FACES MORTAS
FACES MORTAS I (17 MAIO 2024)
É estranho que não seja mais estranha
essa atitude que me mostra a minha amada,
que parecia sempre transformada
de um dia para outro e que tamanha
variedade, assim inesperada
me apresentasse, em verdadeira sanha
de ser novas mulheres... Quanta manha
eu tive de mostrar ao enfrentar cada
dessas mulheres de seu corpo inquilinas!
Mas agora, há dois meses que não muda
e eu só fico a imaginar o que me espera...
Quais novas vastas tricas femininas,
que ao não mudar, de certo modo iluda,
a preparar-me as ciladas de uma fera?
FACES MORTAS II
Acho ser parte da natureza feminina
esse seu vezo de ser tão inconstante.
Apenas me pergunto, em algum instante,
se por deliberação assim se inclina
ou se é inconsciente a malha fina
com que me envolve qualquer nova ocupante,
participando agora da fragrante
vida exterior a que emerge e me fascina.
Só me parece, às vezes, mal saber
quem sou eu e tampouco se importar,
em seu esforço para reconhecer
o novo ambiente e os detalhes do lugar,
que até demonstra em rancor permanecer,
se incauto chego em busca de a beijar...
FACES MORTAS III
É como estranho fora totalmente
para essa nova pessoa dominante,
que me olha de viés, por um instante,
menos zangada do que indiferente,
até que outra informação ingente
aflora nela, em fervor expectante:
"Esse é o nosso marido!" Que alarmante
saber qual brotará desse inconsciente!
E são facetas de uma alma, tão somente,
ou realmente emerge gente morta,
das brumas do passado, suas parentes,
ou amigas de um afeto permanente,
encarnações de antanho, que comporta,
ou meandros obscuros em sementes?
FACES MORTAS IV – 18 MAIO 24
Quem são as almas aqui enoveladas?
É tudo efeito de esquizofrenia
ou personalidade múltipla, que agia
sobre os neurônios de mentes alienadas
ou são antes essas mentes enroscadas
por liames personais, vozes que um dia
relacionaram-se, na mente que assistia
e que as captou, asserpenteadas...?
Será que existem territórios demarcados
nos microtúbulos das redes suas neurais,
cujas fronteiras são mal definidas
ou são só as vibrações descompassadas
de tambores e bombos triunfais:
marchas marciais, porém mal percutidas?
FACES MORTAS V
Outros dirão, a me troçar, porém;
“Não é melhor ter cem noivas em casa,
embora apenas numa cama, em que se embasa
dezenas de odaliscas nesse harém?”
Mas tal suposição é um pouco rasa,
é um só e mesmo corpo a ocupar, também,
é o mesmo cheiro nas narinas que se tem,
podem ser cem, mas numa mesma vaza...
E como já é difícil uma só entender,
ter de adular para se fazer amor
com tal frequência que se desejara
E que dirá desconhecidas convencer,
que não demonstram por mim nenhum calor,
depois que a anterior se deslocara?
FACES MORTAS VI
E ainda existe esse conflito interno,
essa luta por vezes inconsciente,
entre uma personalidade mais ingente
e outra que já está do lado externo?
Quando não há no olhar nada de terno,
até os olhos tem nuance diferente
e se concentra a atenção, plangente,
nessa disputa, que até parece inferno!
Só imagino como seria comigo,
caso outras mentes me quisessem dominar
e minhas memórias até mesmo apagar
e simplesmente a tanto não consigo,
porque meus alter-egos logo dominaria
e a redigir meus versos por igual obrigaria!
FACES MORTAS VII – 19 MAIO 24
Na verdade, até as chamei de vozes mudas,
que não escuto dentro ou fora assim,
tão somente agitações dentro de mim,
essas tendências e propensões desnudas,
sem que experimente lutas mais agudas
e nem recordo tê-las ouvido, enfim,
tentar me dominar até hoje nin-
guém me pareceu, ainda que aludes
a tais mudanças que em mim causei,
pois sou hoje bem diverso do que fui,
ainda que creia que aprendi com a vida
e a mim mesmo aos poucos transformei,
enquanto sinto que a maioria se dilui
e deixa a vida levá-los de vencida!
FACES MORTAS VIII
Mas não me flagro em qualquer conflito,
não sinto em mim caracteres secundários,
os meus demônios se tornaram solidários,
nesse coral que tenho por bendito,
nessa cachoeira que já tenho escrito,
em que se mesclam cientistas e operários,
cada um dos quais a traçar itinerários
de bem diverso rumo a que os incito.
Mas esta saga de versos já sem conta
ainda experimento sem ter discordância,
não me aparece um jovem amoroso,
nem um velho resmungão se me desponta,
cochicham só com alguma elegância,
o que procuro tornar mais primoroso.
FACES MORTAS IX
Mas ela, oh deuses! Mil almas ter parece!
Até concordo que isto seja um exagero,
são facetas, afinal, avatar mero,
que passados alguns dias, logo esquece,
enquanto o nome que ela usa não perece
e não me venha ninguém com lero-lero,
que em diferentes olhares eu me abeiro,
não outra alma que dentro dela desce...
A diferença é real, em seus caminhos:
ou ela busca atender ao seu jardim
horas a fio, ou no sofá se assenta,
a contemplar destinos pequeninhos,
nessa lâmpada quadrada de Aladdim,
em que tanta maravilha se apresenta..
FACES MORTAS X – 20 MAIO 24
E destarte, nunca sei o que esperar,
se ela aparece cheia de energia,
ou se a manhã inteira ela gemia,
de dores múltiplas para se queixar
e se apenas fico, cauteloso, a observar
a senda e de que modo a trilharia,
a estranha luz que em suas vistas brilharia
ou qual o tom de voz que vou escutar.
Não que me dê isto razão para brincar,
as nuances ali vêm de madrugada,
tal qual meninas jogando amarelinha,
cada uma delas por seu turno a aguardar,
nesse abandono da infância bem amada,
em que a criança já morta se avizinha.
FACES MORTAS XI
Porém nem sempre é calmo esse alternar,
parece às vezes uma real disputa,
ela encerrada em distante gruta,
sem que me atreva suas rochas a franquear
e então explode num deblaterar
e usa a menor coisa que me escuta
para pretexto de rancor ou luta,
sem que a si mesma pareça até escutar.
A impressão que então me passa até
é que as palavras nem passam por sua mente,
porém se formam direto na garganta
ou em algum ponto do esôfago tenham sé,
destinadas a magoar pungentemente,
com tal crueza que a alma mata e espanta.
FACES MORTAS XII
Não me parece ser assim toda a mulher,
já convivi com outras diferentes,
menos complexas, talvez mais inocentes,
se é que inocência tem mulher qualquer...
mas quando um beijo, afinal, ela me der,
as malquerenças se apagam, indolentes,
em endorfinas que sei não serem permanentes,
mas que apagam todo amargor e desprazer.
Feroz é então o amar dessa amazona,
se bem seu cinto nunca me outorgou,
a minha hipólita que traz na língua a lança...
que ainda perdura de meu peito a dona,
por toda a mágoa que na vida me causou
no peito que rasgou em acenos de esperança.