Intertextualidade...uma constante na Literatura
Esse artigo tem como objetivo a compreensão dos conceitos básicos de intertextualidade, discorrendo sobre o assunto de maneira sucinta e clara. Achei interessante divulga-lo aqui, visto que, publicamos textos literários e dentro de um veículo, a Internet, em que cada vez mais encontramos uma proposta de comunicação que abre caminhos para diferentes gêneros discursivos. Aqui mesmo, dentro do Recanto, podemos observar uma intertextualidade que se dá, por exemplo, através de: duplix, artigos que nascem de outros artigos, textos que nascem de comentários...etc afinal, a própria história da literatura é fruto da intertextualidade e o seu processo pode ocorrer em vários graus. Hoje com as novas tecnologias da informação e da comunicação, tal assunto tem sido objeto de várias discussões. Embora esse texto se atenha à literatura, a intertextualidade ocorre em diversas áreas do conhecimento como: pintura, cinema e publicidade.
* Aos leitores que desejarem uma cópia para estudo, basta solicita-la que eu disponibilizo.
Meu endereço de email: valeriasessa@uol.com.br
Intertextualidade:
A palavra intertextualidade significa interação entre textos, um diálogo entre eles. E texto no sentido amplo: um conjunto de signos organizados para transmitir uma mensagem, portanto, no mundo atual da multimídia, ela acontece entre textos de signos diferentes.
Veja um exemplo de intertextualidade :
Para que mentir?
Para que mentir
tu ainda não tens
Esse dom de saber iludir?
Pra quê? Pra que mentir,
Se não há necessidade
De me trair?
Pra que mentir
Se tu ainda não tens
A malícia de toda mulher?
Pra que mentir, se eu sei
Que gostas de outro
Que te diz que não te quer?
Pra que mentir tanto assim
Se tu sabes que eu sei
Que tu não gostas de mim?
Se tu sabes que eu te quero
Apesar de ser traído
Pelo teu ódio sincero
Ou por teu amor fingido?
(Vadico e Noel Rosa, 1934)
Dom de Iludir
Não me venha falar na malícia
de toda mulher
Cada um sabe a dor e a delícia
de ser o que é.
Não me olhe como se a polícia
andasse atrás de mim.
Cale a boca, e não cale na boca
notícia ruim.
Você sabe explicar
Você sabe entender, tudo bem.
Você está, você é, você faz.
Você quer, você tem.
Você diz a verdade, a verdade
é seu dom de iludir.
Como pode querer que a mulher
vá viver sem mentir.
(Caetano Veloso, 1982)
O poema-canção Pra que mentir? foi escrito por Noel Rosa em 1934, em parceria com o compositor paulista Osvaldo Glogliano, o Vadico. Caetano, em 1982, compôs Dom de Iludir, estabelecendo uma imaginária correlação dialogal com o poema de Noel.
A música de Caetano Veloso mantém um diálogo explícito com a de Vadico/Noel Rosa, como muitos poemas mantêm interação com a Canção de Exílio, de Gonçalves Dias.
Exemplos:
Mário Quintana
Minha terra não tem palmeiras...
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.
Oswald de Andrade
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.
Murilo Mendes
Minha terra tem macieiras da Califórnia
Onde cantam gaturamos de Veneza
(...)
Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
E ouvir um sabiá com certidão de idade!
Duas intertextualidades
Dentre a intertextualidade explícita, temos vários gêneros, como: epígrafe, citação, referência, alusão, paráfrase, paródia, pastiche e tradução.
Epígrafe
Epígrafe ( do grego epi = em posição superior + graphé = escrita) constitui uma escrita introdutória de outra.
A Canção de Exílio, de Gonçalves Dias, apresenta versos introdutórios de Goethe, com a seguinte tradução: "Conheces o país onde florescem as laranjeiras? Ardem na escura fronde os frutos de ouro... Conhecê-lo? Para lá , para lá quisera eu ir!"
A epígrafe e o poema mantêm um diálogo, pois os dois têm características românticas, pertencem ao gênero lírico e possuem caráter nacionalista.
Citação
É uma transcrição de texto alheio, marcada por aspas. A música Cinema Novo, de Caetano Veloso, faz citações:
O filme quis dizer "Eu sou o samba"
A voz do morro rasgou a tela do cinema
E começaram a se configurar
Visões das coisas grandes pequenas
Que nos formaram e estão a nos formar
Todos e muitos: Deus e o Diabo, Vidas Secas, os Fuzis,
Os Cafajestes, o Padre e a Moça, a Grande Feira, o Desafio
Outras conversas, outras conversas sobre os jeitos do Brasil.
Na citação sobre o samba, Caetano Veloso diz que o Cinema Novo quer representar o Brasil, como fez o samba da época de Carmen Miranda.
Referência e Alusão
Machado de Assis é mestre nesse tipo de intertextualidade. Ele foi um escritor que visualizou o valor desse artifício no romance bem antes do Modernismo. No romance Dom Casmurro, ele cita Otelo, personagem de Shakespeare, para que o leitor analise o drama de Bentinho.
Paráfrase
A paráfrase é a reprodução do texto de outrem com as palavras do autor. Ela não confunde com o plágio porque seu autor explicita a intenção, deixa claro a fonte. Exemplo de paráfrase é o poema Oração, de Jorge de Lima:
"- Ave Maria cheia de graças..."
A tarde era tão bela, a vida era tão pura,
as mãos de minha mãe eram tão doces,
havia, lá no azul, um crepúsculo de ouro... lá longe...
"- Cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita!"
Bendita!
Os outros meninos, minha irmã, meus irmãos
menores,
meus brinquedos, a casaria branca de
minha terra, a burrinha do vigário
pastando
junto à capela... lá longe...
Ave cheia de graça
- ..."bendita sois entre as mulheres, bendito é o
fruto do vosso ventre..."
E as mãos do sono sobre os meus olhos,
e as mãos de minha mãe sobre o meu sonho,
e as estampas de meu catecismo
para o meu sonho de ave!
E isto tudo tão longe... tão longe...
O autor retoma explicitamente a oração Ave Maria e mantém-se fiel a ele, justapõe a figura de Maria à da sua mãe, refere-se à hora do Angelus.
Paródia
"A paródia é uma forma de apropriação que, em lugar de endossar o modelo retomado, rompe com ele, sutil ou abertamente".
Ela acontece no famoso poema de Carlos Drummond de Andrade No Meio do Caminho, que faz uma paródia do soneto Nel Mezzo del Camin, de Olavo Bilac que, por sua vez, remete ao primeiro verso da Divina Comédia, de Dante Alighiere: "Nel mezzo del camin de nostra vita".
Além do título, Drummond imitou o esquema retórico do soneto de Bilac, ou seja, em vez de parodiar o significado, promoveu um paródia na forma: empenhou-se na imitação irônica da estrutura, reproduzindo apenas o quiasmo (repetição invertida) do texto.
No Meio do Caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nel Mezzo del Camin
Olavo Bilac
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...
E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.
Em minha crônica: "Chique é ser menos", no desfecho, parodio os Titãs com o verso: "Ser anti-caricato é solução sim, ser anticaricato é solução pra mim."
Letra dos Titãs: "Diversão, solução sim. Diversão, solução prá mim".
Pastiche
O pastiche pode ser plágio, por isso tem sentido pejorativo, ou é uma recorrência a um gênero. A estética clássica, por exemplo, promovia o pastiche e não era desdouro fazer isso. O pastiche insiste na norma a ponto de esvaziá-la, como acontece com o dramalhão, que leva o gênero drama às últimas conseqüências.
É bom esclarecer que a questão da originalidade e da autenticidade nas artes nasceu com o Romantismo, cuja concepção artística era que a obra expressasse a subjetividade do autor.
Tradução
A tradução de um texto literário implica em recriação, por isso ela está no campo da intertextualidade também.
Intertextualidade implícita.
Quando uma articulista de jornal escreve sobre a importância dos direitos humanos na atualidade, suas idéias fazem parte de um discurso ideológico, portanto, com certeza, seu texto mantém diálogo implícito (ou explícito) com a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU e outros documentos.
Na Literatura, a intertextualidade é uma constante, porque cada estilo de época se opõe ao anterior e retoma parte da estética passada. Exemplos: o Classicismo retomou a Antigüidade Clássica, assim fez também o Arcadismo e o Parnasianismo. O Realismo combatia os excessos do Romantismo, já este contrariava o formalismo dos clássicos.
Nesse caudal de retomada e oposição, acontece a intertextualidade que forma a história da literatura de uma nação. João Cabral de Melo Neto tem um poema que ilustra muito bem esse fenômeno com a metáfora do cantar dos galos:
Tecendo a manhã
João Cabral de Melo Neto
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, todo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Quando se vê um (a) jovem tentando rabiscar um poema, espremendo os miolos para colocar no papel a sua subjetividade trabalhada em forma de palavras, qualquer escritor se encanta, pois é mais um que quer ser água no rio caudaloso da literatura. Camões, Machado de Assis sorriem porque com esse gesto não deixa a literatura morrer. Intertextualidade também é isso: os cantares de cada geração dialogando entre si.
*Para terminar, cito o conceito de intertextualidade, segundo Foucault em que este ressalta a idéia de que novas percepções relacionadas a percepções anteriormente gravadas na nossa memória inconsciente promoveriam a intertextualidade entre os signos. Penso que Andy Warhol é um exemplo interessante. Estetizando o cotidiano com objetos saturados (poderiámos assemelha-los a vozes e discursos exaustivamente usados na literatura) longe de nega-los, ele os agregava, transformava e reclicava-os numa mistura de arte e propaganda. Atrás da aparente (e deliberada) banalidade das obras pop há quase sempre uma profunda ironia e uma crítica mordaz à sociedade de consumo.
**Este texto é uma paráfrase do livro Intertextualidades: Teoria e Prática, várias autoras, Editora Lê.
Texto de Hélio Consolaro acrescido de considerações minhas e outros exemplos.
Bibliografia - Paulino, Graça; Walty, Ivete; Cury, Maria Zilda Cury. Intertextualidades:
Teoria e Prática, 1ª edição, Belo Horizonte-MG, Editora Lê, 1995.
* foto encontrada na Net - Monalisa_ Pulpfiction