FERNANDO PESSOA POR ORLANDI

Classificar Fernando Pessoa apenas como um poeta seria subjugar sua grandeza e limitar sua variedade literária. Nas suas obras, escritas também na prosa e representado por heterônimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares, Ricardo Reis), encontram-se análises livres acerca de texto, intertexto e leitura que, postas em paralelo com a didática de Eni Orlandi, proporcionam um amplo leque de discussões sobre o tema. Fazendo um corte transversal para “Livro do Desassossego”, de Fernando/Bernardo Pessoa/Soares, identificamos alguns resultados desta costura, admitidos por Orlandi quando esta diz que, pra um texto ser um enunciado completo como entidade total, ele se vale da retórica e da poética (não poética no sentido restrito da palavra, mas no sentido de uma libertação, de uma liberdade em nome da arte literária).

Os heterônimos de Pessoa são representados por intertextos de sua biografia, de sua vida real, na qual o exato discernimento entre a diferença de pensamento de autor/personagens caberia a eruditos e estudiosos e talvez não interessaria a Pessoa, na intenção de seus escritos.

Quando Soares diz que “ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da mão que nos conduz. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo.” (1) Orlandi apresenta que, numa versão pessimista da interpretação da noção de sujeito, que coloca que nenhuma leitura é boa, e significa seu domínio completo apenas por parte do autor, esta afirmação pode ser relativizada levando-se em conta o processo de interação que faz parte do discurso, interação esta que é trazida pela leitura (momento crítico no qual os interlocutores se identificam como interlocutores e, ao se constituírem como tais, provocam o processo de significação do texto). Mesmo Pessoa admite a relativização:

“Não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio. Os livros são apresentações aos sonhos, e não precisa de apresentações quem, com a facilidade da vida, entre em conversa com eles. Nunca pude ler um livro com entrega a ele [...] no fim de minutos quem escrevia era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma.” (2)

É visto como possível que, mesmo ao autor escape o domínio de seu discurso, como se não fosse ele a ter escrito mesmo no momento da escrita, numa espécie de alheamento constatado tardiamente: “Outras vezes encontro trechos que me não lembro de ter escrito – o que é pouco para pasmar -, mas que nem me lembro de poder ter escrito – o que me apavora. Certas frases são de outra mentalidade” (3).

Este domínio pode não significar que o autor considere seu texto perfeito, acabado: “Fazer uma obra e reconhecê-la má depois de feita é uma das tragédias da alma. Sobretudo é grande quando se reconhece que essa obra é a melhor que se podia fazer.”(4)

Porém, o trecho abaixo, escrito em outro momento por Pessoa/Soares, parece nascer do anterior, complementando-o e justificando-o, exemplificando a noção assumidamente complexa de intertextualidade de Orlandi, que inclui o fato de existir o que poderia ter-se dito naquelas condições e não o foram:

“Por que escrevo, se não escrevo melhor? Mas que seria de mim se não escrevesse o que consigo escrever, por inferior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspiração, porque tento realizar; não ouso silêncio como quem receia um quarto escuro. Sou como os que prezam a medalha mais que o esforço, e gozam a glória na peliça.

“Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo. Há venenos necessários, e há-os subtilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, papoilas negras achadas ao pé das sepulturas dos propósitos, folhas longas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais da alma.

Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda.” (4)

Não caberia aqui ignorar o aspecto não didático da obra de Pessoa, que se vale da ferramenta da licença poética e liberdade literária para transmutar o seu pensamento em arte, seja na ficção de seus personagens/heterônimos seja no caráter biográfico que sempre norteou suas obras.

REFERÊNCIAS

(1) PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Companhia Das Letras, 2006. P.233

(2) Ibidem, p. 382

(3) Ibidem, p. 222

(4) Ibidem, p. 170

ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed. Campinas, Sp: Pontes, 1996.

Edvaldo Souza
Enviado por Edvaldo Souza em 05/08/2009
Código do texto: T1738493
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