A Revolução dos Bichos na Fazenda Modelo de Chico Buarque - IV: O que é Literatura Comparada?

“Revoluções produzem uma espécie de eletricidade ideológica, transmitindo idéias e palavras de ordem de protesto através de vastas distâncias.” (Almond, 2004).

O norteador deste trabalho foi, em um primeiro momento, o contexto histórico o qual se deu a produção das obras em questão, por isso foi de extrema necessidade que o estudo sobre a Revolução Russa e sobre a Ditadura Militar no Brasil se fizesse antes da abordagem do que de fato seja Literatura Comparada, bem como a análise comparativa entre as obras.

Em estudos mais recentes, vemos que o método (ou métodos) não antecede à análise, como algo previamente fabricado, mas dela decorre (Carvalhal, 1986). E foi a partir deste pressuposto que após leituras das obras referidas foi entendido que nosso método (ou métodos) de análise dever-se-ia dar após o estudo do contexto histórico.

Em publicação recente no site oficial de Chico Buarque ele é questionado sobre ter lido e ter se inspirado em A Revolução dos Bichos para escrever Fazenda Modelo: novela pecuária, ele responde dizendo que nunca leu tal obra e que mal conhece o autor citado. Ele nega qualquer relação entre as obras.

“Nada vive isolado, todo mundo empresta a todo mundo: este grande esforço de simpatias é universal e constante.” (Chasles; Carvalhal, 1986).

Ainda, para Paul Van Tieghem o objeto da literatura comparada é o estudo das diversas literaturas em suas relações recíprocas. O que se pode afirmar é que, mesmo que inconscientemente, Buarque possa ter absorvido as idéias que A Revolução dos Bichos carregou através dos tempos e que, de certo modo, trouxe de volta em Fazenda Modelo: novela pecuária.

“...a literatura não considera essencialmente as obras no seu valor original, mas dedica-se principalmente às transformações que cada nação, cada autor impõe a seus empréstimos.” (Carré; Carvalhal, 1986).

Observemos o que relata outro estudioso da Literatura Comparada:

“Em literatura comparada procedem-se a comparações de caráter especial e com finalidade positiva. Com a finalidade, extremamente fecunda para a história do espírito, de verificar a filiação de uma obra ou autor a obras e autores estrangeiros, ou de um momento literário ou da literatura interna de um país a momentos literários ou a literaturas de outros países.” (Silveira; Carvalhal, 1986).

Ele ainda afirma que um trabalho de Literatura Comparada é embasado pelas

“...relações políticas, sociais, filosóficas, religiosas, científicas, artísticas e literárias, abrangendo as traduções e os dados de recepção da obra em um público dado.” (Silveira; Carvalhal, 1986).

A formação, portanto, do comparativista se dá mais em termos de bagagem, de erudição do que de adestramento em técnicas de análise. Sua tarefa é, sobretudo, a da caça de indícios.

“Sua específica tarefa é apenas uma: estabelecer filiações entre obras e autores de um país e obras e autores de outro ou de outros países” (Silveira; Carvalhal, 1986).

“Quem quiser evitar os riscos mais graves que a todo momento ameaçam a viabilidade do estudo das fontes, considere sempre, com a maior cautela, os seguintes aspectos da questão:

a) o perigo de supor que a cada trecho de uma obra deve necessariamente corresponder uma fonte específica, ou “trecho paralelo”;

b) o “hipnotismo da fonte única”, na expressão do professor Morize;

c) a confusão entre simples semelhança e dependência direta.

Além disso, na grande maioria dos casos, a aproximação de textos, de acordo com a técnica das “passagens paralelas”, vem desacompanhada de uma análise estilística e carece portanto de valor concludente. Nunca será possível em tais casos definir a natureza da influência, ou mesmo comprovar se houve de fato influência, e traçar devidamente os limites entre imitação, adaptação, assimilação e originalidade.” (Meyer; Carvalhal, 1986).

Guiados por estes pressupostos é atingida uma encruzilhada no estudo: o que realmente é considerado Literatura Comparada e o que somente representa um estudo sobre a Literatura Geral.

“A literatura geral é o estudo das coincidências, das analogias; a literatura comparada (no sentido estrito do termo) é o estudo das influências, mas a literatura geral é ainda literatura comparada. E mesmo se compreendermos sob esse último termo apenas os estudos de relações de fato, percebemos que não existe solução de continuidade.” (Carvalhal, 1986)

A Literatura Comparada, então se dá pelo estudo metódico, pela pesquisa de laços de analogia, de parentesco e de influência e de aproximação. A literatura de outros domínios da expressão ou do conhecimento, ou então os fatos e os textos literários entre eles, distantes ou não no tempo e no espaço, contanto que pertençam a várias línguas ou várias culturas, podem fazer parte de uma mesma tradição, a fim de melhor descrevê-los, compreendê-los e apreciá-los.

Alguns estudiosos criticam o princípio causalista que rege os estudos clássicos de fontes e influências, manifestando-se contrário aos estéreis paralelismos, resultados de caças às semelhanças que, apenas raramente, investigam o que estas relações devem indicar, a não ser que um escritor conheceu e leu outro.

“O objetivo de investigar e comparar duas obras literárias não é elucidar “como é feita a obra”, mas situá-la “no interior” de uma tipologia dos sistemas significantes na história.” (Carvalhal, 1986)

Foi justamente na esteira de Tynianov e de Bakhtin que Julia Kristeva chegou à noção de “intertextualidade”, termo por ela cunhado em 1969, para designar o processo de produtividade do texto literário. Essa produtividade existe porque:

“...todo texto é absorção e transformação de outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, se instala a de intertextualidade, e a linguagem poética se lê, pelo menos, como dupla. (Kristeva; Carvalhal, 1986).

O processo de escrita é visto, então, como resultante também do processo de leitura de um corpus literário anterior. O texto, portanto, é absorção e réplica a outro texto (ou vários outros).

A análise dessa produtividade leva ao exame das relações que os textos tramam entre eles para verificar, como quer Gerard Genette, a presença efetiva de um texto em outro, através dos procedimentos de imitação, cópia literal, apropriação parafrástica, paródia etc.

A intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando do sentido.

Sabemos que a repetição de um texto por outro, de um fragmento em um texto nunca é inocente. A verdade é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o e por que não dizê-lo que o re-inventa. Desse modo, ao lermos um texto, estamos lendo, através dele, o gênero a que pertence e, sobretudo, os textos que ele leu, e estes não são exclusivamente literários.

“Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, tem valor isolado. Seu significado, sua apreciação é feita em relação a seus antecessores. Não é possível valorizá-lo sozinho, mais é preciso situá-lo, por contraste ou comparação, entre os mortos.” (Eliot; Carvalhal, 1986).

É justamente essa interação entre passado e presente que permitirá esclarecer a diferença entre os dois. O processo dialético que se estabelece entre os textos, como um infindável jogo de espelhos faz com que uns iluminem e resgatem outros.

“O texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Salientemos que esse contato é um contato dialógico entre textos (enunciados) e não um contato mecânico de “oposição”, só possível no âmbito de um texto (mas não no texto e dos contextos) entre os elementos abstratos (os signos no interior do texto) e necessário apenas na primeira etapa da interpretação (da interpretação do significado e não do sentido).” (Bakhtin, 2003).

No que tange ao significado e sentido Bakhtin afirma:

“As lembranças a serem preenchidas e as possibilidades antecipadas (a interpretação em contextos distantes). Nas lembranças levamos em conta até os acontecimentos posteriores (no âmbito do passado), ou seja, percebemos e interpretamos o lembrado no contexto de um passado inacabado.“ (Bakhtin, 2003)

“Em que medida é possível descobrir e comentar o sentido (da imagem ou do símbolo)? Só mediante outro sentido (isomorfo), do símbolo ou da imagem? É possível dissolver o sentido em conceitos. O papel do comentário. Pode haver uma racionalização relativa do sentido (a análise científica habitual), ou um aprofundamento do sentido com o auxílio de outros sentidos (a interpretação artístico-filosófica).” (Bakhtin, 2003).

Logo, a interpretação dos sentidos não pode ser meramente científica, mas é profundamente cognitiva, dependerá de quem o lê e de sua bagagem cultural.

Assim compreendida, a literatura comparada é uma forma específica de interrogar os textos literários na sua interação com outros textos, literários ou não, e outras formas de expressão cultural e artística.

Porém, temos que ter um olhar mais investigativo e menos crítico ao comparar duas obras, pois

“...o autor ao criar sua obra, não a destina ao crítico literário nem pressupõe uma interpretação literária específica, não visa a criar uma coletividade de estudiosos da literatura. Não convida os estudiosos da literatura à mesa do seu banquete.” (Bakhtin, 2003)

O estudo comparado de literatura não deve de resumir-se em paralelismos binários movidos somente por “um ar de parecença” entre os elementos, mas compara com a finalidade de interpretar questões mais gerais das quais as obras ou procedimentos literários são manifestações concretas. Daí a necessidade de articular a investigação comparativista com o social, o político, o cultural, em suma, com a História em um sentido abrangente.

ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE AS OBRAS

“Nenhuma modalidade histórica concreta mantém o princípio em forma pura, mas se caracteriza pela prevalência desse ou daquele princípio de informação da personagem.” (Bakhtin,2003)

“Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico. Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação.” (Bakhtin, 2003)

Quando são comparadas duas ou mais obras literárias - neste trabalho A Revolução dos Bichos e Fazenda Modelo: novela pecuária - é de grande dificuldade fazê-lo sem vinculá-las ao período em que foram criadas e, principalmente, à realidade a que fazem referência, mesmo de forma indireta, como foi observado na produção de Chico Buarque e não na de George Orwell, que é uma crítica e uma sátira, ásperas e declaradas ao regime pós Revolução Russa. Buarque não fica muito atrás, também ironiza o regime militar por sua reverência cega aos modelos estrangeiros de industrialização e beleza, que em sua essência destroem ou negam o senso brasileiro de singularidade racial.

Outro fator a ser considerado em uma destas análises é o fato de que enxergamos o criador apenas em sua criação, nunca fora dela. As vezes é complexo fazer leituras distintas de uma mesma obra, sabendo-se minimamente em que situações elas foram redigidas e sabendo-se também, mais ou menos, qual a linha de pensamento do autor.

Em a Fazenda Modelo: novela pecuária os animais são explorados; enganados, por meio do discurso de Juvenal, o Bom; são subestimados e dominados pelo modelo ideal de sociedade, onde tudo o que era bom ou natural passou a ser proibido e pecado. E assim como durante o período da Ditadura Militar quem ousasse reclamar também pagava com sangue e a vida. Situação esta que não se observa em a Revolução dos Bichos, enredo passado em uma granja onde os animais se revoltam contra o proprietário, um ser humano, e o expulsam de lá, para eles próprios organizarem-se enquanto sociedade.

O que se observa entre estas duas obras é o encontro de duas gerações, e elas, as gerações, inserem um elemento essencial no mundo representado, na fazenda de Buarque e na granja de Orwell, introduzem contatos de vida de tempos diferentes, mas de situações similares.

“O aspecto propriamente semântico da obra, ou seja, o significado dos seus elementos (primeira etapa da interpretação) é, em princípio acessível a qualquer consciência individual. Mas esse elemento semântico-axiológico (inclusive os símbolos) só é significativo para os indivíduos ligados por certas condições comuns de vida, em suma, por laços de fraternidade em um nível elevado. Aí ocorre a comunhão, em etapas superiores a comunhão no valor supremo (no limite absoluto).” (Bakhtin, 2003).

“Contextos da interpretação. Problema dos contextos distantes. Renovação interminável dos sentidos em todos os contextos novos. O pequeno tempo - a atualidade, o passado imediato e o futuro previsível [desejado] – e o grande tempo – o diálogo infinito e inacabável em que nenhum sentido morre. O vivo da natureza (o orgânico). Todo o inorgânico no processo de troca é atraído para a vida (só na abstração eles podem ser contrapostos, se tomados isoladamente da vida).” (Bakhtin, 2003).

Mas as obras em análise não apresentam um formato pré-estabelecido e imutável, elas não possuem apenas o indivíduo, o meio e ambiente, tem também horizonte próprio. Cada uma delas tem um objetivo, A Revolução dos Bichos tem o intuito de impossibilitar a volta do ser humano à granja, ou seja, lutam para não voltar a terem a vida que dantes tinham, enquanto que em Fazenda Modelo: novela pecuária, o gado, submetido, busca a antiga vida de volta, pois antes era melhor.

Uma possível justificativa para o uso de animais para retratar o comportamento reprovável do ser humano nas obras, pode ser o que Bakhtin diz sobre o objeto das ciências humanas: o homem.

“O objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado. A seriedade retém, estabiliza, está voltada para o pronto, para o concluído em sua obstinação e autopreservação.”(Bakhtin,2003)

Em uma alegoria a imagem deve ser lida de duas formas: primeiro deve ser compreendida como o que ela é e depois como o que significa (Bakhtin, 2003).

Entre estas duas obras é presente, como cita Genette (1982), a metatextualidade, vista como a relação crítica, por excelência. É a relação de comentário que une um texto a outro texto.

A opressão, presente nos dois enredos aparece como poderosa arma entre os animais, onde os mais fortes dominam os mais fracos e o poder que é “dado” aos animais é o causador da corrupção dos indivíduos. Em suma, os animais de ambas as obras representam alegoricamente as fraquezas humanas.

Genette (1982) esclarece que seu conceito de transtextualidade alcança

“...tudo o que coloca (um texto) em relação, manifesta ou secreta, com outros textos, ou seja, aquilo que ele chama de relações transtextuais. Afirma que não há obra literária que não evoque, de alguma forma, alguma outra. Nesse sentido, todas as obras seriam hipertextuais.” (Genette, 1982).

“Um hipertexto pode ser lido em si mesmo ou em sua relação com o hipotexto. Essa leitura palimpsêstica, um verdadeiro jogo, permite ao leitor o prazer do encontro entre o texto e seus pré-textos.” (Genette, 1982).

O dialogismo, presente e claro entre A Revolução dos Bichos e Fazenda Modelo: a fábula de Orwell, oferece abertura e causa ímpetos ao leitor para novas respostas ou continuações semelhantes, que possam recorrer ao mesmo banco de tradições formadoras, embora a abordagem de Fazenda Modelo não seja tão convidativa quanto à outra.