SAUDADE COMPANHEIRA
SAUDADE COMPANHEIRA I – 9 maio 2024
Busco, acima de tudo, a lealdade:
que pense em mim primeiro e tudo mais
me seja secundário; e que jamais
me trate diferente, por vaidade,
quando tenha plateia ou por maldade;
que seja sempre ela, qual cristais
translúcidos de assombro e sem fractais
perturbações de humor ou falsidade;
porque, em algum lugar do tempoespaço
existe uma mulher descomplicada,
que eu possa amar, sem medo de incertezas;
descansar a cabeça em seu regaço,
quando minha fronte estiver afebrentada
e diluir-me no frescor de tal abraço.
SAUDADE COMPANHEIRA II
Os corpos depositam em gavetas:
alguns vestidos como para festa,
enquanto outros apenas partem desta
para a melhor, sem ambições secretas.
Ficam os mortos deitados nesta gesta,
presas as bocas com esparadrapo,
as mãos atadas por fitas em fiapo.
Não querem que cometam desonesta
e feia ação de saírem do descanso,
para contarem ao mundo o que viveram,
os malfeitos que fizeram ou sofreram.
Mas os ossos permanecem no remanso:
dentes sem lábios, em seus vãos monólogos,
para delícia dos futuros arqueólogos...
SAUDADE COMPANHEIRA III
Verterei sangue em minha acrobacia
e tomarei os jatos congelados,
para trançar, em cabos reforçados,
a corda-bamba em que marcha minha poesia.
Mas com jatos de linfa retrançados,
eu tecerei a rede de agonia;
quando eu falhar, à morte, que me espia,
enganarei com meus ossos espalhados,
que servirão de apoio, a cada noite
em que a desafiar, trapézio firme,
sob a lona do circo de minha vida...
Quando a plateia sair, no meu afoite,
tentarei sair junto e ouvirei rir-me
a vastidão, sem que me dê acolhida...
SAUDADE COMPANHEIRA IV – 10 maio 2024
Disse Deus: "Haja luz!" E a luz se fez,
como estágio inicial da criação:
o mundo inteiro é Sua imaginação,
tudo é diverso daquilo em que tu crês.
Disse eu: "Haja tinta!" E mês a mês,
os poemas escorrem de minha mão.
Não são reais. Sua significação
depende inteiramente do que vês.
Nós dependemos da imaginação divina,
mas eu dependo daquilo que imaginas:
és tu que pões nos versos teus segredos...
E é essa variedade que fascina:
as mil decifrações a que te inclinas,
enquanto a luz escorre entre meus dedos...
SAUDADE COMPANHEIRA V
"Nos dias de festa de Bordéus se veem,
as mulheres morenas dessa terra,
pisando a seda do solo que ela encerra,
enquanto os dias de Março se mantêm,
quando iguais são os dias e as noites,
lentamente a cruzar pontes estreitas,
que para sonhos de ouro foram feitas,
embaladas pelo vento, em seus açoites..."
E nesse sonho brando de Hölderlin,
que nesta noite eu traduzi assim,
vejo o fantasma do poeta louro,
que fugiu de Bordéus, em seu desdouro,
sem que ninguém conheça exatamente
a razão dessa fuga surpreendente.
SAUDADE COMPANHEIRA VI
Como uma pétala, eu penso nas tuas faces,
desmesuradas de frescor na sua mordida:
tomas minhalma e a levas de vencida,
oh, pétala de flor, na flor que nasces!
Como uma pétala, eu quero que me enlaces,
na doce confusão dessa ferida:
aspirarei em ti, rosa perdida,
esse perfume da rede em que me abraces.
Eu busco em ti o derradeiro orvalho,
acumulado na aurora deste ensejo,
orvalho feito geada em luz de agosto.
E me apresto ao assalto desse talho,
na final busca de sugar-te um beijo,
sobre a pétala vibrante de teu rosto.
SAUDADE COMPANHEIRA VII – 11 maio 24
Preciso comprar meias de algodão,
melhor do que as de lã para meus pés;
meias de náilon não têm as mesmas fés:
causam suor e esfriam o coração.
Eu quero meias de algodão... Chulés
provocam muito menos; ilusão
recobram de minha infância, na emoção
desse conforto antigo; meus bonés,
sobre a cabeça, combinam com essas meias
de algodão do antanho; de alto a baixo
me sentia defendido e a proteção
derivava das mais cinzentas teias
do carinho do inverno, em que me encaixo
mais na saudade, pois pedi sua mão...
SAUDADE COMPANHEIRA VIII
Teu corpo acamparado de nenúfares,
recendendo a carmim, áspera jóia,
sabor de madrepérola e azorrague,
temor de sol, ao som de mil aljofares.
Teu rosto cor de lua, no arrebol,
palidescente e quedo, amora verde,
luz desvario, evanescentes olhos,
rubor de prata e ínclito penedo...
Penhasco em que rebentam malmequeres,
verde sabor de doces pirilampos,
procela azeda de cantar felino,
vil meu desejo em pleno latrocínio,
de macular os figos de teus seios
com a seiva amarga que brota de meus lábios.
SAUDADE COMPANHEIRA IX
O verme do desejo que me atenta
não morreu descarnado pela idade:
por mais que o repudie, sem vaidade,
logo ressurge e em nova voz se aventa.
São essas novas promessas que apresenta:
que se apenas eu me desse à veleidade,
poderia ter abraços de verdade,
ao invés de espasmos de saudade lenta.
Mas eu me prendo à fúria do dever,
não me dou tempo a instante de lazer
e até mesmo da poesia fiz trabalho.
É como se eu quisera castigar
o próprio ideal do sonho a dealbar
e o reduzisse às fagulhas desse malho.
SAUDADE COMPANHEIRA X – 12 maio 2024
Embora eu te possua, meu deleite
é acometido de fulgor masturbatório:
minha explosão em ti é purgatório,
em que minhas culpas escorrem como azeite...
Eu me derramo todo, em longo aceite.
Fica apenas a casca, esse envoltório,
que chamo de meu corpo, o ostensório,
enquanto o sacramento em ti se ajeite...
Minha carne é nada mais que esse sinal,
do visível e do externo que restou,
depois que inteiro me dissolvi em ti.
E o próprio cérebro derramo no final.
Teus olhos são escolhos. Naufragou
o quanto eu era, enquanto te possuí.
SAUDADE COMPANHEIRA XI
Nem todos podem desposar saudade
ou torná-la em permanente companheira;
em geral, a solidão é a derradeira
e a companheira do rumar na soledade.
Mas minha esposa saudade é mais brejeira
e sorri para mim com veleidade,
ela brinca com meus versos, de verdade
e para mim toca viola seresteira.
Ah, saudade, doce rumo de minhalma,
essa saudade que eu amei ditosa,
essa vontade de rever de novo
o nunca-mais de acinzentada palma,
a virgindade da espera deleitosa,
que depois que se foi, não tem renovo!
SAUDADE COMPANHEIRA XII
Ah, saudade, companheira de alecrim,
luz de miosótis, marcela perfumada,,
a xirca rósea de uma esposa amada,
a urtiga verde que restou pra mim!
ah, saudade, ainda te quero assim,
como a geada da manhã, semiorvalhada,
qual sereno de bruma acinzentada,
velha tapera arrimada no sem-fim!
Ah, saudade, minha dama verdadeira,
que nunca, nunca mais me irás deixar,
pelo fundo que encravaste as tuas raízes!...
Ah, saudade, minha velha companheira,
dentro da qual ainda consigo me abrigar,
a cada vez que o coração me alises...