SONEBRINCANDO COM O FOGO: LEITURA INTERPRETATIVA


No seu jogo, a menina, sem demora,
manda embora a tigresa da baiúca,
qual sinuca jogada pela aurora,
mas lá fora está presa na arapuca.

Quem a educa na aposta a fez agora
mui senhora de si, quiçá maluca...
A cumbuca é disposta a qualquer hora
pra quem chora de dor no pé da nuca.

Queima a cuca sem brasa esse rapaz!
Tanto faz, pois já viu que o dito forno
fica em torno do amado, o tal Diogo.

Mas o jogo, esse enfado tão assaz,
não se apraz com o agrado sem adorno,
ao transtorno causado pelo fogo!

Amargo, Fiore Carlos, Nilza Azzi, Paulo Camelo, Rhusso
(Exercício conjunto de elaboração de sonetos.)
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Uma leitura de: "SONEBRINCANDO COM O FOGO

Vocabulário:

jogo. (ô). [Do lat. jocu, “gracejo”, “zombaria”, que tardiamente tomou o lugar de ludus]. S. m. (...) 2. Brinquedo, passatempo, divertimento. (...) 8. Série de coisas que forma um todo ou uma coleção. (...) 12. Escárnio, ludíbrio, jigajoga. 13. Manha, astúcia, ardil. 14. Vicissitudes, alternativas, vaivens, jogadas; jigajoga (...)


menina. [Fem. De menino.] S. f. 1. Criança do sexo feminino. 2. Mulher nova e /ou solteira; mocinha, garota. 3. Tratamento familiar e afetuoso dado às pessoas de sexo feminino, crianças e adultos.

tigresa (ê). S. f. Bras. 1. A fêmea do tigre. 2. Pantera.

Obs:

tigre. (...) 3. Fig. Homem sanguinário, bárbaro cruel.

pantera. (...) 4. Fig. Bras. Mulher muito bela e atraente; tigresa

baiúca. [Da gír. esp. bayuca]. S. f. 1. V. biboca (3). 2. V. taberna (1).

biboca. [ Do tupi ibi, terra + boka, ger. de bog, “fender-se”] S. f. Bras. 1. Escavação ou fenda de terreno, em geral produzida por enxurrada; cova. 2. Vale profundo e de acesso difícil; baboca, boboca, buraco, grota. 3. Habitação pequena, pobre, modesta; baiúca, buraco, toca. 4. Bras. NE e SP. Casa humilde, coberta de palha. BA. Pequena venda ou taverna; bodega. 6. Bras. ES. Habitação afastada, remota.

sinuca. [ Do ingl. snooker] Bras. (...) 4. Fig. Situação difícil ou embaraçosa.

aurora. [ Do lat. aurora.] S. f. 1. Astr. Período antes do nascer do Sol, quando esse já ilumina a parte da superfície terrestre ainda na sombra. 2. Fig. O início da visa, a infância. 3. Princípio, origem, começo. 4. O Oriente.

arapuca. [ Do tupi ara’puka. S. f. Bras. 1. Armadilha para apanhar pássaros pequenos, formada de pauzinhos cada vez mais curtos, dispostos em forma piramidal; urupuca. 2. P. ext. cilada, armadilha. 3. Estabelecimento mal-afamado
de crédito, seguros, sorteios, etc. 4. Engodo, logro, velhacaria, embuste. 5. Casa velha, esburacada, que ameaça ruir. *Cair na arapuca. Bras. Deixar-se apanhar.

aposta. [ fem. substantivado do adj. aposto] S. f. 1. Ajuste entre pessoas de opiniões diversas, no qual a que não acerta deve pagar à outra, algo de antemão determinado; jogo. 2. A coisa ou quantia que se aposta. 3. P. ext. Desafio; porfia.

maluca. [De mal (1)].Adj. 1. Diz-se de alienado mental; doido, louco, idiota. 2. Que age como se fosse doido; tonto, zonzo, gira. (...) 4. Diz-se de indivíduo doidivanas, estouvado. 5. Extravagante, excêntrico, esquisito. 6. Absurdo, desarrazoado.

cumbuca. [ De cuiambuca, com síncope] S. f. Bras. 1. Vaso feito de cabaça na parte superior da qual se fez uma abertura circular, e destinado principalmente a conter água ou qualquer outro líquido; cuiambuca. 2. Bras. Rifa. 3. Gíria. Casa de jogo. 4. Cabaça onde se faz um furo por onde possa o mico introduzir a mão e parte do braço, e da qual não pode libertar-se por não ter o expedient de largar o engodo ali colocado.

cuca (2). V. bruxa (2)

cuca (5). [De quicuca, com aférese]. S. f. PE. Rolo que se faz com o mato depois da roçagem, em que se usa o gancho; quicucã, ticuca.

cuca (6). S. f. Bras. MG. V. luxo (1)

luxo. [Do lat. luxu]. 1. Modo de vida caracterizado por grandes despesas supérfluas e pelo gosto da ostentação e do prazer; fausto, ostentação, magnificência [Sin.; (bras. MG.) cuca].

brasa. S. f. 1.Carvão incandescente. 2. Qualidade ou estado de incandescente; incandescência. 3. Ardência, queimor; afogueamento. 4. Ardor, paixão; entusiasmo, excitação. 5. Inquietação, ansiedade, aflição. 6. Cólera, ira. (...) 8.
Bras. Gír. V. cachaça. 9. Bras. Gír. Pessoa atraente, sedutora, brilhante, viva.

forno. (ô). [Do lat. fornu] S. m. (...) Fig. Casa ou lugar demasiado quente, fornalha.

jogo. (ô). [Do lat. jocu, “gracejo”, “zombaria”, que tardiamente tomou o lugar de ludus]. S. m. (...) 2. Brinquedo, passatempo, divertimento. (...) 8. Série de coisas que forma um todo ou uma coleção. (...) 12. Escárnio, ludíbrio, jigajoga. 13. Manha, astúcia, ardil. 14. Vicissitudes, alternativas, vaivens, jogadas; jigajoga (...)

adorno. (ô). [Dev. de adornar]. S. m. 1. Aquilo que adorna, que enfeita, que decora; objeto de adorno. 2. Ornato, ornamento, adornamento. 3. Atavio, enfeite.

fogo. (ô). [Do lat. focu]. S. m. Desenvolvimento simultâneo de calor e luz, que é produzidoda combustão de materiais inflamáveis, (...). 14. fig. Ardor, fervor, paixão.. 15. Fig. Energia, entusiasmo: o fogo da juventude. 16. Fig. Inspiração, imaginação, exaltação: o fogo da poesia. 17. Fig. Excitação sexual; sexualidade.
(...). 19. Bras. Pop. V. bebedeira.

Minha base para esta análise originou-se da leitura do trabalho apresentado no link abaixo:

http://www.cadernos.ufsc.br/online/cadernos 15/ marcos.pdf

"O dispositivo fundamental de coesão, neste poema, é a reiteração
semântica e lexical.

Vejamos agora como o poema pode ser analisado pela linguística
textual. Primeiramente, convém relembrar os cinco dispositivos
de coesão segundo o modelo delineado por Halliday e Hasan21(...), esses cinco dispositivos de coesão em inglês, perfeitamenteválidos para o português, são: referência, substituição,elipse, conjunção e coesão lexical.


Tudo tem sua moral e todo poema tem seu fantasma

Qual o significado do poema. Ou então, segundo Michael
Riffaterre,29 qual a sua significância? Dito ainda de outra maneira,
por exemplo segundo o linguajar da linguística, qual o fantasma que
habita sob a forma de uma intenção na textura polissêmica permeada
nas diferentes estratificações do significado?
Nem sempre haverá uma resposta única e definitiva para esta
questão." (marcosnr@matrix.com.br)


Eis o que se me depara, após um simples pedido (que incluía um “primorosa”).

Parece-me que, embora esse trabalho, primoroso, cuja leitura recomendo,  lide com questões de tradução, não deixa de indicar um caminho para a minha análise. Longe de ter a mesma qualificação do autor, mas apaixonada pela análise lingüística textual, faço meus humildes ensaios nesse campo. Ensaios no sentido mais comum, de ensaiar, tentar, experimentar...

É pela busca da repetição e pela combinação de certos elementos léxicos e semânticos que mais freqüentemente começo minhas análises. Pelo árduo trabalho de fazer uma lista de palavras, procurar uma por uma no dicionário, anotar seus significados, colocando mais atenção no sentido figurado, já que é nesse âmbito que a polissemia impera.

Em geral, tenho uma percepção do que virá, antes da pesquisa, mas preciso confirmá-la para corroborar a análise interpretativa..

Escolhi para o segundo verso do segundo terceto, a expressão “sem adorno” sugerida pelo autor do pedido de análise.

Fiz a análise pelo conjunto e não pelas postagens individuais (cada um sabe o que escreveu, se houver interesse) porque creio que as postagens foram mais por exigências do exercício, do que por visão individual


Uma mulher nova, uma menina, rápida em suas artimanhas (jogo), elimina (manda embora) outra mulher bela, atraente (tigresa), tal como a aurora (a luz) livra (clareia) de uma situação difícil. No entanto, essa menina tem esse poder dentro do espaço em que vive, habita (na baiúca), porque fora dele, existe uma armadilha (arapuca) na qual ela está presa.

Quem a induz (educa) ao risco, incute-lhe segurança, mas talvez transmita uma possibilidade de que ela seja levada a agir de forma estouvada, desarrazoada.
A armadilha (sinuca) está sempre à espreita de quem não vê o que vem por trás
(para quem “chora de dor no pé da nuca” podemos supor uma nuca rígida, que não se vira).

De outro lado, temos um homem jovem (rapaz) que não quer saber de bruxas (pessoas más, perigos) e as elimina, por elisão, talvez mentalmente (queima a “cuca” sem brasa). Muito rico o significado aqui, porque também podemos entender que fica remoendo (ajuntando, amontoando, recolhendo) algo à toa (queima a cuca “sem brasa”).

No entanto, para esse rapaz, não importa o que ele tem de elidir, porque ele sabe onde está o interesse da menina: o calor (o forno), está no amado.

Mas o passatempo (o jogo) ou aquilo que se coleciona (o jogo), com freqüência pode ser um aborrecimento (enfado tão assaz) por não serem aprazíveis os jogos sem os atavios que requerem, os carinhos sem enfeites (sem adorno), portanto muito crus, simples ou despojados (não se apraz com o agrado sem adorno), não corresponderem às exigências causadas pela sexualidade (aos transtornos causados pelo fogo).



O poema é permeado de metáforas, de ditos populares subentendidos:
“viver numa baiúca”

“esse lugar parece uma baiúca”

“estar numa sinuca”

“cair na arapuca” ou “armaram-lhe uma arapuca”

“é aposta certa”

“não ponha a mão em cumbuca” ou “é por a mão na cumbuca”

“quem põe a mão no fogo, vai se queimar”

“por ele(a) eu ponho a mão no fogo”

O ritmo, em martelo agalopado, traz a idéia de algo que começa apressado e ralenteia. Também pode ser associado ao fato de que entramos em uma situação rapidamente, afoitamente, mas depois de estar nela, não temos pressa de sair.

A rima que mais aparece (ainda não analisei as rimas o suficiente), lembra o som que fazemos quando entramos em contato com algo muito quente ou muito frio: “uh!”ou “ui” (prolongados),mas esse “ca”, também lembra “eca”, gíria para algo de que nos causa algum tipo de repulsa.

A rima em “ora” que também aparece bastante, remete para o “ora, ora” utilizado quando flagramos alguém fazendo algo errado.

Com base nesses elementos, ainda que primária e parcial, uma das conclusões de minha análise é que o(s) poeta(s) exprimem suas idéias sobre os jogos de sedução, com as implicações de praxe.


Nilza Aparecida Hoehne Rigo