O ASPECTO SONORO

A obra literária molda-se sobre uma série de sons dos quais emerge o significado. Em algumas obras o estrato sonoro é mais apagado; em outras, mesmo as de prosa, ele atrai a atenção e constitui a parte integrante do efeito estético. É necessário distinguir entre execução e esquema sonoro. O estudo do ritmo e da métrica não pode fundar-se nas declamações individuais; também não é o caso de se analisar o som separado do significado. Sozinho, o som pouco ou nenhum efeito estético produz.. O estrato sonoro é variado e importante, quando concebido como parte integrante do poema como um todo. O som tem um elemento inerente e um elemento relacional. Inerente é o aspecto da individualidade de um som, digamos “a”, que não pode ser mais nem menos do que ele é. As distinções qualitativas, as inerentes, são a base para os efeitos da “musicalidade” ou “eufonia”. As distinções relacionais fornecem as bases para o ritmo e o metro: o tom, a duração dos sons, a acentuação, a frequência das recorrências, que são distinções quantitativas. Esta distinção isola um grupo de elementos aos quais os formalistas russos dão o nome de “orquestração”, visando enfatizar que a qualidade sonora é o elemento manipulado pelo escritor, cabendo ainda incluir aqui a noção de “cacofonia”, utilizada por alguns escritores.

Entre os artifícios da orquestração, há necessidade de distinguir entre esquemas sonoros (repetição de qualidades de sons idênticos ou associados), de um lado, e de outro, o uso de sons expressivos e a imitação de sons. Há a distinção possível entre os sons colocados perto uns dos outros, no mesmo verso; entre aqueles que ocorrem no começo de um grupo e no fim de outro;  no fim de um verso e no começo do próximo; no começo dos versos(anáfora) ou em posição final (rima).

A rima é apenas um dos vários exemplos de repetição; fenômenos análogos como aliteração e assonância devem ser parte integrante de seu estudo. Tais efeitos são variáveis de uma língua para outra, visto que cada um tem seu próprio sistema d fonemas. São necessários significados, contexto e “tom” para transformar sons linguísticos em fatos artísticos. A rima tem uma função meramente eufônica numa repetição (ou quase) de sons. A função estética mais importante da rima é a função métrica, ao assinalar a conclusão de um verso e representar o princípio organizador dos padrões de estrofes. Contudo, a rima tem significado e integra-s fundamentalmente a todo o caráter de uma obra poética. Por ela, as palavras são relacionadas por conexões ou por contrastes. Os vários aspectos da função semântica distinguem-se, ao analisarmos se as sílabas que rimam estão no sufixo, no radical da palavra ou em ambos. Podemos saber qual é a relação semântica entre as palavras ligadas pela rima, isto é, se pertencem ao mesmo contexto semântico ou se, ao contrário, surpreendem precisamente pela associação ou justaposição de esferas semânticas completamente divergentes.

Dos esquemas sonoros, em que é importante a repetição de uma qualidade vocálica ou consonântica (aliteração), devemos separar a questão da onomatopéia, que remete ao conceito místico de correspondência entre som e significado, efeito utilizado brilhantemente por alguns autores, mas menosprezado por alguns lingüistas modernos.
Nesse campo, é necessário distinguir três graus: A imitação propriamente dita (cuco); a pintura sonora, que é a reprodução de sons naturais por meio de sons da fala  (frrrrrio), num contexto em que as palavras por si mesmas não sendo onomatopaicas, são integradas numa estrutura sonora;  finalmente, num nível superior, o simbolismo sonoro ou metáfora sonora.  Teríamos como exemplo disso um estudo de Maurice Grammont que classifica: as vogais claras são adequadas a exprimir pequenez, rapidez, élan, graça e ideias semelhantes. As palavras têm, em sua fisionomia um simbolismo sonoro mais penetrante que a onomatopeia.

Para Wellek&Warren (1971) “Não existe dúvida de que as combinações e associações sinestésicas se introduzem em todas as línguas e que estas correspondências têm sido – e com muita razão – exploradas e trabalhadas pelos poetas. (...), mas as associações fundamentais entre vogais palatais (‘e” e “i”) e os objetos delgados, rápidos, claros e brilhantes e – noutro exemplo – entre as vogais velares (“o” e “u”) e os objetos volumosos, lentos,  sombrios e escuros, podem ser provadas por meio de experiências acústicas.” Também as obras de Carl Stumpf e Wolfang Köller mostram que as consoantes podem ser divididas em escuras (labiais e velares) e brilhantes (dentais e palatais). Esse estudo baseia-se em semelhanças entre os espectros de som e de cor.
De um lado existe o problema linguístico geral de som e significado; por outro, o problema a destacar de sua exploração e organização na obra de literatura, este último, inadequadamente estudado.

O ritmo é um fenômeno linguístico geral. Pode ser abordado em relação à periodicidade (metro) ou, de forma mais lata, apoiada em investigações de Sievers. Nestas, entram as configurações não recorrentes dos movimentos, permitindo o conceito de ritmos individuais da fala e uma larga variedade de fenômenos musicais (cantochão e músicas exóticas, por ex.), a cadência individual e toda a prosa. Alguns investigadores vêem  no ritmo da prosa apenas o aspecto distinto da “cadência”, nas orações interrogativas e exclamativas, uma questão de melodia. O ritmo artístico em prosa pode ser descrito como uma organização de ritmos da fala corrente; difere dela por possuir uma maior regularidade na distribuição dos acentos, mas que não deve atingir o isocronismo (regularidade de intervalos de tempo entre os acentos rítmicos). Existe uma escala de gradações para a prosa que vai desde arrítmica até a rítmica, que se aproxima da regularidade do verso. Um exemplo disso é o “verseto” (uma de cada duas sílabas tônicas é acentuada com mais força, levando à semelhança com o verso dipódico).
Para Wellek&Warren (1971), “o valor artístico da prosa rítmica é ainda discutido e discutível. A maioria dos leitores modernos – em conformidade com a preferência a favor da pureza dos gêneros – gostam mais de uma poesia poética e de uma prosa prosaica.”.

A métrica também apresenta diferentes abordagens. Para a métrica gráfica, o metro é simplesmente uma questão de som; existe um esquema métrico, concebido como implícito ou subjacente ao próprio poema. A métrica musical parte da premissa de que o metro na poesia é análogo ao ritmo na música. A métrica acústica, hoje largamente respeitada, baseia-se em investigações objetivas e emprego de métodos científicos, como a utlização do oscilógrafo. Ela define claramente os elementos distintos, constitutivos do metro, mas não é um método completo porque o tempo da linguagem em verso é um tempo de expectativa, que nem sempre corresponde a uma exatidão das medidas.

Tanto a métrica musical quanto a acústica  apresentam a limitação de basear-se exclusivamente no som, elidindo o sentido

Os formalistas russos tentaram lançar fundamentos inovadores para a métrica. Consideram o “pé” inadequado, uma vez que existe poesia sem “pés”. Também o isocronismo tem aplicação limitada e não pode ser medido de forma objetiva. As teorias anteriores, para eles, não alcançam definir a unidade fundamental do ritmo poético. Assim, concebem, numa visão gestáltica, que a unidade fundamental do ritmo  não é  o “pé” e sim o verso, , no qual cada acento tem suas peculiaridades conforme a posição que ocupa no verso, seja 1º, 2º, 3º... Aplicam  métodos estatísticos ao ritmo do poema e à fala e entendem o poema “como um complicado esquema contrapontual entre o metro sobreposto e o ritmo da fala ordinária, sendo o poema uma “violência organizada” exercida sobre a linguagem quotidiana. Distinguem entre esquema (estático e gráfico) e impulso (dinâmico e progressivo).

Embora não seja suficiente para dar conta das questões relativas na diversidade das línguas, essa visão restabeleceu o contato com a linguística e com a semântica. Som e metro fazem parte da totalidade da obra de arte literária.


Após ler: René Wellek e Austin Warren: Teoria da Literatura. Publicações Europa-América. 2ª ed. 1971



A título de curiosidade...

A questão da métrica musical foi especialmente estudada, e aplica-se sobretudo, à língua inglesa. Apresenta um interessante conceito. A cada sílaba é atribuída uma nota musical de altura não designada. A duração da nota é determinada de forma arbitrária que coloca em correspondência uma sílaba longa e uma mínima; uma silaba semi-longa e uma semínima; uma sílaba breve e uma colcheia e assim por diante. Os compassos são contados desde uma sílaba acentuada até a acentuada seguinte e a velocidade da leitura é indicada por meio da escolha entre os compassos 3/4, 3/8  e, mais raramente, 3/2. Mediante esse sistema é possível representar um pentâmetro em uma pauta musical. Segundo essa teoria a distinção entre jambo e troqueu teria que ser completamente reinterpretada, caracterizando-se o jambo apenas por uma anacruse  que se considera extramétrica, ou contada com o verso precedente. (Wellek&Warren pp. 206-7).