{"O mais belo triunfo do escritor é fazer pensar os que podem pensar." - Eugène Delacroix (1798-1863, pintor francês)}
Não quero desmerecer a importância das cartas-denúncias e dos textos revoltados que circulam abertas para toda a população desde todos os tempos e nos dias de hoje, agora utilizando-se principalmente da Internet. Muitas mudanças são operadas na estrutura social a partir de tais denúncias cheias de emoção (principalmente quando chegam no monitor dos destinatários certos).
Muitos têm muito a dizer e o dizem muito bem, sem serem necessariamente escritores ou usuários das técnicas redacionais mais refinadas.
Nossa preocupação aqui é apenas com o cuidado que todos que não somos profissionais da Comunicação nem da Literatura devemos ter, para não produzir e divulgar textos eivados de rancores, revoltas e parcialidades, sem concluir, sem fundamentar, sem dar qualquer roupagem científica mínima para corroborar seu arrazoado. Em razão disso, resolvemos discorrer sobre o papel do escritor social na nossa contemporaneidade transicional.
Sei que este texto parecerá excessivamente racionalista e talvez até inumano. Porém, veja nele apenas um norte, um modelo, ainda que impossível de ser seguido literalmente. A ideia é essa mesma: que o texto social seja efetivamente dissociado do texto individual ou emocional, pelo menos em nível de premissa.
O escritor social, mesmo quando sendo um amador, tem responsabilidade social. O que ele escreve espelha suas opiniões, mas também tem compromisso com a formação da opinião do seu leitorado. [Ouso estender uma acepção neológica para a palavra “leitorado”, aqui como sinônimo de “conjunto de leitores”, por entender que sua definição tradicional (relacionada à atividade dos professores que ensinam a língua e a literatura de seu país em universidade estrangeira) está meio fora de uso, concorda?] Ele é um pensador social que, ao invés de usar o microfone e os palanques, dissemina seus produtos pensamentais através da escrita e as divulga principalmente pela internet, que é o canal de comunicação mais democrático já inventado. Ele escreve o que pensa, para influenciar e interferir nas problemáticas sociais, alertando para o que acha que está passando batido perante os olhos coletivos, e eventualmente apontando sugestões solucionadoras.
{“Lembro-me de que certa noite – eu teria uns quatorze anos, quando muito – encarregaram-me de segurar uma lâmpada elétrica à cabeceira da mesa de operações, enquanto um médico fazia os primeiros curativos num pobre-diabo que soldados da Polícia Municipal haviam “carneado”. (...) Apesar do horror e da náusea, continuei firme onde estava, talvez pensando assim: se esse caboclo pode aguentar tudo isso sem gemer, por que não hei de poder ficar segurando esta lâmpada para ajudar o doutor a costurar esses talhos e salvar essa vida? (...)
Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que o escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.” – Érico Veríssimo, em seu livro autobiográfico “Solo de Clarineta”, primeiro volume.}
Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que o escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.” – Érico Veríssimo, em seu livro autobiográfico “Solo de Clarineta”, primeiro volume.}
Os textos sociais têm ligação direta com a Arte Conceitual, em que prevalece muito mais o conteúdo do que a forma e o estilo do autor. Nesse tipo de literatura, o texto deve aparecer muito mais através do escritor, e não o escritor aparecer através do texto.
O escritor social não deve se envolver emocionalmente com o tema suscitado pelo texto. É uma premissa. Deve manter um distanciamento estratégico, evitando emitir opiniões pessoais moralistas, inclusive para não incorrer nos frequentes lapsos freudianos por escrito[!], para não tropeçar em palavras turpiloquentes, nem disseminar textos obsessionais. Deve também evitar fazer aconselhamentos ostensivos, como se fosse o dono da verdade.
O papel do escritor é mediar um diálogo entre o texto e o leitor. Deve cuidar, pois, para não imiscuir no texto suas emoções, revoltas, traumas e idiossincrasias. Daí a importância de colocar o texto de molho após sua primeira redação (quando ele ainda é chamado tecnicamente de “texto bruto”), por mais inspirado que ele tenha sido, para passar posteriormente por várias peneiradas, até o refino e enriquecimentos complementares que bastem para deixá-lo em condições médias de publicação.
A palavra muito melhor é dita quando se lhe edita.
É até saudável dar vazão ao primeiro fluxo espontâneo de consciência, sob o calor da inspiração ou da intuição. Em seguida, contudo, é de bom-tom submeter o resultado a verificações de validade, preenchendo os claros argumentais, retirando os excessos, saneando os inevitáveis ideologemas, recheando as teses, miniteses e microteses com citações, dados, resultados de pesquisas etc, dando, por fim, um tratamento revisional, científico e ornamental.
Muitos escritores inexperientes na arte da paciência têm o impulso de publicar imediatamente tudo que escrevem. Para eles, a seguinte frase de Vitor Hugo: "Escritores, meditem muito e corrijam pouco. Fazei as vossas rasuras no vosso próprio cérebro."
Uma premissa é que ninguém é tão bom quanto si mesmo tempos adiante. O texto perfeito é o que ainda virá.
Entretanto, não podemos incorrer na neurose do perfeccionismo sem fim. O importante minimamente é burilar e dar soluções viáveis aos questionamentos suscitados no texto, para que este fique tecnicamente publicável.
Quem tiver prazo para apresentação do material, tem que gerenciar a feitura e a revisão do texto com a maior precisão técnica possível. Se puder também submeter o escrito a um revisor, tanto melhor, partindo, inclusive, da premissa de que “não existe escritor sem erro”, segundo Rui Barbosa. Um segundo par de olhos vê erros crassos onde o escritor não vê nem cochilo.
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O texto social, via de regra, é minguado de adjetivos e advérbios emocionais, para não se tornar uma simples carta-desabafo à população. Porém, quem os entender eventualmente necessários, que deixe claro o porquê de seu uso.
Tem que haver um ar de isenção, cientificidade, filosoficidade ou neutralidade. Assim, ele tende a se tornar perfeito e efetivamente orientador. A preocupação com a objetividade externa imprime maior seriedade e profissionalismo ao texto.
Por isso a necessidade que o escritor que acabou de montar um texto bruto tem de burilar, trocar palavras e enxugar parágrafos. Essa poda tende a artificializar o texto em relação ao pensamento natural e puro do escritor, em sua gênese, mas tende a manter um diálogo mais universal e coerente com o leitorado. Nesse processo de edição, muitas ideias novas surgem e acabam enriquecendo ou até mutilando o argumento central inicialmente delineado.
A premissa maior é esta: o escritor social escreve não para si, mas escreve um texto que vai manter um diálogo com um público.
O eu-textual é ou seja diferente do eu-autoral.
Muitos autores narrativos usam o recurso de se imiscuir na história como um personagem-narrador. É o chamado eu-narrador. Ele cria ou deixa viver uma espécie de alter ego, através do qual, aí, sim, pode se soltar um pouco mais, dizer certas verdades, sem comprometer a imagem do texto como um ser meio autônomo e tecnicamente dissociado da pessoa emocional do autor.
Pode haver três autores-personagens em um mesmo texto: o autor em si ou eu-autor, o eu-narrador ou eu-poético e o eu-personagem. Em muitos textos há também o eu-digressionador, que interrompe o fluxo normal do texto para fazer esclarecimentos ou divagações. O grau de influência recíproca de uns sobre os outros depende de vários fatores, principalmente do grau de profissionalismo e capacidade de distanciamento e manipulação do eu-autor sobre os demais. A questão são as influências alheias.
Mesmo fazendo parte dos sítios sociológicos e ainda que amparado pelas culturas livresca e filosófica, o escritor social deve se posicionar acima de si mesmo, numa espécie de mirante meio distanciado, de onde possa perceber nuanças críticas no fato ou objeto sub oculis, inclusive se o objeto for ele mesmo como pessoa autoral. Com seu binóculo de lente supertransparente e multifocal, fica mais fácil antever tempestades que se avizinham, ou pode constatar e gritar de vez em quando, se necessário: “Ei! O rei está nu!”, ou então, “Ei! O povo está nu!”.
A escolha dos temas deve ser sempre de interesse geral, chamativo à atenção para problemas que todos se interessam ou se interessariam em ver resolvidos.
A escolha das palavras, inclusive com o auxilio do dicionário, tem que reforçar os enfoques e as contextualizações, buscando a harmonia e o melhor sentido à ideia central esposada.
Uma ideia coletivista é não só disseminar seus pensares, mas ser também um carteiro das ideias alheias. A recorrência a fatos, dados, pesquisas, bibliografias, citações, frases etc muito enriquecem e reforçam o poder de convencimento do que se está a expor. Podem até reduzir o grau de originalidade e ineditismo dos argumentos do autor, mas atingem melhor os sentidos dos leitores que precisam mudar ou reforçar seus próprios pontos de vistas, independentemente de quem o influencie para isso.
Escrever é também reunir, rearranjar e monoblocar informações. Nada de achismos vazios e desfundamentados. Tudo que se propõe convencer tem de ser o mais bem fundamentado possível. Deve-se fazer abertura e encerramento coerente de silogismos argumentais. Busque-se, em princípio, correlacionar premissas universalmente aceitas ou já suficientemente consagradas entre os especialistas, pensadores e representantes de correntes sólidas de saber, ainda que sejam agora questionadas ou contrariadas. O esperável é que qualquer confirmação ou contrariedade a fatos, teses ou posicionamentos anteriores seja sempre sobejamente fundamentada, para não transformar o escrito em mero razoado tautológico ou em denúncia vazia.
O simples pensar ou achar sem maiores respaldos ou fundamentações convincentes é visto, no máximo, como uma hipótese a priori, que vai depender sempre de alguém ou de algum dado ou fato posterior que o corrobore. É melhor que o próprio suscitador da hipótese cuide disso.
"O escritor curto em ideias e fatos será, naturalmente, um autor de ideias curtas, assim como de um sujeito de escasso miolo na cachola, de uma cabeça de coco velado, não se poderá esperar senão breves análises e chochas tolices." - Rui Barbosa
O que o escritor social deve pretender, antes de tudo, é a mudança ou melhoria dos pontos de vista ou a solução dos problemas, para o que ele tenta contribuir através da sua caneta.
Nos tempos atuais, caracterizados pela intertextualidade, o que importa é mais um texto bem montado e bem referenciado, que faça a diferença, do que o grau de originalidade de quem o materializou.
Não estou apologizando as paráfrases e outras formas correntes de apropriação textual, muito menos o plágio temático, mas creio ser inquestionável que um texto preocupado em convencer, ou fazer seus leitores matutarem, deve recorrer a fontes externas que bastem para imprimir mais veracidade à ideia defendida.
Nenhum texto é obra exclusiva do escritor. Quanto mais leve e sensível estiver o escritor no momento da operação textual, tão mais fluente será a aterrissagem (ou “papelagem”) da parte do texto que não é de sua biblioteca raciocinal.
Favor, contudo, não confundir sensível com emocionado. A emoção é um valor do homem. A sensibilidade é um valor do espírito.
Eis uma frase de Fernando Pessoa que coroa esse entendimento: “Ver muito lucidamente prejudica o sentir demasiado. E os gregos viam muito lucidamente, por isso pouco sentiam. De aí a sua perfeita execução da obra de arte.”
O escritor, pois, deve preparar-se para seu labor elevando-se espiritualmente.
Com a palavra, João Cabral de Melo Neto: “escrever é estar no extremo de si mesmo.”
Microfone para Clarice Lispector: “A palavra é a minha quarta dimensão.”
O poeta estadunidense T. S. Elliot pede a palavra e arremata: “Escrever é fugir da emoção.”
Porém, Jorge Amado também chegou a dizer: “o escritor que quiser emocionar tem de escrever emocionado.”
Graciliano Ramos acentuara: “Comovo-me em excesso, por natureza e por ofício. Acho medonho alguém viver sem paixões.”
Epa! Parece que já estamos invertendo tudo, não é mesmo? Calma! Pelo menos no sentido pretendido neste arrazoado, eu continuo grecista. Aqui estamos falando precipuamente de textos sociais. [Emoçao é um hiperônimo histórico, que serve para definir vários sentimentos e sensações humanas. É usada no lugar de sensibilidade, inspiração, consternação, afetividade, comoção etc.]
Muitos escritores comprometem-se apenas com a Arte em si, pelo menos no plano consciente. São os escritores artísticos, que buscam apenas emocionar ou apenas entreter. [É uma arte também muito difícil. É praticamente impossível não se escrever sem fazer propaganda indireta ou merchandising de alguma corrente de pensamento, ainda que inconscientemente, sem estar vinculado a alguma ideologia ou sem manifestar ideologemas a cada página.]
Outros lidadores da palavra escrita conseguem ser artísticos-sociais, e fazem suas denúncias com muita maestria e precisão, valendo-se inclusive dos romances, como Vitor Hugo, Machado de Assis, Érico Veríssimo e Graciliano Ramos. Muitos grandes poetas da nossa história conseguiram emocionar e conscientizar usando sua veia poética, como Castro Alves e Cruz e Souza. Falavam para os corações e para as mentes.
Mas a questão aqui agitada é a “pessoa particular” do autor e seus medos, suas revoltas e seus desequilíbrios emocionais, que não devem macular demais o texto, sob pena deste se tornar muito mais um divã psicológico do que um meio de protesto transformador.
O escritor social tem que calcular bem o que diz. Deve ser um engenhador das palavras e das ideias (ainda que brinque com elas), porque o que ele diz tem caráter de documento e pode funcionar até como uma arma. [Um dos maiores críticos sociais da literatura brasileira foi Machado de Assis, embora indiretamente, tendo usado com muita maestria o recurso retórico da ironia. Desabafou como bem quis nas entrelinhas de seus romances, mas sem ninguém perceber claramente. Um mestre.]
"A verdade é que a pena, na mão de um excelente escritor, resulta por si só numa arma muito mais potente e terrível, e de efeito muito mais prolongado, do que jamais poderia ser qualquer outro cetro ou espada nas mãos de um príncipe." - Vittorio Alfieri (1749-1803, poeta trágico italiano.
[Muitas vezes, contudo, essa arma, quando não disparada para atender aos interesses do povo, costuma reforçar a munição dos dominadores e manipuladores das consciências coletivas.]
Diferentemente dos textos acadêmicos, que têm de se subordinar a um rigorismo técnico e científico, com base na engessante ABNT, o texto social tem como público a sociedade como um todo. É necessário o chamamento à ordem; a denúncia é sempre bem vinda; os questionamentos são uma tônica essencial. Mas também é de bom-tom e dá um certo gosto ao discurso o tempero das figuras de linguagem, do jogo de palavras, das frases de efeito e do humorismo. [É o “escrever com molho”, no dizer de Luis Fernando Veríssimo.] Na dosagem certa entre a coloquialidade (linguagem informal e popularesca) e a adloquialidade (linguagem formal e gramaticalista) tendem a suavizar um pouco a exposição, a minimizar sua eventual sensaboria e a tirar o peso do sermão, sem reduzir o peso da responsabilidade.
O básico é cuidar para que esses recursos acessórios não roubem a cena de todo o conjunto da obra, nem comprometam os pilares-mestres da arquitetura textual, que está fincada na ideia central veiculada. Isso em si é uma arte.
Mesmo nas obras de ficção e de poesia, que demandam uma carga de sensibilidade do escritor e do leitor, é necessária muita inteligência emocional, para não transformar o texto em um escrito escolar ou de amador principiante.
Parafraseando Jorge Amado, podemos asserir, portanto, que o escritor que quiser conscientizar, tem de escrever conscientizado.
Enfim, todo escritor social, que podemos chamar de eu-argumentador, que quer contribuir para a melhoria da sociedade, através da sua caneta, tem de se habilitar para isso em vários níveis, inclusive no apuro da arte do convencimento, que impõe o bom uso do léxico, um certo domínio dos princípios clássicos da retórica, quer nos ataques, nas defesas ou nas respostas argumentativas. Pensar antes, escrever em seguida, corrigir depois e publicar finalmente. Eis o jogo de premissas. Eis o fim.