AMOR ATO VINTE E DOIS

Só agora posso falar do seu ventre aberto,

posso falar da faca que te abriu no corte,

posso falar da minha mão inútil

no momento definitivo da tua morte.

Por que levei uma vida para me desapegar

No entanto, é apego o que sinto agora.

Tudo cruza o céu como o pássaro da aurora

E tudo ao mesmo tempo anoitece.

É noite e você está lindo sobre a cama

E como corpo tu somente ainda vive,

pois sou eu que carrego a tua chama.

Sou eu a enfermeira ao seu lado,

Que chora, pois agora não há passado,

um glorioso passado que uniria dois seres

Marília ainda era estagiária em enfermagem quando um rapaz esfaqueado e inconsciente entrou na emergência do Hospital Santa Luzia em Fortaleza. O médico examinou a vítima, o corte fora aberto na altura do estômago; tomou alguns cuidados e pediu à Marília as seguintes providências: colocar a luva cirúrgica e introduzir lentamente a sua mão direita dentro da cavidade formada pelo ferimento do rapaz. Marília, julgando iniciar algum tratamento, obedeceu ao homem, introduziu lentamente a sua mão no estômago da vítima, mas quando estava no caminho, depois do corte, ela sentiu, devagar, as últimas batidas do coração daquele paciente. Marília puxou a mão e gritou. Soltou um grito enorme e ouviu a risada do médico titular, por coincidência também o seu professor na Faculdade de Enfermagem.

O mestre ordenara a providência da introdução da mão no abdômen do rapaz esfaqueado, não como uma tentativa de salvação do paciente, já condenado, mas para Marília sair do estágio, tornar-se uma profissional enfermeira que conhece e sabe relativizar a hora da morte. Enfermeiras devem adquirir a noção do efêmero.

Marília também começou a chorar. Chorou muito, junto com os familiares do rapaz, que morreu logo depois. Marília chorou porque percebeu também: sua mão dentro daqueles restos mortais não tinha sido apenas uma aula prática. Marília se sentiu unida ao corpo do jovem e tudo - o ferimento, a luva cirúrgica, o coração do paciente, o coração de Marília - pareceu uma fileira de dominós em queda, retida ali entre seus dedos.

Marília lembrou deste fato como a ocorrência mais marcante de uma carreira de cinquenta anos. Tão marcante para confessar a sua única irmã:

- Eu nunca me casei, mas algo em mim continua tão ligado ao tal rapaz quanto naquele dia.

Grandes são as coincidências neste mundo. Sábado, dia 23, Marília faleceu por causa de uma úlcera.

Marília tinha setenta anos. Deixa uma irmã, também enfermeira e um sobrinho.

Apenas a irmã entendeu o pretexto amoroso da úlcera de Marília.