OS DEZ CLÁSSICOS DA LITERATURA MUNDIAL--6º LIVRO

Em Busca do Tempo Perdido (1913-27) - Marcel Proust (1871-1922)

Ler os livros de Proust é uma aventura sem precedentes, é como percorrer trilhas desconhecidas e ao mesmo tempo familiares, por paisagens da nossa própria memória. O leitor acompanha as buscas do narrador, sua viagem pelo passado, suas descobertas e revelações, e sente-se maravilhado com a possibilidade de resgatar o próprio tempo perdido, lendo e relendo as páginas passadas sob novos e surpreendentes ângulos.

Na primeira parte deste volume, intitulada ‘combray’, o narrador se apresenta através de uma cena clássica da história da literatura, com certeza uma das mais belas – ao mergulhar um bolinho tradicionalmente conhecido como ‘madeleine’ em uma xícara de chá, recuperando assim o sabor da mesma iguaria tomada nas manhãs dominicais de sua infância, ele resgata a cidade de Combray e com ela seus anos de menino, nas férias pascais, nestas paisagens que agora sobrevivem apenas em suas lembranças. Narrado logo no início do livro, este é um dos episódios principais desta obra. Na fictícia Combray de Proust, dois caminhos ligam a cidadezinha aos campos e sítios que a envolvem – o de Méséglise, mais curto, que passa pelas terras de Swann, e o mais longo, o de Guermantes, vereda fluvial que desemboca no castelo dessa família.

Mais que meras referências espaciais, estas trilhas revelam-se para o menino, que mais tarde torna-se o narrador deste livro, uma opção de vida. Viajar pela senda de Swann é para o protagonista construir sua identidade adotando como modelo a experiência daquele personagem, seus amores, seus ciúmes, suas dores, o contato com a arte. O narrador percorre exaustivamente cada detalhe destes caminhos, revelando ao leitor atento o aprendizado conquistado em cada um deles, a importância de cada uma destas veredas em seu amadurecimento, o quanto elas foram determinantes para o seu futuro, para a formação de seu caráter. O despertar de cada lembrança, o desabrochar da memória do protagonista, esta viagem composta de avanços e recuos no tempo e no espaço, desvendam o encantamento da escrita proustiana, a tessitura de uma narrativa que oferece ao leitor um universo mágico de sensações, à flor do texto. Percebe-se, ao iniciar a leitura desse livro, a gestação da memória e cada uma de suas etapas de desenvolvimento, ao se percorrer, junto ao narrador, todos os quartos em que ele adormeceu ao longo do tempo, até finalmente aterrissar no quarto de Combray. São descrições delicadas e saborosas, como as ‘madeleines’ que lhe trazem a recordação dos dias na casa da Tia Léonie.

Proust revela-se um profundo conhecedor da psicologia humana, e em sua narrativa caminha pelas esferas mais variadas do conhecimento humano, desde teorias estéticas, artísticas e literárias, até as artes do amor, a Música, deliciosas descrições gastronômicas, passando pelo contexto sócio-político da França, que inicia seu despertar sob a Terceira República. As passagens que narram os primeiros contatos do menino com o amor, a arte, a morte, a Natureza – elemento primordial nesta primeira parte do livro -, a Literatura, os ciúmes – da mãe, pois o protagonista mostra-se extremamente edipiano nesta fase de sua vida – e com outros fantasmas e desafios que surgem em seu caminho, são primorosas e perfeitamente editadas, compondo um texto harmonioso e fluido, no qual cada abordagem cede lugar à outra, cada lembrança encadeia-se a outras recordações, sem qualquer solução de continuidade. É assim também com a passagem da primeira para a segunda parte, quando o narrador – no final do capítulo sobre ‘Combray’ – retoma os elos de suas recordações iniciais, retornando ao quarto em que desperta na abertura do livro, e introduz as lembranças de um amor antigo de Swann, este personagem misterioso e intrigante, assíduo freqüentador dos melhores salões de Paris, que fascina – tanto quanto sua filha, Gilberte – o menino que o terá mais tarde como modelo no amor e na arte. No desenrolar da narrativa, o protagonista recua no tempo para narrar, quase sempre na terceira pessoa, ‘um amor de swann’, o segundo bloco deste livro.

Finalmente, na terceira parte deste livro, intitulada ‘nomes de terras: o nome’, o herói retoma a narrativa na primeira pessoa e, da mesma forma como inicia o primeiro capítulo, descrevendo os quartos nos quais adormeceu ao longo de sua vida, ele aqui delineia a importância dos nomes em sua trajetória, os quais conferem às cidades de sua imaginação – Balbec, Veneza, Florença, entre outras -, mas que por outro lado também existem fora do tempo imaginário e do espaço abstrato, aspectos, cores e sonoridades as mais distintas. Estes nomes evocam para o herói terras desconhecidas, imagens confusas às quais ele associa elementos despertados em sua mente pela pronúncia de cada um deles, pela riqueza de sons que inspira sonhos e desejos de viagens. São belíssimas as descrições das paisagens que o herói espera encontrar em cada recanto, a partir do significado extraído dos nomes mais ou menos exóticos que desfilam em suas fantasias. Esta obra, repleta de surpresas, revela uma prosa palpitante de imagens poéticas, que se lê e relê como se saboreia uma iguaria suave e saborosa, que desperta no paladar do leitor os mais finos prazeres. Nem a passagem do tempo gastou as palavras aqui inscritas, definitivamente sagradas pelo autor para se perpetuarem na eternidade. Este clássico da literatura francesa é realmente inspirador, e Marcel Proust é com certeza, ainda hoje, um dos autores mais estudados pela crítica.

Bibliografia

Em Busca do Tempo Perdido – Volume 1 – No caminho de Swann – Marcel Proust – Tradução: MÁRIO QUINTANA - Editora Globo – São Paulo – 558 pp.

Em Busca do Tempo Perdido

Marcel Proust

2001, Companhia das Letras