Poemas - forma e conteúdo
Antes de enfrentar o assunto, penso que seja melhor chamar a atenção para alguns aspectos relevantes, sem o que, quaisquer afirmativas ou proposituras podem se perder na confusão das palavras.
Em algum lugar por aí, já andou-se apontando uma premissa indispensável para a discussão sobre o gênero literário da poesia, qual seja, que "poesia", no estrito sentido do que representa, não é apenas aquilo que se traduza num poema. A poesia é um ânimo estético artístico que se apresenta em todas as outras artes. Uma pintura pode ser poética. Um filme pode ser poético. Uma escultura pode ser poética. Uma coreografia pode ser poética. E, assim, por onde a capacidade humana seja capaz de manifestar alguma expressão artística, lá também haverá de existir, em alguma vertente ou nuance, a poesia.
Assim, quando estiver-se, mais adiante, falando em "poesia", por certo, estar-se-á falando de "poemas". Poema é a criação literária que exprime a poesia. Portanto, aqui entre nós, chamemos tudo isso - só para simplificar - de poesia.
Os sábios, filósofos, pensadores, estetas, amantes das artes e outros que tais, já vêm há séculos tentando encontrar uma exata delimitação que possa distinguir a "poesia" da "prosa". Em boa parte das circunstâncias, há obras de natureza tão circunscrita que tal diferenciação é evidente. Ninguém tem dúvida que Machado de Assis expressava-se em prosa e que Olavo Bilac o fazia em poesia. Contudo - só para não nos determos muito nesse ponto - há trechos de crônicas de Vinícius de Morais que, a despeito de sua explícita formatação em prosa, exprimem poesia em todas as entrelinhas. Da mesma forma, há poemas de Drummond que, se retirados os alinhamentos em versos e colocados numa forma corrente, passam-se por prosa, sem a menor sombra de dúvida
Ou seja, entre a poesia e seu oposto, que seria a prosa, existe uma enorme área onde ambas são tão amalgamadas que poder-se-ia alegar que existe a "proesia".
Até aqui, estamos falando dos gêneros a partir de seu conteúdo, essencialmente.
Note-se que, em contraposição à prosa, também existe o verso. Verso é a representação estética formal de um poema, quase sempre.
O contrário de poesia se chama prosa; e o contrário de verso, também se chama prosa. Contudo, nem sempre a poesia é expressa em versos e, assim, não há como dizer-se que ambos se equivalham.
Resultado disso tudo é que, a meu ver, não é a comparação com a prosa que possa servir de parâmetro para discutir-se a poesia, mas sim, a análise dos aspectos que fazem com que "poesia" e "verso" - por absurdo que possa parecer - sejam entes distintos entre si.
É aí que chegamos à seguinte correlação:
Poesia <==> Conteúdo
Verso <==> Forma
Originariamente, quando a poesia foi identificada como gênero literário, ela se confundia com a própria música, já que era um cântico. E o canto era acompanhado por liras (instrumentos musicais). Daí a utilização de lira como sinônimo de poema ou poesia. Há os textos líricos e, até certo ponto, até hoje o lirismo é um dos componentes que mais se sobressai na identificação de determinadas construções poéticas.
Por exemplo, os Salmos são cânticos e, também, são versos de um extenso poema. O fato de as sucessivas traduções e versões os terem trazido até nossos tempos com um aparente aspecto de prosa, não desnatura aquilo que, de sua mera leitura, se nota com clareza, qual seja, que são manifestações de louvor a Deus cheias de lirismo.
Em sendo um cântico, na sua gênese, a poesia esteve intimamente ligada ao ritmo e, nesse passo, a divisão das frases e a marcação dos tempos é que deu ensejo à criação estética do que ficou consagrado como verso. A inclusão das rimas foi um apelo fonético natural, por conseqüência.
Ainda hoje há quem refute a métrica e a rima em poesia, porém, não consegue compreender que uma poesia que observa tais aspectos aparentemente restritivos ganha uma dimensão que extrapola os limites da leitura e absorção de um texto, porque ela se transmuta em uma expressão bem mais requintada quando declamada. A poesia, assim, é um cântico, também!
Entretanto, vocação e talento literários e sensibilidade poética, por certo, variam de artista para artista. Assim tem-se que alguns artistas, ao longo da história humana, apegaram-se mais à criação poética como estetas da palavra, deixando em segundo plano - quando não esquecendo totalmente - o cunho poético verdadeiro que seria recomendável que houvesse em seu conteúdo.
Em outras palavras, enquanto alguns poetas - notadamente os que entraram para a história e cultura da humanidade - conseguiam expor seu brilhantismo, tanto no que diz respeito ao conteúdo poético como na formatação estética de seus poemas; outros, só conseguiam imprimir verdadeira construção arquitetônica com as palavras - apesar de lhes faltar substância poética - mas, a estrutura dos versos disposta de maneira semelhante ao que mais se produzia, foi suficiente para que se identificasse ali o que, também, se chamou de poesia.
Portanto, a forma é a maneira como as construções léxicas, semânticas, fonéticas, etc se consubstanciam em versos. O conteúdo, por outro lado, é a substância poética do que se diz através de um poema. Ambos podem caminhar juntos, certamente!
Porém, parece lógico que o conteúdo poético sobressaia-se como valor mais significativo de um poema, até porque, livre de amarras estéticas, a criação humana pode dar azo a muito mais expressões do que lhe vem na alma.
Por outro lado, desprezar totalmente a estética - leia-se "forma" - não é de todo uma garantia de qualidade poética. Como dito anteriormente, quem, além de possuir espírito sublime o suficiente para expressar-se poeticamente e, ainda, detém técnica apurada para enriquecer isso com ritmos, métricas e rimas, constrói, também, obras superlativas.
Outro aspecto da estética poética que muitas vezes é negligenciado, diz respeito às construções léxicas e semânticas. Note-se que, se existe uma justificativa aceitável para que a liberdade legitime o abandono de ritmos, rimas e métricas, certamente, pouco - para não dizer absolutamente nada - pode servir de desculpa para o desrespeito à ortografia e à gramática.
O respeito ao idioma em sua forma escrita não é um limitador, mas sim, uma garantia de unidade cultural e, queiram ou não os indiferentes, a escrita é uma conquista humana tão valiosa quanto a descoberta do fogo. Assim, é um traço de civilidade ter um mínimo de reverência pelas normas que regem a língua escrita e falada.
De outra forma, pode-se afirmar que a poesia, em sua expressão estética, é sempre uma variante, uma realinhadora de componentes da prosa e, nesse passo, não há como conceber-se que um poema que esteja escrito de uma maneira que não seja minimamente inteligível e, ainda, respeitando as normas da língua, possa ser expressão de liberdade poética. É só preguiça de aprender, mesmo!
Ainda no aspecto atinente à forma, observe-se que no século passado as expressões artísticas modernistas, buscando quebrar vínculos com a tradição, optaram, também, por posturas heterodoxas de expressão. Poesia concreta, por exemplo, abandona totalmente a léxica e a semântica para, em si, apresentar alternativas de utilização da palavra como arte, a partir de uma construção particular do artista. Mesmo assim, se não houver um mínimo de correlação com a norma vigente, até um tal tipo de expressão artística pode parecer uma excrescência literária.
Na mesma linha, a chamada "licença poética" permite alguns desvios para favorecer a criação artística. Contudo, erro por ignorância não é licença poética. Licença poética é uma opção viável para quem a utiliza conscientemente.
Para encerrar esta minha longa divagação - que está longe de ser um rol de verdades inquestionáveis - aproveito para exprimir um sentimento muito particular que guardo comigo, no que tange à criação artística.
Ressalvo que, além de escritor diletante, também já me aventurei em artes plásticas (pintura, escultura), fotografia, música e outras coisinhas mais. Portanto, meu ânimo no que diz respeito às artes em geral, resguarda um senso mais abrangente do que somente aquilo que defendo para a criação literária.
No caso, falo do destinatário final da criação artística que é o "outro". O "outro" é qualquer outra pessoa - ou pessoas - próximas ou distantes, presentes ou futuras, afins ou antagônicas, que irão tomar contato com a obra criada. Não consigo conceber que alguém crie artisticamente somente para gáudio particular. Toda criação artística pede, em si, que alguém mais, além do artista, a conheça e dela absorva alguma impressão.
Defendo, particularmente, que o "outro" - o "consumidor" que se espera tocar com alguma "emoção estética" - é o destinatário final de qualquer obra artística. Assim, toda e qualquer criação que seja tão metafórica, tão enigmática, tão introspectiva, tão insondável que não possa ser absorvida por outrem, é um exercício estéril de transmissão telepática.
Em resumo e para terminar, pela forma ou pelo conteúdo, um poema, quando é criado, destina-se a ser lido ou ouvido por mais alguém e, seja por algum aspecto estético formal ou por sua substância intrínseca, ele precisa necessariamente comunicar-se com a emoção alheia. Caso contrário...