Erística retira a conversação de uma mera produção de consensos nascidos de retóricas certezas ou de dissensos nascidos de dialéticas convencionais: fazendo emergir dúvidas pela apresentação de outras possibilidades de ver e de interpretar um fato ou um enunciado também faz emergir o novo da consciência crítica e a suspeita sobre o que e como se apresenta uma idéia, uma concepção, um discurso. E, para o pensamento infantil ou adolescente, a arte Erística realmente parece ser uma mera arte de disputa verbal a serviço da eloqüência.

Estou usando palavras criadas na experiência histórica grega e esse uso coloca a pessoa num permanente processo de desvendamentos e de interconexões entre os mundos dos deuses e dos humanos, ainda que saibamos serem aqueles criações destes.

Erística bem pode ser a arte da deusa Éris, uma das filhas geradas por partenogênese pela deusa Nix, a noite que por sua vez nasceu do deus Caos.

Éris personifica a Discórdia, diante da qual haverá luta e combate; nela, os desentendimentos serão resolvidos por combate, contestação, rivalidade, emulação. Talvez represente a vitória do senso a ser conquistado para além do consenso e para além do dissenso.

Para a experiência histórica dos gregos, expressa em mito também por Hesíodo, Éris tanto é deusa da Discórdia quanto deusa da Emulação (=força moral para o trabalho);  por isso, suas filhas e seus filhos são a Fadiga, a Fome, a Dor,  o Esquecimento e o Juramento.

Por causa da dúvida instalada por Éris sobre quem seria a mais bela das Imortais –Hera, Atená ou Afrodite- aconteceu a Guerra de Tróia. Estamos, pois, diante da expressão de um grande poder, elaborado pelos Sofistas para desenvolvimento da arte de organizar e expressar o pensamento para construção e defesa da vontade.

Fundamentalmente, Éris é deusa da dúvida, da suspeita; a discórdia é uma possível conseqüência da dúvida, da suspeita, da incerteza instalada diante de certezas instituídas. Sem esse papel erístico, o próprio óbvio não é visto nem considerado e é preciso não reduzir a historicidade desse papel erístico ao uso inclusive militar do conceito de suspeito e de suspeita. A desconfiança erística é dos saberes e das práticas da ilusão e da auto-ilusão instituídas, geralmente apresentadas com fundados argumentos e fomentos oficiais.

O centro da Erística está, pois, na dúvida e não na certeza; lançar dúvidas sobre a aparente coerência e verdade do discurso, provocando sempre novos argumentos de defesa no interlocutor, novas perspectivas. Com algum grau de revivência dos princípios de Erística, Renato Descartes ergueu o princípio de sua ciência da dúvida  e com isso coadjuvou a constituição da ciência do provável na idade moderna européia; em sentido oposto, o mundo europeu também ergueu o seu modelo de ciência do certo,  já destruído pelo modelo de ciência do percebido: ciência do provável ou ilusão do século XV ao XVIII, ciência do certo ou ilusão do século XIX e ciência do percebido ou ilusão do século XX são modelos de ciência comentados por Moles.[1] 

Com o princípio erístico da dúvida existe o modelo de Filosofia fundado no dogma do problema e é pelo mesmo princípio que Karl Popper ergueu o dogma da problemática de pesquisa e o seu princípio de falsicabilidade.

Com o princípio erístico da dúvida, Martinho Lutero criou a Reforma Protestante e é pelo mesmo princípio que a burguesia européia criou o Iluminismo e todas as suas conseqüências ainda vigentes no século XXI.

Os princípios da Erística servem, pois, para quaisquer propósitos; por isso também fundou a advocacia e a sustenta até o presente.

Revivências da Erística também o são os conceitos atuais de razão possível, razão plausível, razão provável, razão mínima, inclusive o agir comunicativo de Jürgen Habermas.

Arte da dúvida, do debate e da refutação gerando o verossímil seria uma adequada significação de Erística para a qual é absolutamente essencial o domínio da arte da ortoépia (dicção perfeita), da correção da linguagem escrita, da organização do pensamento com clareza e segurança, do uso correto da língua ou idioma, da arte retórica.


[1] MOLES, Abraham A. A Criação científica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva. 1998

Carlos Fernandes
Enviado por Carlos Fernandes em 06/06/2008
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