KASIPHIA
KASIPHIA I -- 13 maio 2024
é tarde para um sonho. a madrugada
enjambra a pouco e pouco o dealbar.
a noite sai da praia para o mar,
como a maré do sono, em disparada.
é a hora em que, final, a derrocada
me leva para o sono, em baixamar.
já está mais perto da noite terminar
que dos momentos em que pertenço à fada.
as horas vãs do sono eu repudio:
se pudesse, nem ao menos deitaria,
quisera um dia de cento e tantas horas,
em que fizesse mais do que já crio
e em que meu corpo ao porto levaria
que compensasse o sono das auroras.
KASIPHIA II
eu dou aval ao vento que repasse
meus sonhos para as contas de outra gente:
depósitos de mágoa em pix indiferente,
depósitos de luz que me espalhasse.
eu dou aval à chuva, que marcasse
em outras vidas, a mesma brotação
que já viveu em mim, fecundação
inseminada no sonho que me alçasse.
e busco a vida qual receptáculo
em que enjaule esses mares de ilusão,
em que me vista das cores do arco-íris
e me dedico a dedilhar tal espetáculo,
em que não vivo, porém faço tradução
da expressão do olhar com que me mires.
KASIPHIA III
não há foguetes marcando o meu caminho:
perlustro devagar o plenilúnio,
sem esperar reunir qualquer pecúnio,
que a vida exige muito mais que alinho.
pois quanto mais me esforço, em comezinho
labutar sob a luz do plenissólio,
tanto mais em despesas me desfolho:
melhor vivera o meu viver sozinho...
mas hoje em dia, contudo, é impossível
o viver do estagirita ou do ermitão,
pois nem sequer existem mais desertos.
exceto onde o alimento não é possível,
bem pouco duraria essa ilusão,
com a mente e o peito inteiramente abertos.
KASIPHIA IV – 14 maio 24
há pouco a descrever. falei de tudo,
em meus milhares de versos anteriores,
de amor e ódio, certezas e temores.
o mundo é vasto e nele, não me iludo,
as coisas se repetem, neste estudo.
e até microcircuitos interiores,
os chamados "canônicos", seus labores
no cérebro repetem. e contudo,
por mais padronizada, a mente humana
sempre produz algo de surpreendente
e a mim mesmo eu espanto, com frequência,
em meu jeito de agir, que não me engana,
no qual procuro ser independente,
sem me entregar ao domínio da indolência.
KASIPHIA V
não é fácil assumir responsabilidade
por uma vida inteira de fracassos,
por permitirmos que falsos abraços
nos levassem a viver em falsidade.
é bem mais fácil lançar culpabilidade
àqueles que orientaram nossos passos
e nos pearam com outros tantos laços,
para que lhes cumpríssemos vontade.
talvez não seja fácil, mas real
é tal constatação. o treinamento
que nos deram podia ser rompido
e, se antes não o foi, e o véu do mal
prevaleceu em tal comportamento,
fomos nós que merecemos ter sofrido.
KASIPHIA VI
é tarde para um sonho. outro porém
é que o pendão de meu esverdinhado,
que se revela enroscado qual cajado,
avança em samambaias de arrecém.
em meus sonhos descolei dores também,
sonhos macios no caminho partilhado,
que se dividem qual curva de enforcado,
por entre os predadores do azevém.
melhor que sonhos de monocotiledônias,
que só me podem um destino produzir
e enfim não podem conduzir a nada,
sãp essas primeiras florações axônias,
não mais que despertando do dormir,
nessa surpresa do que do chão fui arrancado.
KASIPHIA VII –15 MAIO 2024
assim eu sonho por entre as trepadeiras,
sonho de espinho, talvez sonho de urtiga,
sombra daninha, em floração de intriga,
de permeio às colheitas mais certeiras.
minhas quimeras não são açucareiras,
nem calcilíferas, nem de fruta mais amiga,
nenhuma sonho ou lucro em mim abriga,
nuvens de pó, a ressecar asneiras.
talvez sejam realmente apenas pragas,
relva silvestre, que não dá bom pasto,
apenas forração das pradarias...
sonho epopeias de prateadas sagas,
sonho de amor refulgente enquanto casto,
o amor do amor por vastidões vazias...
KASIPHIA VIII
é tarde para o sonho de uma sesta,
a tarde já se encontra pelo meio,
os sons do mundo abafam de permeio
toda rede neural que então se presta
a me lançar então àquela festa
em minhas cidades de dourado veio,
a que retorno, engodos que não leio
e que não vejo senão na própria giesta,
em que retorno e vejo aqueles rostos,
que saúdam meu retorno em amizade,
que reconheço, porém sem me lembrar.
e quando acordo, meus sonhos já depostos,
eu bem queria não estar nesta cidade,
mas nesse mundo sidéreo do sonhar.
KASIPHIA IX
pois na verdade, não é minha casa só,
há a mansão, a choupana, o alojamento,
encontro as chaves de todas num momento,
nos corredores de argentino pó;
há outras mais antigas, em que o cipó,
das teias de aranha o tegumento,
percorre o teto em singular portento,
mais belo do que as tranças de minha avó
e em cada casa eu descubro a cama,
que ainda conserva meu próprio contorno
e então me deito, sem ter refeição,
embora limpe dos sapatos toda a lama,
antes de me recolher ao leito morno
que existe apenas na imaginação.
KASIPHIA X – 16 MAIO 24
porém será que tudo isso é realidade,
que essas ruas que percorro a cada noite,
às vezes no calor, outras no açoite
de ventos que me rasgam a atualidade,
que essas casas em que durmo, na verdade,
são esses leitos vazios de meu acoite
são esses berços que acolhem meu afoite,
que existam fora de minha fatalidade?
e se esse mundo que percorro à luz do sol
não é só figura de minha imaginação,
correndo à solta por minhas redes neurais?
pois como sinto que me ilumina esse farol,
que me acalenta em tal fascinação,
muito mais vívido que essas fagulhas naturais!
KASIPHIA XI
talvez porque não mais sonho de acordado
e apenas vou vivendo a projeção
de que sou um personagem, de antemão,
só repetindo o papel que me foi dado.
não há espaço para um sonho decorado,
quiçá o que faço é só apresentaçãpo
sobre esse palco de minha projeção,
simples fantoche por cordões manipulado.
de fato, nunca me acontece o esperado,
mui raramente obtenho o que desejo,
mas tão somente o que a vida me oferece.
fiz minhas escolhas, decerto, no passado
e aqui percorro as consequências desse ensejo,
sem que as deidades atentem à minha prece.
KASIPHIA XII
não sei para onde vou, só que cheguei
aonde estou agora, sem alternativa
de outras vidas em similhança viva
das outras vidas que de estulto abandonei
e vejo os outros dias melhores que deixei
amortalhar-se em quimera primitiva,
nessas ondas cristalinas de saliva,
na gelatina dos lábios que beijei
e só as encontro nas esferas desses leitos
que aguardam outra vez o meu contorno
e sobre elas me inclino, lavrador,
a percorrer novamente antigos eitos,
minha semente a depor em ventre morno,
dentre meus sonhos de singular fervor...