A Revolução dos Bichos na Fazenda Modelo de Chico Buarque - II: A Revolução dos Bichos, a obra de George Orwell
Resenha Crítica
Um dia conseguiremos distinguir a diferença entre porcos e homens (Jahr, 2000). Assim é apresentada a Revolução dos Bichos em uma versão e-book, extraída da internet. Este é um presságio do que o leitor encarará durante a leitura desta obra e é impossível acreditar que após fechar este livro a humanidade continuará inocente. George Orwell, após quase 30 anos do ocorrido, ao produzir A Revolução dos Bichos teve, provavelmente, o intuito de retratar e relembrar à humanidade a importância histórica da Revolução Russa, com uma interpretação mastigada por meio de uma fábula genial, mostrando o funcionamento de uma sociedade em transição, à beira de um colapso. Como em toda sociedade, aqui há diversos papéis, cada um com determinado perfil e “missão” ante a necessidade de mudar o modo de viver. Desta forma, para melhor inspirar a essência da moral que esta história nos traz, abaixo, é descrito o perfil dos personagens que compõem esta narrativa.
PERFIL DOS PERSONAGENS
- Sr. Jones – proprietário da Granja do Solar, representa o regime imperialista imposto pelos czares na Rússia deste 1547.
- Major – porco de 12 anos de idade, de porte majestoso, com um ar sábio e benevolente, a despeito de suas presas jamais terem sido cortadas.
- Ferrabrás; Lulu e Cata-vento – são cães e pode-se dizer que representam as forças Brancas que lutaram contra as forças Vermelhas comandadas pelo novo regime socialista liderado por Lênin.
- Sansão – cavalo - era um bicho enorme, de quase um metro e noventa de altura, forte como dois cavalos. A mancha branca no focinho dava-lhe certo ar de estupidez e, realmente, não tinha lá uma inteligência de primeira ordem, embora fosse grandemente respeitado pela retidão de caráter e pela tremenda capacidade de trabalho.
- Quitéria – égua volumosa, matronal já chegada à meia-idade, cuja silhueta não mais se recompusera após o nascimento do quarto potrinho.
- Benjamin – burro – era o animal mais idoso da fazenda, e o mais moderado. Raras vezes falava e, normalmente, quando o fazia era para emitir uma observação cínica. Era o único dos animais que nunca ria. Sem que o admitisse abertamente, tinha certa afeição por Sansão.
- Mimosa – égua branca, vaidosa e fútil. Representava a oposição. Não satisfeita com os resultados da Revolução, fugiu da granja. Esta personagem é um exemplo de muitos soviéticos que foram contra a Revolução, seja por medo, seja por fazer parte de uma parcela da sociedade que tinha ideais capitalistas e burgueses.
- Moisés – corvo domesticado, que dormia fora, num poleiro junto à porta dos fundos. Era um espião linguarudo, mas hábil na conversa.
- Napoleão – um dos porcos mais inteligentes da granja. Era um cachaço Berkshire, de aparência ameaçadora, o único Berkshire da granja, pouco falante, mas com a reputação de possuir grande força de vontade.
- Bola-de-neve – um dos porcos mais inteligentes da granja. Era mais ativo do que Napoleão, de palavra mais fácil e mais imaginoso, porém não gozava da mesma reputação quanto à solidez do caráter.
- Garganta - era um porco de bochechas redondas, olhos sempre piscando, movimentos lépidos e voz aguda. Manejava a palavra com brilho e, quando discutia algum ponto mais difícil, tinha o hábito de dar pulinhos de um lado para o outro e abanar o rabicho, o que era assaz persuasivo. Diziam que ele era capaz de convencer que o preto era branco.
- Maricota – era uma cabra, lia um pouco melhor que os cachorros e costuma ler para os demais à noite os pedaços de jornal que achava no lixo.
- Sr. Pilkington - proprietário da granja Foxwood. Sujeito indolente, granjeiro que passava a maior parte do tempo caçando ou pescando, conforme a estação.
- Sr. Frederick - proprietário da granja Pinchfield. Homem rude e sagaz, permanentemente envolvido em processos na justiça e com a reputação de levar a cabo barganhas muito difíceis.
- Mínimo - porco de notável talento para compor canções e poemas.
- Sr. Whymper - procurador em Willingdon. Era o intermediário entre a Granja dos Bichos e o mundo exterior. Era ele que negociava as mercadorias dos humanos com Napoleão. Era um homenzinho finório, de suíças crescidas, procurador de pouca clientela, porém suficientemente vivo para perceber, antes de qualquer outro, que a Granja dos Bichos precisaria de um representante e que as comissões seriam polpudas.
- Rosito - um jovem porco que fora incumbido de provar a comida de Napoleão para evitar que ele fosse envenenado.
Descrito acima o perfil dos personagens que mais aparecem no texto podemos perceber que a espécie mais importante e que efetivamente trabalhou (para o bem ou para o mal) durante a revolução da Granja do Solar é a suína. Aqui, os porcos são sinônimos de inteligência, força e liderança, mas cá para nós este paralelo entre líderes do mundo real com porcos é algo altamente sarcástico, porém de certa forma, real.
Importante citar que todos os porcos da fazenda eram castrados, exceto Bola-de-neve e Napoleão, o que nos leva a crer que neste caso não ser castrado é sinal de liberdade e respeito, pois quem não era castrado podia tudo.
ORGANIZAÇÃO DA GRANJA DOS BICHOS
Após a revolução que deu liberdade aos bichos da Granja do Solar, que passou a ser conhecida como a Granja dos Bichos, os animais sentiram a necessidade de se organizar enquanto nova sociedade, com novo modo de viver e prioridades diferentes das de antes, pois se antes trabalhavam para comer, agora deveriam trabalhar para produzir o alimento que comeriam o que antes, bem ou mal, lhes era fornecido por Sr. Jones. E foi nesta ocasião que, após a expulsão dos seres humanos da Granja, foi instaurado o Animalismo.
Esta linha de pensamento, por sua vez, deu origem aos sete mandamentos que se seguem:
1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
3. Nenhum animal usará roupas.
4. Nenhum animal dormirá em cama.
5. Nenhum animal beberá álcool.
6. Nenhum animal matará outro animal.
7. Todos os animais são iguais.
Uma vez por semana havia uma assembléia que discutia os trabalhos a serem realizados na semana seguinte e algumas resoluções. Esta assembléia era conhecida como “A Reunião”.
Os porcos reservaram o depósito de ferramentas para sede da direção, onde estudavam mecânica, carpintaria e outras artes necessárias, em livros trazidos da casa-grande. Aqui, neste ponto é que aparece o primeiro sinal de que os animais não iriam viver totalmente sem as coisas típicas dos seres humanos, já que pretendiam estudar e aprender as técnicas desenvolvidas por eles.
Foram criados os comitês dos animais, com a finalidade de organizar a granja e tudo o que era produzido pelos animais que lá viviam.
- Comitê da Produção de Ovos, para as galinhas;
- Liga das Caudas Limpas, para as vacas;
- Comitê de Reeducação dos Animais Selvagens, cujo objetivo era domesticar os ratos e coelhos;
- Movimento Pró Mais Branca, que congregava as ovelhas e
- Criação de classes para ensinar a ler e a escrever (outro resquício de hábitos humanos).
Também foi oficializado o hino Bichos da Inglaterra, cuja letra é transcrita a seguir:
Bichos da Inglaterra
Bichos ingleses e irlandeses,
Bichos de todas as partes!
Eis a mensagem de esperança,
No futuro que virá!
---
Cedo ou tarde virá o dia,
Cairá a tirania
E os campos todos da Inglaterra
Só aos bichos caberão!
---
Não mais argolas em nossas ventas,
Dorsos livres dos arreios,
Freios e esporas, descartados,
Chicotadas abolidas!
---
Muito mais ricos do que sonhamos
Possuiremos daí por diante
O trigo, o feno, e a cevada,
Pasto, aveia e feijão!
---
Brilham os campos da Inglaterra,
Águas puras rolarão.
Ventos leves soprarão
Saudando a redenção!
---
Lutemos todos por esse dia
Mesmo que nos custe a vida!
Cavalos, vacas, perus e gansos,
Liberdade conquistemos!
---
Bichos ingleses e irlandeses,
Bichos de todas as partes!
No futuro que virá!
Mas não foi a revolução que trouxe a boa vida, nem à Granja dos Bichos, nem à própria Rússia, ficou claro que manter um regime socialista cuja toda produção de uma nação ou estado deveria ser dividido por todos, custaria o suor coletivo. E quem iria garantir que a divisão das riquezas, principalmente de alimentos seria justa?
Foi então que as lideranças que dantes incitavam o povo à luta, aos poucos foram se mostrando opressoras e exploradoras daqueles que acreditavam que o novo regime era melhor, mesmo trabalhando mais e comendo menos.
Temos, então, um processo de alienação dos demais animais, ilustrado principalmente pelo porco Garganta, que apesar de também ser um porco é submisso a Napoleão, descrito no livro como um animal que tinha o dom da oralidade, da persuasão e da assertividade. Isso remete a dois aspectos fortes no totalitarismo da União Soviética: a censura e a manipulação direcionada da mídia e a alienação e deturpação da memória coletiva. Os que eram contra, ou criticavam o sistema, eram expulsos ou executados. Assim, a geração posterior à da revolução, que já não gozava dos mesmos benefícios de seus pais, sempre ouviam as grandiosas histórias da revolução e de como antes era pior – e mesmo com a situação atual tão ruim como antes, o fato do governo ser exercido por um “camarada,” por um dito igual, sempre contava como fator decisivo para a idéia da superioridade da atual situação.
A égua Mimosa, como foi citado anteriormente, representava a parcela do povo que foi contra a revolução e que foge da Granja para continuar sendo “paparicada” pelos humanos, demonstrando a situação real de fuga de alguns setores sociais, que fugiram ao perder suas regalias, demonstrando o desejo de reviver o antigo regime – principalmente com a reforma agrária feita na URSS em agosto de 1917, onde se nacionalizou a terra. A égua, sempre fútil e preguiçosa, não resiste aos encantos do dono de uma granja vizinha, e um belo dia some, sendo avistada prestando serviços ao novo dono em outra fazenda.
O cavalo Sansão representa a real força da revolução. Animal mais forte e mais trabalhador, porém ignorante, com dificuldades de raciocínio e de interpretar as idéias dos porcos. Sempre confiante em Napoleão, mesmo após a expulsão de Bola-de-Neve, nunca pára de trabalhar, até que um dia adoece, faltando um mês para se aposentar, esgotado pela exploração de sua força de trabalho. Não podendo mais trabalhar, é mandado para um matadouro, para evitar as despesas com sua inatividade. Sansão é uma referência direta à classe camponesa – real força da revolução, mas que é mantida alienada após a revolução, manipulada pelo governo. Com o passar do tempo, recriam-se os mecanismos de domínio e de exploração, sempre “em prol da nação”, com a sobrevivência coletiva importando mais que a sobrevivência do indivíduo.
Ao fim do livro há a fantástica aparição dos porcos andando em duas patas, vestidos como humanos, morando na casa dos antigos donos e utilizando as coisas deles. Nas últimas páginas, um dos animais flagra uma reunião entre os donos de granjas vizinhas e os porcos. O animal então já não distingue mais quem é porco, quem é humano, ou seja, a revolução tomou um rumo tão ou mais cruel que o sistema anterior, baseado na perseguição dos mesmos objetivos das fazendas vizinhas, tornando os líderes tão sujos e corruptos quanto os humanos. Os sete mandamentos dos animais, inicialmente criados na revolução, são deturpados ao longo do tempo, e no final resumem-se em apenas um: “Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais que os outros”.
A manutenção da alienação, a continuidade da exploração da maioria, a perseguição, o silenciamento da oposição e o desejo de se tornar maior e melhor que as outras fazendas (países), tendo em segundo plano o bem-estar coletivo, são a grande crítica ao totalitarismo soviético deixada por Orwell. Ironicamente, foi devido à tentativa de se tornar uma potência nos moldes capitalistas, que a URSS acabou se desagregando.
O autor finaliza o texto com a seguinte frase, que serve para uma reflexão pessoal: “Mas já se tornara impossível distinguir quem era homem quem era porco.”.