Do tanka ao poetrix

Do Tanka ao Poetrix

Tenho andado à procura das raízes do Poetrix, não sei se vou encontrar, mas alguns estudos me levaram a pensar que estou no caminho certo. Vasculhei livros velhos e centenas de páginas na Internet à procura de uma resposta. Voltei muitos anos atrás como se procurasse uma pedra preciosa.

Lá pelos anos de 710 a 794, poetas japoneses praticavam o Uta (que significava canção), mas que depois foi chamado de Waka e, finalmente, Tanka. O Tanka era uma arte nobre, um poema curto e trabalhado, composto de duas estrofes, sendo que a primeira era feita com três versos, onde o primeiro e o terceiro tinham cinco sílabas e o segundo sete (formando assim, as 17 sílabas do Haicai).

É importante ressaltar que na poesia japonesa a contagem de sílaba não obedecia ao princípio da tônica final da última palavra do verso (métrica portuguesa), pois todas as sílabas eram contadas. Sílabas gramaticais.

A segunda estrofe era formada de dois versos com sete sílabas.

No início, o Tanka era escrito por um único indivíduo, mas com o decorrer do tempo, passou a ser escrito por duas pessoas, um poeta escrevia a primeira estrofe e o outro, escrevia a segunda.

Nessa fase o Tanka ficou conhecido como “tan renga”, porém os poetas daquela época resolveram adicionar a ele mais estrofes, passando desta forma, a construir poemas mais longos, que ficaram conhecidos como Renga. O Renga é, pois, uma sucessão de estrofes que se relacionam, sendo que cada uma é escrita por um poeta e, são independentes entre si.

É nesse momento da poesia japonesa que surge o mestre Matsuo Bashô, que viveu entre os anos 1644 e 1694 e tinha preferência pelo Renga, não pelo Haicai. Ele praticava seu lado poético juntamente com seus seguidores, durante suas viagens a Kioto e Yedo. Hoje, Tóquio.

Bashô foi quem chamou a primeira estrofe do Renga de Hokku e, as demais de Haicai, dando-lhes as características da natureza, tais como: primavera, verão, outono, inverno, raio, chuva, vento...

O Haicai nasce dos desdobramentos do Renga, que era um poema encadeado.

É importante observar que a estrofe inicial de três versos ganhou logo sua independência como poema autônomo. No século XIX, o mestre Masaoka Shiki lhe atribuiu o nome de Haiku, pela junção das palavras Haicai e Hokku. Shiki abandona o trabalho em grupo dos tempos de Bashô e caminha para o trabalho individual, construindo sua própria vertente.

O Haiku ou Haicai tem como característica o registro, instantâneo. Enquadra, evoca os fatos, emociona.

É, pois, uma construção de poemas breves, depurados, belos, simples e fluentes.

É uma reação estética minimalista à crescente consciência humana. Exige uma atenção especial aos fenômenos da natureza, que são objetivos e imediatos.

Pressupõe uma relação entre o particular e o geral, entre o individualmente percebido e o ritmo cósmico da natureza, entre a efemeridade da sensação e o eco que esta pode despertar na sensibilidade e na memória de qualquer pessoa.

O Haicai chegou ao Brasil com a vinda dos imigrantes japoneses.

Não podemos deixar de registrar, no entanto, a importância de Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras, 1919) e Wenceslau de Moraes (Relance da Alma Japonesa, 1926), que são considerados os marcos iniciais da difusão do Haicai em português.

Com eles, iniciou-se o processo de naturalização do legado de Bashô em nosso país. Além de escrever Haicai, Afrânio Peixoto traduziu alguns dos mais significativos Haicai de Bashô.

Em 1936, Guilherme de Almeida, poeta nascido em Campinas-SP, publicou o que ele chamou de “os meus Haicais”.

Nesse trabalho, ele modificou a estrutura do Haicai, acrescentando-lhe as rimas, de forma que os versos de cinco sílabas rimavam entre si e no de sete, a rima ficava no interior do verso, mais precisamente na segunda e sétima sílabas.

A partir daí, a estrutura do Haicai, no Brasil, tomou diversos rumos. Nem mesmo as 17 sílabas continuaram a ser respeitadas. São aceitos poemas com 18 ou 16 sílabas.

Para ilustrar o que estava acontecendo naquele momento, apresento alguns exemplos de Haicai abrasileirados.

1 - Noite. Um silvo no ar.

Ninguém na estação. E o trem

Passa sem parar.

Neste poema de Guilherme de Almeida podemos perceber que foi utilizado o artifício das rimas: "ar" com "parar" e "alguém" com "trem", o que não era permitido nos Haicai japoneses.

1 - Infância

Um gosto de amora

comida com sol.

A vida chamava-se "Agora".

Neste outro poema, Guilherme de Almeida foi ainda mais longe, colocou título em seu Haicai.

Veja que o poema permite duas leituras: uma com o título e a outra, sem ele. O que é mais interessante é que as duas leituras são diferentes, uma nos leva à infância, enquanto que a outra, não.

Outro exemplo dos novos rumos do Haicai no Brasil pode ser tirado do poema de Manoel Bandeira.

Aqui o centro de tudo deixou de ser a natureza, passou a ser o homem, o amor.

Veja que, para dar ênfase ao novo sentimento, ele escreveu a palavra amor com letra maiúscula.

1 - Quis gravar “Amor”

No tronco de um velho freixo

Marília escrevi

Pedro Xisto é outro exemplo dessas mudanças, assim como Millor Fernandes, que escrevia Haicai humorísticos.

Eles usaram e abusaram das rimas.

1 - Jacente de outrora

Na pedra de outrora ora

(já sente que é hora)

Millor Fernandes com sua linguagem satírica, diverte-se com Haicai humorísticos.

1 - O dinheiro é sujo,

E não há nada mais sujo

Do que dinheiro sujo

Quando comecei a escrever tercetos, me deparei com dois poemas que me chamaram a atenção:

1 - Festa familiar

Murilo Mendes

Em outubro de 1930

Nós fizemos – que animação!

Um pic-nic com carabinas

1 - Cota Zero

Carlos Drummond de Andrade

Stop.

A vida parou

Ou foi o automóvel?

Veja que estes poemas foram escritos entre 1930 e 1945, aproximadamente uma década depois da Semana da Arte Moderna.

Era notório que poetas brasileiros estavam buscando novos rumos para a poesia nacional.

Tanto Murilo Mendes quanto Drummond, já cultivavam o verso livre e a poesia que foi chamada de “poesia sintética”.

No meu entender, tanto estes poemas quanto o poema “Infância” de Guilherme de Almeida, podem ser classificados como qualquer coisa, menos Haicai.

Uns chamavam de Haicai, outros de poemetos, outros de curtíssimos, etc... Até que um jovem poeta baiano de nome Goulart Gomes, teve a ideia de chamá-los de Poetrix, "poe" de poesia e "trix" de três.

Com esta ideia na cabeça, Goulart Gomes criou um grupo de estudos formado por poetas consagrados e novos, que estavam dispersos por todos os Estados da Federação.

O grupo, no início, tinha como moderadores principais o próprio Goulart Gomes e a jovem poetisa Sara Fazib. Mais tarde juntou-se ao grupo a professora Aila Magalhães.

Juntos, orientavam e divulgavam a nova ideia.

Foram criadas algumas regras básicas para que se pudesse diferenciar o Haicai do Poetrix. Isto aconteceu em meados do ano de 1999.

Hoje o grupo conta com aproximadamente 150 participantes, que estão divididos entre: Brasil, Argentina, Uruguai, Venezuela, Colômbia, Cuba, Canadá, EUA, Itália, Portugal, Espanha e França.

No início, o Poetrix, como o Haicai, não tinha título, este era apenas desejável. Depois de muita discussão, o título passou a ser obrigatório. Na minha opinião, este é um dos grandes diferenciais entre o Haicai e o Poetrix. Para um melhor entendimento, eu diria que todo Haicai poderá ser um Poetrix, desde que lhe deem título, mas a recíproca não é verdadeira, uma vez que no Poetrix o título é obrigatório.

É importante ressaltar que o título, além de dar uma ideia do poema, pode fazer dele.

Como exemplo das considerações anteriores, apresento um Poetrix de minha autoria.

1 - Fome

a distância

entre a mão e a boca

tem nome...

Observe que, sem o título, este poema fica sem sentido, o que não acontece com um Haicai.

Outra significativa diferença entre essas formas de se fazer poemas, é o número de sílabas. No Haicai são 17 sílabas gramaticais, enquanto que no Poetrix, elas podem chegar até o máximo de 30 sílabas métricas.

É importante observar que o título não entra na contagem das sílabas do Poetrix, mesmo quando este faz parte do contexto.

A metáfora é uma das principais armas do Poetrix, mas ela também foi bastante usada pelo próprio Bashô, como podemos constatar neste seu poema.

1 - se a tomasse nas mãos

derreter-se-ia em lágrimas quentes

geada de outono

"Bashô fala da tristeza de ter nas mãos uma mecha de cabelos brancos da mãe morta. A diferença em relação a outros tipos de poesia seria que o Haicai sempre pode ser lido no sentido literal ou objetivo. A geada pode ser simplesmente geada ou então representar os cabelos da mãe morta. Já numa frase como "Maria é uma rosa", não existe sentido literal possível, apenas a metáfora".

A concisão é uma característica que serve tanto para o Haicai quanto para o Poetrix, só que no Haicai ela está engessada nas 17 sílabas enquanto no Poetrix, não.

Mais uma vez, vou demonstrar com um dos meus Poetrix.

1 - Alcoólatra

desaba

aos bafos

o bêbado

Veja que, aqui, a concisão não está amarrada ao número de sílabas e sim, ao texto, o que não pode acontecer no Haicai.

Não poderia deixar de falar da influência que Paulo Leminski exerceu no Poetrix. Grande parte dos seus poemas são curtos, às vezes curtíssimos. Creio que esta concisão tenha nascido de sua convivência com o Haicai, só que ele trouxe uma nova roupagem para os poemas minimalistas.

No exemplo que coloco a seguir, podemos constatar a forma direta, o diálogo, a ironia, o vocabulário chulo, coisas que não eram retratadas no Haicai. Vemos também a rima e o título, artifícios largamente usados no Poetrix.

1 - Que tudo se f...

__que tudo se foda,

disse ela,

e se fodeu toda

Acredito que para os latinos, é mais confortável escrever Poetrix, muito embora ele tenha algumas características em comum com o Haicai. Para nós, a própria contagem de sílabas é um problema.

Desde o início, colocaram em nossas cabeças que o Haicai tinha que ter 17 sílabas, só que isso não é sempre seguido pelos japoneses, daí, até as traduções ficaram comprometidas, uma vez que os tradutores usaram uma premissa falsa.

O Haicai não deveria ser traduzido, as traduções tiram a originalidade do texto, mas elas são importantes para o entendimento deste fascinante mundo poético.

Curiosidades:

No Brasil, a palavra Haicai é escrita de várias formas, sendo que, no dicionário Aurélio está grafado – Haicai.

O primeiro livro brasileiro exclusivamente de Haicai foi o de Waldomiro Siqueira Júnior, 1933.

Fanny Luiza Dupré foi a primeira mulher a publicar um livro de Haicai: Pétalas ao vento, 1949.

A imigração dos japoneses para o Brasil iniciou-se em 1908, ano da chegada da primeira leva do navio Kasatu-Maru.

Existem outras formas do Haicai, como Haimi, Kigo e Kireji.

Uma constatação:

O ano de 2002 foi o período em que mais se escreveu Poetrix. Acredito que esse feito não seria alcançado se não fosse a determinação da poetisa Aila Magalhães, que sempre incentivou os que chegavam, ora com seus Poetrix, ora com suas providenciais “intervenções”.

Um sonho:

Criar um Banco de Dados para o Poetrix. Em minhas contas já temos mais de 50 mil Poetrix. Um arquivo de causar inveja!

Finalmente, seguem alguns dos mais belos Poetrix escritos por participantes do grupo, (com certeza a relação é infinitamente maior do que esta amostragem colhida por mim).

1 - Agenda cheia

Eliana Mora

Marquei encontro comigo.

E [como sempre]

não fui.

2 - Fútil

Armando Leal

sinto-me vazio e escrevo.

as letras parecem pedras,

e doem-me os gestos.

3 - Morte

Anthero Monteiro

uma cadeira vazia na alameda

sentada numa tarde de outono

a olhar o meu ponto de fuga

4 - Ortografia

Anthero Monteiro

uma gaivota só

um til sobre a palavra

imensidão

5 - Pessoix

Goulart Gomes

um terço de mim delira

um terço de mim pondera

outro terço: ah! quem dera!

6 - Flor seca

Enrique Anderson

flor seca

entre páginas de poesias

ya es también poema

7 - Leitura

Ângela Togeiro

Os dedos do cego

captam detalhes mais íntimos

nas rugas, leem o ego

8 - O princípio das coisas

Carlos Theobaldo

Tinha tanta certeza

Que morreu

Com certidão

9 - Nu divã

Ronaldo Ribeiro Jacobina

Id ao divã devagar

Vã tentativa

De voar

10 - Face a face

Jucinéia Gonçalves

o que queres?

:ocupar-me

já há vazio suficiente

11 - Divi_dida

Aila Magalhães

não queria

ser deus,

só duas...

10 - Flor de Cacto

Lílian Maial

no corpo marcado

e olhos de seca

teu sorriso é gota

11 - Fugaz

Tê Soares

Cama desarrumada,

liberdade para as borboletas

estampadas nos lençóis...

E viva a poesia!!!

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 12/01/2006
Reeditado em 13/07/2020
Código do texto: T97765
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