SOBRE A ACTUALIDADE DO SONETO

                                                    por CARLOS DOMINGOS


Acerca do meu colóquio subordinado ao tema «O soneto, esse desconhecido», o sr. Epaminondas Barbosa teceu o seguinte comentário: O soneto, da forma tradcional, já está superado. Mas o seu trabalho serve como lição de História.

Fantástico! Epaminondas, com uma só penada, sacudiu o soneto para fora da poesia moderna ou, melhor, anulou-o como formato de composição poética.

Porém, a afirmação de Epaminondas Barbosa carece totalmente de demonstra-ção, é apenas uma afirmação gratuita, é aquilo a que Eça de Queirós chamou n’A Relíquia o descarado heroísmo de afirmar.

Mas eu vou tentar ajudá-lo. Peço-lhe, portanto, que siga o meu raciocínio.

Primeiro, vejamos a frase: O soneto (…) está superado. Aqui o soneto não é sujeito, mas sim objecto. Naquela expressão, o verbo está na voz passiva, pelo que o sujeito real terá de ser aquilo a que se chama o complemento agente da passiva, o qual não está explícito na frase. É, pois, lícito que nos interroguemos: o que é que, afinal, superou o soneto? Ou, por outra forma, por quem ou por que coisa foi o soneto superado?

Entretanto, como não pretendo ir por esse caminho, vamos supor como boa a hipótese de Epaminondas ter apenas pretendido dizer que o soneto caiu em desuso. Assim já nos podemos entender.

Ora, o soneto apareceu há cerca de oito séculos. Se caiu em desuso, desde quando é que isso aconteceu? A partir de que época? E quais as mudanças que determinaram a sua caducidade? E como é que Epaminondas chegou a essa conclusão? Leu nalgum manual? Leu ou ouviu algum comentador, crítico literário ou professor de literatura? Ou essa conclusão foi-lhe ditada pela sua própria experiência? É um ponto que seria bom ver esclarecido para dar credibilidade à sua afirmação. É necessário saber-se de que autoridade está investido para expulsar o soneto da poesia moderna.

Durante os seus oito séculos de existência, o soneto teve sempre os seus detractores. «A sua introdução na literatura europeia não se fez de forma pacífica.» (In «O soneto, esse desconhecido»). «O combate ao soneto tem-se processado de duas formas: primeiro recusando-o simplesmente.» «Outra forma de combate contra o soneto é a deturpação das suas regras.» (Ibidem).

Estas duas formas de rejeição do soneto foram e ainda são utilizadas moderna-mente. As correntes modernistas e futuristas, os surrealistas e, até, os neo-realistas, duma maneira geral, recusaram o soneto.

No entanto, compuseram sonetos na sua forma tradicional Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Sidónio Muralha (um dos grandes do neo-realismo), Miguel Torga, David Mourão-Ferreira, Fernando Echevaria, Ruy Belo e tantos outros nossos contemporâneos. E, se repararmos que Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Morais, Fernando Grade e Manuel Alegre escreveram belos sonetos, com que cara podemos afirmar que o soneto foi superado ?

Torna-se igualmente necessário definir e separar bem dois conceitos distintos. Parece-me que Epaminondas confunde forma com formato. Se compararmos os sonetos de Petrarca com os de Camões; os de Bocage com os de Antero ou com os de Florbela, verificamos que eles se diferenciam entre si pelo conteúdo e pela forma. O que mantêm em comum é o formato.

Em poesia a forma é configurada pela expressão, o ritmo, a sonoridade, o emprego das imagens ou das metáforas, a escolha das palavras ou das frases. É claro que o formato também condiciona a forma, na medida em que lhe coloca balizas entre as quais o poema se vai movimentar (isto é mais notório no caso do soneto).

Para entendermos melhor a diferença entre forma e formato, transportemo-nos para outra expressão artística, por exemplo a pintura.

A pintura é muitas vezes apresentada num determinado formato: o quadro. O quadro é um formato recente, teve a sua origem na ascensão da burguesia. Antes, ela era realizada em painéis ou murais, geralmente encomendados por grandes senhores ou pelo clero para ornamentar palácios, catedrais ou outras majestosas construções. Com o surgimento da grande burguesia e o desenvolvimento do sentido individualista, qualquer rico-homem podia encomendar o seu retrato ou dos seus familiares numa obra de menores dimensões, que pendurava em sua casa. O quadro manteve-se para a posteridade, embora as formas da pintura se fossem alterando através dos tempos.

Houve uma época, não muito longínqua, em que os críticos de arte prenunciavam o desaparecimento do quadro devido à democratização ou socialização da pintura. Esta destinar-se-ia a ser usufruída pelo povo através de grandes murais, e não de quadros que estavam ciosamente escondidos nos salões dos seus proprietários. Essa teorização da superação do quadro não teve expressão real e o quadro continua a existir como um dos formatos mais executados.

Esta incursão no campo da pintura serviu apenas para tornar mais clara a diferença entre forma artística (por oposição ao conteúdo) e formato.

Os ataques que o soneto sofreu através dos tempos ainda hoje perduram. E variam desde os que o ignoram pura e simplesmente até os que o combatem frontalmente, passando pelos que procuram destrui-lo adulterando-o.

Quando os modernistas e os futuristas encontraram e impuseram novos ritmos à poesia, fora dos padrões da métrica, logo nasceu o conceito de que a métrica estava ultrapassada e que não teria mais lugar na poesia moderna. Assim, o soneto teria também chegado ao fim dos seus dias. Cedo se chegou, no entanto, ao entendimento de que a introdução de novos ritmos na poesia não impunha a exclusão de anteriores formatos, pois que isso seria empobrecer, em lugar de enriquecer, a própria poesia.

Hoje cada vez mais se reserva um lugar ao soneto no quadro da poesia – espe-cialmente em língua portuguesa. Apesar disso, muitos procuram torpedeá-lo, infringindo as suas regras, procurando até encaixar no soneto procedimentos peculiares a outros géneros de composições, o que corresponderia à destruição do próprio conceito de soneto.

Mas entendamo-nos. Um soneto pode ficar adulterado como tal, embora isso não impeça de ser considerado um bom poema. Ao contrário, pode um soneto ser construído dentro do respeito pelas suas regras exteriores e, não obstante, ser destituído de qualquer qualidade poética, o que o impede de ser um verdadeiro soneto.

Por fim, nunca é demais lembrar que, em arte, uma das exigências é a economia de meios. No soneto essa exigência é absoluta. Dentro dos seus catorze versos tem de caber e esgotar-se toda a sua temática, sem lugar para palavras ou expressões supérfluas. É isto que, por um lado, afasta dele um determinado número de poetas, muitos dos quais não por terem do soneto uma atitude depreciativa, e até encaram positivamente a sua existência como género literário, mas pura e simplesmente porque não se sentem atraídos por esse tipo de trabalho. Por outro lado, as regras estritas da composição do soneto atraem outros poetas devido ao desafio que isso representa.




                                        APÊNDICE

Para que a minha recusa da tese da superação do soneto, no sentido da sua caducidade ou sequer do seu total abandono não fique desprovida de demonstração, apresento seguidamente uma colectânea de sonetos (em formato clássico) da autoria de 23 poetas modernos (início do século XX até a actualidade), dos quais 8 ainda vivos e outros 8 falecidos recentemente. Notemos nestes poemas a diferenciação formal ao longo do tempo e de autor para autor.

De ANTÓNIO FEIJÓ (1859-1917)

             ANADIÓMENE

Das marinhas espumas engendrada,
essa que vai nas águas cristalinas
sobre a concha de nácar, embalada
pelo coro das horas vespertinas,

– da onda que a gerou, ao sol doirada,
no seio ostenta as curvas peregrinas;
deu-lhe a sereia a voz enamorada,
veste-a de encanto a graça das Ondinas…

Ao clarão que em seus olhos amanhece,
a Natureza alvoroçada acorda
e de prazer e júbilo estremece,

porque do Amor a misteriosa essência
dos seus peitos, já túmidos, transborda
como o supremo encanto da existência.

                                  (De: Vinte poesias inéditas) 


De MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO (1890-1916)

               ÚLTIMO SONETO

Que rosas fugitivas foste ali:
Requeriam-te os tapetes e vieste…
– Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste!
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi…

Pensei que fosse o meu o teu cansaço –
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava…

E fugiste… Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?...

                                                      (De: Indícios de Ouro)



De: FERNANDO PESSOA (1888-1935)


(Por Fernando Pessoa – Ele mesmo)         (Por Álvaro de Campos)

         NO TÚMULO DE CHRISTIAN                                                 AH,
                 ROSENCREUTZ                                                          UM SONETO
(O primeiro de quatro sonetos)

Quando, despertos deste sono, a vida,              Meu coração é um almirante louco
Soubermos o que somos, e o que foi                  que abandonou a profissão do mar
Essa queda até Corpo, essa descida                   e que a vai relembrando pouco a pouco
Até à noite que nos a Alma obstrui,                   em casa a passear, a passear…

Conheceremos pois toda a escondida                No movimento (eu mesmo me desloco
Verdade do que é tudo o que há ou flui?           nesta cadeira, só de o imaginar)
Não: nem na Alma livre é conhecida…              o mar abandonado fica em foco
Nem Deus, que nos criou, em Si inclui…           nos músculos cansados de parar.

Deus é o Homem de outro Deus maior:             Há saudades nas pernas e nos braços.
Adam supremo também teve Queda;                 Há saudades no cérebro por fora.
Também, como foi nosso Criador,                      Há grandes raivas feitas de cansaços.

Foi criado, e a Verdade lhe morreu…                 Mas – esta é boa! – era do coração
De além o Abismo, Sprito Seu Lha veda,          que eu falava… e onde diabo estou agora
Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.          com almirante em vez de sensação?...

        (De: Poesias de Fernando Pessoa)                          (De: Poesias de Álvaro de Campos)



De CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1927)

                  FRAGA E SOMBRA                                      A INGAIA CIÊNCIA

A sombra azul da tarde nos confrange.              A madureza, essa terrível prenda
Baixa, severa, a luz crepuscular.                           que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,
Um sino toca, e não saber quem tange                todo sabor gratuito de oferenda
é como se esse som nascesse do ar.                   sob a glacialidade de uma estrela,

Música breve, noite longa. O alfanje                  a madureza vê, posto que a venda
que sono e sonho ceifa devagar                          interrompa a surpresa da janela,
Mal se desenha, fino, ante a falange                  o círculo vazio, onde se estenda,
das nuvens esquecidas de passar.                     e que ao mundo converte numa cela.

Os dois apenas, entre céu e terra,                       A madureza sabe o preço exato
sentimos o espetáculo do mundo,                      dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
feito de mar ausente e de abstrata serra.            e nada pode contra sua ciência

E calcamos em nós, sob o profundo                   e nem contra si mesma. O agudo olfato
instinto de existir. outra mais pura                      o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
vontade de anular a criatura.                               se destroem no sonho da existência.

             (De: Uma, Duas Argolinhas)            (De: Tentativa de Exploração e de Interpretação
                                                                                                  do Estar-no-Mundo
)



De AFONSO DUARTE (1884-1958)

                SONETO DA EREIRA

Exaltam-me a cegonha e o pato bravo.
Só não posso com estas codornizes
Com ironias, tontas de reprizes,
– Paspalhão, paspalhão! – enquanto cavo.

Meu mundo é outro, queres dizê-lo? Dizes?
Eu bem sei, paspalhão! – Ao fim e ao cabo,
– Príncipe que fugiu a ser escravo –
Não me dão outro, bons pardais felizes.

Aberto a pá de enxada o meu desterro,
São as covas das árvores que planto
– E aqui fica gravado – quando perro,

– Paspalhão, paspalhão – ouço o teu canto!
Como cabe uma vida em quatro tábuas,
Assim eu espalho, ao mundo, as minhas mágoas.

                                                              (De: Ossadas – Livro Segundo)



De SEBASTIÃO DA GAMA (1924-1952)

        SONETO DO TEMPO PERDIDO

Passo às vezes os dias distraído
de mim; vou ao café, vou conversar,
e não paro um segundo a escutar
o que terá cá dentro acontecido.

Vivo a vida dos outros, esquecido
de que o meu Fado é mais do que passar:
ah! bem sei eu que vim para contar
a minha alma plena de sentido!

Muito me dói o que fugi então!...
– Pra mim próprio me pus costas-voltadas,
e, tudo que em mim foi, foi tudo em vão.

Quanta coisa foi quase pequenina
(e surgira pra ser das celebradas),
só por eu ter burlado a minha Sina!

                                              (De: Serra-Mãe)



De JOSÉ RÉGIO (1901-1969)

                      LIBERTAÇÃO

Menino doido, olhei em roda, e vi-me
Fechado e só na grande sala escura.
(Abrir a porta, além de ser um crime,
Era impossível para a minha altura…)

Como passar o tempo?... E diverti-me
Desta maneira trágica e segura:
Pegando em mim, rasguei-me, abri, parti-me,
Desfiz trapos, arames, serradura…

Ah! meu menino histérico e precoce!
Tu, sim!, que tens mãos trágicas de posse,
E tens a inquietação da Descoberta!

O menino, por fim, tombou cansado;
O seu boneco aí jaz esfarelado…
E eu acho, nem sei como, a porta aberta!

                                                       (De: Poemas de Deus e do Diabo)



DE POETAS QUE MORRERAM JÁ DEPOIS DE 1974

De RUY BELO ( + 1978 )

         MEDITAÇÃO MAGOADA

Deixa-me olhar-te pássaro real.
a saltitar nesta tarde esquecida
Como uma clara afirmação de vida
mesmo pequeno esse teu corpo vale

Que alguma coisa morre em cada qual
leio-o nessa cabeça ao alto erguida
mas tens a alegria extrovertida
de não sentir em ti o nosso mal

Somos contemporâneos meu amigo
por isso posso conviver contigo
compartilhar o orgulho de estar vivo

Eu penso e tu não pensas é que é certo:
Tu a saltar e eu aqui tão perto
a pensar que da morte me não privo

                                           (De: Homem de Palavra[s])




De VINICIUS DE MORAIS ( + 1980 )

                           SONETO À LUA

Por que tens, por que tens olhos escuros
E mãos lânguidas, loucas e sem fim
Quem és, que és tu, não eu, e estás em mim
Impuro, como o bem que está nos puros?

Que paixão fez-te os lábios tão maduros
Num rosto como o teu criança assim
Quem te criou tão boa para o ruim
E tão fatal para os meus versos duros?

Fugaz, com que direito tens-me presa
A alma que por ti soluça nua
E não és Tatiana e nem Teresa:

E és tão pouco a mulher que anda na rua
Vagabunda, patética, indefesa
Ó minha branca e pequenina lua!

                                                    (De: Poemas, Sonetos e Baladas)



De SIDÓNIO MURALHA ( + 1982 )

               SONETO DE DIRCE

Aquela que se deu feliz de dar-se
nunca mais se dará a quem se dá
porque não sabe dar-se sem disfarce
a Dirce, a pobre Dirce ao deus-dará.

Se pudesse um farrapo esfarrapar-se,
se alguém quisesse haver o que não há,
assim seria Dirce ao entregar-se
na certeza que nada entregará.

Nada. Mas há no fundo desse nada
uma doce cantiga enluarada
toda feita de infância e de lonjura,

porque através dos tempos inclementes
prostitutas com gestos comoventes
acreditam ainda na ternura.

                                                 (De: Que Saudades do Mar)




De ARY DOS SANTOS ( + 1984 )

              SONETO DO TRABALHO

Das prensas dos martelos das bigornas
das foices dos arados das charruas
das alfaias dos cascos e das dornas
é que nasce a canção que anda nas ruas

Um povo não é livre em águas mornas
não se abre a liberdade com gazuas
à força do teu braço é que transformas
as fábricas e as terras que são tuas

Abre os olhos e vê. Sê vigilante
a reacção não passará diante
do teu punho fechado contra o medo.

Levanta-te meu Povo. Não é tarde.
Agora é que o mar canta é que o sol arde
pois quando o povo acorda é sempre cedo.

                                                                 (De: O Sangue das Palavras)




De MIGUEL TORGA ( + 1995 )

                  RESSURREIÇÃO

Porque a forma das coisas lhe fugia,
O poeta deitou-se e teve sono.
Mais nenhuma ilusão lhe apetecia,
Mais nenhum coração era seu dono.

Cada fruto maduro apodrecia;
Cada ninho morria de abandono;
Nada lutava e nada resistia,
Porque na cor de tudo havia Outono.

Só a razão da vida via mais:
Terra, sementes, caules, animais
Descansavam apenas um momento.

E o vencido poeta despertou
Vivo como a certeza dum rebento
Na seiva do poema que sonhou.

                                                             (De: Libertação)




De JOSÉ PRUDÊNCIO ( + 2000 )

                       NAVIO PERDIDO

Porque é que o meu navio se fez ao mar,
sem que eu tivesse tempo de partir…?
…E, sozinho no cais, fui, a chorar,
olhando as velas brancas a sorrir…

…A sorrir como esperanças a afastar
seu rumo deste porto de afligir
em que eu fiquei? Por que razão o mar
me roubou deste modo o sonho? Hei-de ir

ainda procurar o barco à vela
que o meu ideal criou, alevantado,
e me deixou no porto abandonado…

…Hei-de ir… Hei-de ir… No dia em que a procela
arrebatar meu corpo já tornado
pedra nua de um cais desmantelado…

                                                              (De: Mar-Mundo)



De SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN ( + 2004 )

              EM TODOS OS JARDINS

Em todos os jardins hei-de florir.
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

                                                              (De: Poesia I )





DE POETAS AINDA VIVOS


De JOÃO BAPTISTA COELHO ( n. Lisboa )

                QUEM É? QUEM FOI?

Quem és, Pablo Neruda, que partiste
mas vives, no entanto, ao nosso lado?
Quem és que, sobre a terra, lança em riste,
lutaste por quem foi injustiçado?

Poeta? Sonhador? Ou alguém triste
com este mundo imenso tão errado?
Por certo, um ser que pensa e que persiste
na carta de alforria ao escravizado.

No ir, mas cá ficar, mora a grandeza
dos homens que mantêm sempre acesa
a chama do amor à dignidade.

E tu foste dos tais que, vida fora,
nos deste um novo sol em cada aurora,
no verso onde cantaste a Liberdade.

                              (In: Neruda, Cem Anos Depois, colectânea de Cristino Cortes )




De FERNANDO ECHEVARRÍA ( n. Cabezón del Sal – Espanha )

                HOJE PARA MORRER

Hoje, para morrer era preciso
que a música viesse. E nos beijasse
as pálpebras por dentro. E um sorriso
desceria da água à nossa face.

Tudo seria finalmente liso
como um rio que nunca mais passasse.
Tudo seria tudo, não sendo preciso
um relógio qualquer que nos guardasse

o grande amor que então percorreria
o corpo. Chamar-lhe-iam gravidade,
ou peso, ou nada, ou, simplesmente, fria

inércia, fim. Mas quem respira sabe-
-lhe a fundo o nome. De raiz diria:
«amor irreversível. Terra. Ou nave.»

                                                                    (De: Sobre as Horas )



De NEIDE BARROS RÊGO ( n. Niterói, Rio de Janeiro )

                        NAMORADOS

Manhã azul. Dois jovens namorados,
calças arregaçadas na canela,
vão descalços, alheios, abraçados,
o olhar dele, encantado, preso ao dela.

Caminham pela praia deslumbrados
não pela natureza pura e bela.
Estão embevecidos, concentrados
nas palavras de amor ditas a ela.

E, ao ver este casal apaixonado,
deixando marcas fundas, paralelas
na areia fofa e húmida do chão,

meu triste coração, desencantado,
marcado por pisadas e sequelas,
quer retornar ao tempo da ilusão.

                               (In: Portugal-Brasil, Antologia de Poetas Portugueses e Brasileiros)




De FERNANDO GRADE ( n. Estoril )

                GRUPOS DE PRESSÃO

Os polvos estão sentados, tocam flauta
e ninguém viu moluscos tão ordeiros
a fazerem da música uma pauta
onde as pombas viajem em cruzeiro!

São cordatos tais polvos merceeiros
e não é gente inculta nem incauta
dão saltinhos de púrpura em Janeiro
em Julho vão a banhos com a malta.

Vejo-os aos bandos a subir cidades
(dólares são gravatas a voar)
e a saliva ruim é uma irmandade.

Criaturas com baba e com capelos
os polvos são da terra e são do mar
há que arranjar maneira de fodê-los.

                                                       (De: Sonetos com Demo)




De MANUEL ALEGRE ( n. Águeda )

                  RIMEMBRANZA

Página como plaino: quem orvalha
levemente as palavras já passadas?
Camaradas dos campos de batalha
as armas e as guitarras destroçadas.

Rimembranza. E quem por sob a malha
do tempo poluiu brancas espadas?
As palavras perdidas e a muralha
do esquecimento. As armas tão choradas.

Venha o oiro de um vinho de Chianti
e contra o barbarismo bem contadas
as sílabas de Guido Cavalcanti.

E dove sta memoria eis que nos calha
de novo o canto. E frias as espadas
camaradas dos campos de batalha.

                                                            (De: Sonetos do Obscuro Quê)



De CARLOS DOMINGOS ( n. Lisboa )

                     ANIVERSÁRIO

Sorvo a manhã do meu aniversário,
mas só na noite encontro um refrigério.
Cada dia é uma névoa de mistério
em que espreita, escondido, um adversário.

Movo-me como um peixe no aquário,
mergulhado num sonho deletério.
Mal respiro, mas lanço um impropério
surdo, qual grito dentro dum armário.

Luto para vencer este martírio,
esbracejando num esforço inglório
que me liberte deste mau augúrio.

Eis que a Vida ressalta do delírio.
Dispara-me um sorriso aleatório
e segreda-me a Esperança, num murmúrio.

                                                                    (De: Desesperanças)
CARLOS DOMINGOS
Enviado por CARLOS DOMINGOS em 29/11/2005
Reeditado em 12/02/2006
Código do texto: T78684