninguém dos vivos de hoje os contrastara;

Atendiam contudo os meus conselhos:

Atendê-los vos praza. Ao mais estrénuo

Tu não tomes dos nossos a só paga;

Nem de ao rei contravir, Pelides, cures;

Dos eleitos que Júpiter estima,

Ceptrígero nenhum se lhe equipara:

Mãe deusa te gerou, valor te sobra;

Tem ele mais poder, que impera em muitos.

Eu to suplico, Atrida, a fúria amaina,

Sê brando para quem nesta árdua empresa

É baluarte e escudo aos Gregos todos."

E Agamémnon: "Com tento nos falaste,

Recto ancião. Primar quer sempre esse homem,

Poderio se arroga, e eu não lho sofro.

Se os imortais invicto o constituíram,

Pcrmitcm-lhe por isso os impropérios?"

"Fraco eu seria e vil, o atalha Aquiles,

Sc inda me sujeitasse: os mais o aturem;

Cesse em mim teu domínio, eu to recuso.

Digo, e na mente o grava: ao retomares

Meu galardão, contigo nem com outrem

Pendência travarei; mas não me toques

Al do que encerro em leve bojo escuro.

Ousa-o: que saberão como o defendo,

Como em teu sangue impuro ensopo a lança."

Finda a rixa, o congresso Aqueu dissolvem.

O herói para seu bordo retirou-se,

A escolta e o seu Menécio. Ao mar o Atrida

Baixel deita, e remeiros vinte elege;

Conduz no embarque a nítida Criseida,

Mais a hecatombe: sob o cauto Ulisses

Fendem rápido as húmidas campinas,

Com lustrações o exército Agamémnon

Expurga e n’água a lavadura atiram;

Cabras e touros cento a Febo ao longo

Do inesgotável pego sacrificam:

Monta ao céu pingue cheiro envolto em fumo.

Ali mesmo efeitua o chefe Argivo

Sua ameaça: dois arautos chama,

Taltíbio e Euríbate, expeditos servos:

"Ide ao Pelides e agarrai-me a escrava;

Aliás, mais agro transe, à força aberta

A formosa Briseida eu vou tirar-lha."

E com ríspidas ordens os despede.

O infrugífero mar cercando invitos,

Junto ao real e à capitânia quedo,

Entre os seus Mírmidões na praia o acharam:

Por certo não gostou de os ver Aquiles.

De assombro estacam, nem tugir se atrevem

Ante o herói formidável, que o percebe:

"Salve, núncios de Jove e dos guerreiros;

Sos, não vos culpo, arautos. Agamémnon

Vo-lo ordenou. Vai tu, celeste aluno,

Vai por ela, Patroclo, e a moça levem.

Aos mortais, ao rei sevo, às divindades,

:; mo atesteis, se for mister meu braço

A desviar dos outros a vergonha. . .

Que furor cego! alheio do presente,

O porvir não prevê, nem como os Dânaos

Das naus sem risco em derredor pelejem."

Da tenda, à voz do amigo, traz Patroclo

E entrega-lhes Briseida fresca e bela,

Que os seguiu pesarosa à esquadra Argiva.

Só, carpindo-se, Aquiles na espumante

Beira ficou-se; o ponto azul esguarda,

As palmas tende e à boa mãe recorre:

"De curta vida, ó Tétis, me pariste;

Sequer me engrandecesse o Altipotente;

Mas ele não me outorga a menor glória.

Em meu despeito o soberano Atrida

Arrebatou-me o prémio e dele goza."

Ao pé do anoso pai, lá no áqueo fundo

Sentiu-lhe o pranto a veneranda ninfa:

Da salsa espuma, como névoa, surde;

Conchegada ao Pelides lamentoso,

Com mão fagueira consolando o anima:

"Choras? que ânsia te aflige? Nada encubras,

Comunicame, filho, as penas tuas."

Do íntimo o celerípede suspira:

"Sabes; que vai dizer-to? A sacra Tebas

De Eetion depredada, o espólio todo

Arrecadou-se, e em regra o dividimos :

Teve o Atrida a pulquérrima Criseida.

Remir a filha com riqueza imensa

Do Longe-vibrador veio o ministro

Às lestes naus de cobre encoiraçadas;

Nas mãos facha Apolínea e o ceptro de ouro,

Roga e aos dois potentados mais se abate:

Que, em reverência ao cargo, se receba

O esplêndido resgate, afio aprovam,

Menos o Atrida, que o repulsa c afronta.

Parte o velho indignado; e o deus que o ama

Dele a instâncias, vibrou feral contágio,

De que a gente em cardumes fenecia,

Pestíferas as setas rechinando

Por todo o exército. Eminente vate

O oráculo solveu-nos; c eu primeiro,

A apaziguar o nume exorto os sócios.

Furente ergue-se o rei, minaz fulmina,

E não debalde; que olhi-espertos gregos

Em ágil nau Criseida reconduzem

Com pios dons, e arautos mesmo agora

Do pavilhão transferem-me a donzela

Que os Dânaos me doaram. Tu, que o podes,

Socorre o filho, ao grã Tonante ascende;

Se o já serviste com palavras e obras,

Hoje o depreca. A mim, no pátrio alvergu«,

De única blasonavas que entre os deuses

Preservaste o nubícogo Satúrnio

Do feio opróbrio, quando, à frente a esposa

E Minerva e Neptuno, o encadearam:

Mas tu, madre, lhe acorres e o desprendes,

Convocas em auxílio o Centimano,

Que é nos céus Briareu, na terra Egéon.

Mais robusto que o pai, da honra altivo,

De Jove a par se teve, e de assustados

Os imortais do empenho desistiram.

Recorda-lhe isto, abraça-Ihe os joelhos:

Que ajudar queira os Troas; que os Aquivos,

Té às popas e ao mar cerrados, paguem

Por seu tirano e a maldizê-lo expirem.

O amplo-dominador confesse a culpa

De insultar o fortíssimo dos gregos."

E em lágrimas a deia: "Ai! filho, como

Te amamentei gerado em hora infausta?

Oh! se de mágoa ileso a bordo fosses!

Urge-te a Parca, e mais que todos penas:

Malfadado nasceste em régios paços.

Em paz, nas prestes naus, teu ódio ceves;

Que hei-de ao nevoso Olimpo ir ver se dobro

Quem se deleita com trovões e raios.

Ele e sua corte, às abas do Oceano,

De inocentes Etíopes desd’ontem

A mesa logram. No dozeno dia,

Ao voltar à mansão de aénea base,

Revolvida a seus pés tocá-lo espero."

Nisto, sumiu-se-lhe e o deixou raivando

De o desfalcarem da mulher garbosa.

De Crisa em funda barra entrava Ulisses.

Ferram-se as velas, no atro bojo as metem;

Enxárcias afrouxando, o mastro arreiam;

A remo aportam, a âncora seguram,

E atadas as rajeiras, desembarcam;

Pós a hecatombe do arci-argênteo Febo,

Da sulcadora nau saiu Criseida.

No altar o sábio Ulisses a apresenta,

Vira-se ao pai querido: "Aqui mandou-me,

Crises, o rei dos reis trazer-te a virgem

E estas cem reses com que o deus mitigues

Que em dores nos soçobra." Alvoroçado

O velho ao peito ansioso aperta a filha.

A perfeita hecatombe então colocam

Em torno da ara; e, os dedos já lavados,

Pegam do salso bolo. O sacerdote

Orando eleva as palmas: "Se a meus rogos,

De Ténedos senhor, ó tu que amparas

Crisa e a divina Cila, em desagravo

O campo Argeu feriste, hoje me escuta,

Remove a peste que devora os Dânaos."

Febo o escutou. Completa a rogativa,

Esparso o farro, à vítima o pescoço

Vergam atrás, e degolada a esfolam;

Cérceas as coxas, no redenho envoltas,

Cobrem-nas vivas postas. Ao tostá-las

Crises na lenha tinto baço asperge:

Quinquedentado espeto lhe sustinha

Cada servente. Provam-se as fressuras,

Já combustas as coxas, e em tassalhos

A mais carne enroscada assam peritos,

E a obra é feita. Apronta-se o convívio:

Ninguém do seu quinhão queixar-se pôde.

Exausta a sede e a fome, das crateras

Coroadas almo vinho os moços vertem;

Cada qual auspicando os copos liba.

Por captarem favor, o dia inteiro

Jovens Dânaos entoam ledo péan,

E seus cantos o deus regozijavam.

Cedendo o sol à treva, ao pé repousam

Do amarrado navio, e assim que alveja

A aurora dedirrósea, o porto largam.

Erecto o mastro, as pandas brancas velas

A brisa enfuna que o certeiro Apolo

Bafeja, e a ressoar cerúlea vaga

Do buço em derredor, cortava a quilha

O páramo salobre. No abordarem

O arraial dos Aqueus, varado em seco

Sobre longos roihões o bruno casco,

Por tendas e outras naus se repartiram.

Sempre enfadado nos baixéis, o ardente

Generoso Pelides na assembleia

De heróis não comparece ou nas batalhas;

Do ócio porém seu coração ralado,

Almeja o alarma e pela guerra brame.

Ao duodécimo dia, à casa etérea,

Em testa Jove, os numes se encaminham.

Dos mares Tétis, sem que olvide o filho,

Surgindo matutina, ali se alteia;

Semoto encontra o providente Padre

No fastígio do Olimpo cumioso;

Pára, da sestra prende-lhe os joelhos,

Da dextra o mento afaga, e assim lhe implora:

"Se entre imortais, senhor, te fui profícua

Por dito e acção, preenche-me este voto:

Orna a meu filho a vida, já que é breve;

Que o rei possante o assuberbou de insultos

E retém-íhe o só prémio. Glorifica-o,

Ó pai celeste; aos Frígios dá vitória,

Té que de honras os Dânaos o acumulem."

O anuviador calou-se, e ela mais insta:

"Pois que receias? ou concede ou nega;

Que a deusa ínfima sou prove-se agora."

Do imo geme o Tonante: "É mau que incites

A com seus ralhos molestar-me Juno,

One, assídua em me aturdir perante os numes,

Desses Troianos parcial me acusa.

Vai-te, ela não te enxergue. A mim o tomo:

Do certíssimo aceno entre as deidades,

Selo à minha promessa irrevogável."

Então franze as cerúleas sobrancelhas,

Da cabeça imortal sacode a coma,

E estremece abalado o imenso Olimpo.

Obtido o fim, do éter puro Tétis

Pula ao mar, e o Satúrnio à régia passa.

Nenhum dos deuses o esperou sentado;

Vão respeitosos cortejá-lo todos.

Ele entronou-se; e Juno, que aventara

Da Nereida argentípede o segredo,

Assaltando o invectiva: "Quem, doloso,

Fora de mim se conluiou contigo ?

Sempre agradam-te ajustes clandestinos;

Nunca um só pensamento me descobres."

E o rei supremo: "Em penetrar não cuides

Arcanos meus; esposa embora sejas,

Penosos te serão. Nem deus nem homem

Quanto ouvir devas me ouvirá primeiro;

Mas o que a parte no ânimo concebo,

Não mo perguntes, nem mo inquiras, Juno."

A augusta irmã contesta: "Que proferes?

Jamais pergunto nem te inquiro nada;

A teu sabor tranquilo deliberas.

Mas temo te seduza, ó cru Satúrnio,

A branca filha do marinho velho:

Madrugou-te abraçando-te os joelhos;

E suspeito anuíste a que ante a frota

Sucumbam Dânaos por amor de Aquiles."

Redargui o que as nuvens amontoa:

"Ruim maliciosa, eu não te escapo;

No desagrado meu com isso incorres.

Trago pior terás; que lucro esperas?

Se é verdade o que dizes, foi meu gosto.

Não mais, submissa em teu lugar sossega:

Se as mãos te calmo invictas, pouco importa

Que te acudam do pólo os moradores."

A olhitáurea, tremente e silenciosa,

Volve a seu posto, na alma a dor sopeia;

Os demais carregaram-se tristonhos.

Por consolar a bracinívea madre,

Vulcano ínclito fabro assim começa:

"É praga intolerável que aos Supremos

Questões humanas alvoroto excitem;

Se o mal grassa, os festins seu preço perdem,

À mãe discreta aviso a que amacie

Meu pai dilecto; a repreensão de novo

Não nos turbe as delícias do banquete,

Pois, se tal se lhe antoja, o Omnipotente

Destes assentos nos derriba a todos.

Sim, com ternos obséquios o acarinhes;

Plácido ele nos seja." E em tom mais baixo,

Duplicôncava taça, erguido, oferta:

"Paciente, cara mãe, sufoca o anojo;

Estes olhos batida ah! não te vejam.

Meu zelo e meu pesar que prestariam?

Contra o fulminador árduo é lutarmos

No acorrer-te uma vez, do pé travado,

Precipitou-me do limiar divino.

Toda a noite rolei na imensidade;

A Lemnos, posto o Sol, fui ter exânime,

Ei os Síntios ao cair me agasalharam."

Sorrindo, a clara deia o copo aceita.

Pela dextra em redor, seu filho aos numes

Da cratera entornava o doce néctar.

Os beatos celícolas romperam

Numa infinita cachinada, quando

Vulcano a escancear se azafamava.

É já tarde, e regalam-se os convivas

De iguais porções de opíparos manjares.

Lange na lira Apolo, e as Musas cantam

Com suave cadência e melodia.

Dês que a diurna luz desaparece,

Desencostados, cada qual procura

Seu domicílio no esplendente alcáçar,

Do coxo mestre fábrica estupenda.

O fulgurante Olímpio ao toro sobe,

Onde usa o meigo sono acometê-lo;

Dorme-lhe em braços a auritrónia Juno

Fonte: http://www.consciencia.org/iliada_canto1-homero.shtml