A PRISÃO DO SER: a dor de existir em "Cárcere das Almas", de Cruz e Souza

...Cárcere das Almas...

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa

Soluçando nas trevas, entre as grades

Do calabouço olhando imensidades,

Mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza

Quando a alma entre grilhões as liberdades

Sonha e, sonhando, as imortalidades

Rasga no etéreo Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e funéreas

Nas prisões colossais e abandonadas,

Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,

Que chaveiro do Céu possui as chaves

Para abrir-vos as portas do Mistério?!

Cruz e Souza

VOCABULÁRIO

cárcere - calabouço

calabouço - prisão subterrânea

grilhões - laços, prisões

etéreo - sublime, celestial

colossais - poderosas, soberanas

atroz - sem piedade, desumano

funéreo -relativo à morte ou aos mortos

"Poesia de beleza única, pois que é acariciada pela asa da noite e, todavia, lampeja com todas as cintilações do diamante."

Crítico francês Roger Bastide.

Esta é a definição do crítico à poesia simbolista de João da Cruz e Souza, a maior expressão do Simbolismo em língua portuguesa. O "Cisne Negro", como ficou conhecido, expõe-nos uma poesia melódica, espiritual, individual, sugestiva, transparente, fazendo uma sondagem no inconsciente. O simbolista deseja um encontro consigo mesmo, para buscar as respostas ao mundo material, triste e decepcionante, que residem no "eu".

Um de seus poemas, "Cárcere das Almas", ilustra com perfeição a temática e estética simbolistas. Adiante, apresentam-se duas análises: uma estrutural e outra interpretativa.

- ANÁLISE ESTRUTURAL -

*SONETO: composto por quatro estrofes (dois quartetos - quatro versos - e dois tercetos - três versos - ).

*MÉTRICA: versos decassílabos - dez sílabas poéticas.

1º verso: divisão silábica gramatical

Ah! / To / da /a /al / ma / num / cár /ce / re / an / da / pre / sa /

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14

1º verso: divisão silábica poética

Ah! / To / da a al / ma / num / cár / ce / re an / da / pre / sa

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

obs: considera-se até a sílaba tônica do última palavra.

. crase: junção de vogais iguais.

Ah! / To / d(a a a)l / ma...

. elisão: junção de vogais diferentes.

...num / cár / ce / r(e a)n / da / pre / sa.

*ESQUEMA RIMÁTICO: rima enlaçada ou oposta.

presa A

grades B

imensidades B

natureza A

grandeza A

liberdades B

imortalidades B

Pureza A

fechadas C

abandonadas C

funéreo D

graves E

chaves E

Mistério D

*ALITERAÇÃO: repetição de sons consonantais.

"Nesses silêncios solitários, graves,". (repetição do som /s/.)

*ASSONÂNCIA: repetição de sons vocálicos.

"Mares, estrelas, tardes, natureza." (repetição dos sons /a/ e /e/.)

*INVOCAÇÃO NO USO DAS MAIÚSCULAS: iniciais maiúsculas em substantivos comuns, enfatizando o aspecto simbólico e alegorizante dos vocábulos e dando força emocional a eles.

"Rasga no etéreo Espaço da Pureza."

"Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!"

"Que chaveiro do Céu possui as chaves

Para abrir-vos as portas do Mistério?!"

*EMPREGO DO PLURAL EM SUBSTANTIVOS ABSTRATOS: sugerir uma nova dimensão.

"Do calabouço olhando IMENSIDADES,"

"Quando a alma entre grilhões as LIBERDADES

Sonha e, sonhando, as IMORTALIDADES"

"Nesses SILÊNCIOS solitários, graves,"

*RITMO: distribuição das sílabas tônicas.

"Ah! Toda a (AL)ma num (CÁR)cere anda (PRE)sa

Solu(ÇAN)do nas (TRE)vas, entre as (GRA)des

Do cala(BOU)ço o(LHAN)do imensi(DA)des,

Mares, est(TRE)las, (TAR)des, natu(RE)za."

- ANÁLISE INTERPRETATIVA -

O título do poema, “cárcere das almas”, já nos antecipa o caráter do assunto abordado: espiritualidade. É formado pelo vocábulo “cárcere”, sinônimo de “calabouço” (que aparece mais adiante), significa “prisão subterrânea”. É nesta prisão que se encontram as “almas” (no plural). Percebe-se que não é somente a alma do eu-lírico que está aprisionada, mas todas as almas existentes. O coletivo se manifesta naquilo que é comum a todos os seres viventes: todos possuem uma essência vital – a alma –.

Aqui, o sentimento de impossibilidade expresso pelo eu-lírico parece confundir-se com a vivência de todos os seres que o cercam, a ponto de haver identificação entre texto e leitor. Transparece a passagem experiência individual - dimensão coletiva (subconsciente individual – inconsciente coletivo), visto que esta subjetividade excessiva do eu-lírico se configura num estado de existência que se torna comum a todos os seres humanos que vivem no mundo material. Não há mais nada que impeça as almas de serem livres. Não existe outro obstáculo, barreira, limite (daí a razão de “cárcere” está no singular).

O cárcere, neste caso, não é uma cela física, concreta. Esta prisão é o próprio corpo humano, carnal, que prende o espírito no mundo material e o impede de se libertar e atingir sua plenitude. Somente a carne, matéria solúvel e passageira, trancafia a essência mística da vida numa cela obscura e mórbida.

Abre-se o poema com uma interjeição, “Ah”, que denota alegria, espanto, surpresa, medo, admiração, enfim, possui um tom emocional.

Na primeira estrofe há um conceito sobre a condição humana, bem como uma revelação de conflito: “eu” x o mundo. O sentimento traduzido é individualista, como no Romantismo. Nota-se, porém, que este mesmo sentimento identifica-se com todo o universo coletivo humano. Daí esta preocupação condicional da existência humana: “... toda a alma num cárcere anda presa” remete justamente a um ambiente fechado, privado de companhia, que limita o ser humano de suas vontades e anseios e é inerente a ele.

A alma chora, pois está “soluçando nas trevas”; o soluço remete ao choro que, por conseguinte, está ligado à tristeza e à solidão. O choro, aqui, pode ser de desespero, por ela encontrar-se num lugar sombrio, em estado de solidão, ou de revolta por não ter possibilidade de libertação. Outro aspecto desta privação está no fato de o cárcere permitir que a alma (ou as almas) fique “olhando imensidades”, “entre as grades do calabouço”. Quando alguém é privado de sua liberdade (preso), tudo o que lhe é negado torna-se grandioso, precioso. As grades dão espaço, “esperança” para o espírito vislumbrar-se com numa atmosfera disponível e desimpedida. Por isso, a alma chora, uma vez que percebe sua limitação e, ao mesmo tempo, a irrealização de seu anseio, pois, estando despojada num “mundo subterrâneo”, no esquecimento profundo, o único consolo que lhe resta é contemplar o inatingível para ela. Os substantivos do verso “Mares, estrelas, tardes, natureza” são elementos contemplativos, por sua grandiosidade e esplendor estético. Eles exemplificam o cosmo de “imensidades”, este mundo que não tem medidas, no qual fita os olhos toda alma. Estabelece-se, portanto, um contraste entre prisão e liberdade.

Para um elemento ser contemplado, é necessário haver um contato de proximidade entre este e o ser que o contempla, pois é estando bem perto, quase “tocando-o”, que se atinge o ápice da admiração. O olhar atento e embevecido é atingido quando se concretiza o momento obra-prima/admirador, onde ambos estão frente a frente, em uma relação de êxtase absoluto.

A segunda estrofe apresenta duas inversões de termos nas orações (hipérbatos), que provocam alguma dificuldade de compreensão. Os versos “Quando a alma entre grilhões as liberdades/ Sonha e, sonhando, as imortalidades/ Rasga no etéreo Espaço da Pureza”, mantida a ordem típica da língua, seriam “Quando a alma entre grilhões sonha as liberdades e, sonhando, rasga as imortalidades no etéreo Espaço da Pureza”. Há de se observar, ainda, que o verbo “sonhar” (intransitivo ou transitivo indireto), foi usado como transitivo direto:

Quando a alma (sonha) (as) (liberdades).

V.T.D. art. obj. direto

Ontem eu sonhei. (ter sonhos)

V.I.

Eu sempre (sonhei) (com) (este momento)

V.T.I. prep. obj. indireto

Depreende-se dessa estrofe que, nesse calabouço “carnal e humano”, a alma sonha (no sentido de ansiar, desejar com ardor) com as liberdades. Estas figuram co uma nova dimensão. Como está “entre grilhões”, a alma, com forte ardor, anseia não uma, mas todas as liberdades possíveis; abre-se um leque de variantes subjacentes e vindouras do livramento maior: o corpo. “Abandonar” o corpo implica atingir a plena liberdade transcendental e desfrutar as várias sensações desprendidas e oriundas deste “abrir as celas mundanas”.

O sonhar místico da alma permite que a mesma “rasgue as imortalidades”. Imortal é aquilo que não morre, eterno. Em outras palavras, o impossível, visto que o ato de ser imortal é um universo inatingível para a natureza humana. A existência do homem está condenada a um fim em si mesma, a única certeza consciente do ser humano. Como a alma é “essência arrebatada” do corpo, esta também é impedida de atingir sua imortalidade (plenitude). É aí que o sonho, onde não existe impossibilidade dos seres e das coisas (o universo é permissivo a qualquer manifestação do desejo inconsciente humano), fortifica esta essência espiritual para transpor (rasgar) todos os obstáculos e empecilhos (imortalidades) que possam existir. Vencidas as barreiras, a alma já pode acordar “... no etéreo Espaço da Pureza”. “Espaço” e “Pureza” aparecem , aqui, com iniciais maiúsculas (substantivos próprios). O ambiente é definido e específico; não é um lugar banal, mas um espaço inundado de transparência cândida, de limpidez casta e virtuosa, de pureza suprema. E qual seria este lugar onde transborda a maior pureza encontrável? O espaço celeste, a morada dos espíritos, seres castos, transparentes, com vestes claras e pacíficas.

A terceira estrofe se inicia com outra interjeição – “Ó” –, que exprime uma invocação ou chamamento. Novamente, reafirma-se o estado doloroso e angustiante em que se encontram as almas: “presas” nestas grades mortais do ser, “mudas”, pois seus gritos de suplicas, em atitudes vãs de libertação, jamais atingiram os ouvidos desejados, “fechadas” à espera que alguma fenda se abra e as deixe saírem do subterrâneo profundo da vida. Ainda retidas “nas prisões colossais”, supremas e inabaláveis, cuja força é imensa para as almas transpô-las, “e abandonadas” no esquecimento do inconsciente, onde nenhum ser detentor de vida se aventurou antes. Lá, a mercê da sorte, elas (as almas) agonizam sua “Dor” (com inicial maiúscula), esta dor maior de viver aprisionada à matéria, ao mundo carnal. Na verdade, toda a estrofe é um lamento profundo, quase um grito estridente (reforçado pela exclamação no final) em face ao abandono vivenciado pelas almas. A revelação feita é a de que a condição humana, essencialmente material, não permite que a alma se realize com plenitude.

Para finalizar o soneto, banhado de angustia, uma pergunta é lançada para o interior do próprio ser: estando as almas caladas em sua solidão dolorosa, nesta tentativa frustrante de salvação, “que chaveiro do Céu possui as chaves para abrir-vos as portas do Mistério?”. O pronome oblíquo átono “vos”, em “abri-vos”, denota, justamente, a busca incessante por respostas, que residem no “eu”, no intimo do ser. O substantivo “Céu”, assim como “Espaço”, “Pureza”, “Dor” e “Mistério” (este mais adiante), aparece com inicial maiúscula. De fato, ele não designa mais o firmamento, o espaço “azul” onde transitam os astros. Agora, ele representa a figura de Deus, que remete ao tema circundante a todo o poema: o plano espiritual. Esta busca pelo “ser supremo” revela não exatamente fé em Deus, mas uma necessidade d’Ele, uma vez que é uma entidade ou força superior, que está acima da consciência do homem, capaz de trazer harmonia, a ordem no caos, o apaziguamento da alma. Ele é o detentor de todas as chaves (ele possui o chaveiro, coletivo de chave) que destrancam as jaulas materiais do corpo e libertam as almas. Pode-se, ainda, tomar o termo “chaveiro” como substantivo, o que mantém a idéia da presença de Deus e reforça o auxílio necessário do mesmo na salvação das almas. Por fim, “as chaves” abrem “as portas do Mistério”. Transparece do substantivo definido “Mistério” a atmosfera sobrenatural que povoa todo o imaginário do ser humano. O que é incompreendido pelo homem, guardado nas entranhas de seu inconsciente, torna-se algo oculto, obscuro, impenetrável à razão humana. Somente captando as verdades plenas do espírito, a alma atinge sua plenitude e liberdade, realizando, assim, sua passagem do mundo material e efêmero para a contemplação da vida eterna.

Em conclusão...

O homem volta-se para uma realidade subjetiva (o “eu” passa a ser o universo, mas não o “eu” superficial, sentimentaloide e piegas do Romantismo – os simbolistas buscam a essência do ser humano, aquilo que ele tem de mais profundo e comum a todos: a alma). A alma é o cerne, a realidade quase única, a obsessão (essência espiritual), razão de ser superior do homem, único valor nobre, sublime e transcendente do ser humano, preocupação ultima que deve angustiar a existência humana.

A alma, que é espiritual, tende constantemente a purificar-se, a liberar-se da “vã material”. Exilada do mundo, presa ao “cárcere” que é a materialidade.

Em última instância, pode-se fazer uma analogia da temática do soneto à vida do próprio Cruz e Souza, cuja existência terrena se transfigurou na dor de viver e de enfrentar os duros problemas decorrentes da discriminação racial e social que sofreu. Era negro e filho de escravos. Foi jornalista, mas sem êxito. Como poeta, foi incompreendido pela critica e sociedade da época, só ganhando reconhecimento valoroso por sua obra após sua morte.

Saulo Sozza
Enviado por Saulo Sozza em 04/08/2009
Reeditado em 07/11/2009
Código do texto: T1736821
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