COMPLETUDE
COMPLETUDEI – 5 MAIO 2024
quando uma coisa está feita, não há nada
que se possa acrescentar. está completa,
quer seja uma obra útil ou indiscreta,
é inapagável a ação já terminada.
quando algo está feito, a obra acabada,
como um dia encerrado, não se afeta
poder voltar atrás, por desafeta
tenha sido a visão assim deixada.
a vida é irremediável. só o futuro
pode ser planejado e alternativas
aventadas para muitos imprevistos...
porque esse véu, tomado por escuro,
será erguido por escolhas decisivas,
sobre os atos pelo espírito entrevistos.
COMPLETUDE II
eu vivo em reticência. toda elipse
percorre em pleonasmo mal contido
o meu discurso em versos incontido,
evitando na vida essa silepse.
ponho bloqueios sobre o delta da sinapse
antes de abrir a boca. fui ferido
vezes demais e agora, arrependido,
me refugio em meandro e catalepse.
porém, a mais fiel é a reticência,
em que apenas sugiro o quanto sinto,
dando a entender o meu pesar, somente.
assim eu vivo, novelo de paciência,
nessa metáfora em que tanto minto,
sem revelar desgosto permanente.
COMPLETUDE III
rígida flor, que vive nos teus olhos
e se implode, em fragmento iridescente,
empalando a ti mesma, indiferente
em destruir-te, entranhas e refolhos.
pálida flor, envolta em santos óleos,
na lágrima um fulgor opalescente,
no olhar seco se espelha, duramente,
a incerteza cintilante de mil fólios.
cálida flor, brotando para mim,
depois da deiscência, fria antera,
já semimurcha, em sempiterna entrega.
humilde flor, tornada incerta, assim,
temendo o bote de uma alheia fera,
enquanto o pólen sobre mim se esfrega.
COMPLETUDE IV – 6 MAIO 24
olha, eu sei bem que andas solitária,
como sozinho eu sou. acompanhados
de olhares soturnos, desalmados,
de quem nos deveria a multifária
bênção dos anos compartilhar a vária
gama de luzes e de gestos, recamados
da multidão dos rostos olvidados:
tanta memória apenas ordinária.
pois te proponho ajuntar a solidão
que existe em mim com a tua mais profunda.
dois zeros fazem zero, mas tristeza
se cura com tristeza e encantação,
numa soma severa e então jocunda,
que leva o vácuo a cintilar em sua leveza.
COMPLETUDE V
todo problema tido por difícil
a solução possui simples é fácil,
muitas vezes expressada num tom grácil,
para explodir depois, qual forte míssil.
mas tal explicação simples e físsil
e sem complicações, tão agradável,
infelizmente é errada, no incansável
novelo emaranhado em fio de anil...
a ponta do baraço, por desgosto,
revela mais um nó de confusões,
nessa intricada multidão do pensamento.
porém no amor, que é simples, vê-se o oposto,
pois se geram complicadas situações
pela pura impertinência de um momento...
COMPLETUDE VI
se o preço é alto, prefiro então que amor
me seja assim negado e que o trabalho
venha constante, que o peso desse malho
corresponda a minhas forças e fervor.
mas é estranho que assim seja. com palor,
vejo os últimos seis meses, quando falho
foi o dinheiro: chegou-me como um pálio,
a proteger-me do frio e do calor.
agora que de novo minha energia
é compensada por labor frequente,
vejo que some, qual fugaz portento,
todo esse amor que então me dirigia,
qual se me odiasse ao ver-me independente,
enquanto ela de mim sorvia o alento.
COMPLETUDE VII – 7 MAIO 2024
essa mulher que espero na minha mente
existirá apenas? quiçá, algures
se encontre tal fantasma. ou nenhures,
perdida assim, no meio dessa gente
que passa e que me olha de soslaio,
avaliando talvez um companheiro,
calculando se podia ser parceiro,
numa armadilha em que jamais eu caio.
não são olhares, perfumes ou aquiescência
que assim me atraem. quero é o interior,
que não se vê, a mente e o coração.
por isso vejo, com condescendência,
meu próprio ideal ou fuga do exterior,
como um refúgio covarde na ilusão.
COMPLETUDE VIII
eu tenho a sensação, já familiar,
de ver correr meu sangue nas paredes,
fechando portas e formando redes,
que mais me envolvem quanto mais lutar!
eu busco meu destino marchetar
com jóias puras, cujo valor não medes,
contra a insistência potente de minhas sedes,
de que nada além existe, a suspeitar...
eu chego, neste mundo inconsequente,
a sentir as consequências do menor
de meus atos ocultos em segredos...
pensei em ti achar bem diferente,
mas como me enganei!... foi bem pior:
deixei em ti a carne de meus dedos!
COMPLETUDE IX
porque é ilusão pensar que a solidão
por outra solidão já se completa,
pois quem é solitário mais se afeta
ao ver a solidão de outra ilusão.
e quem por solidão tem compaixão
e da própria solidão se desafeta,
conserva a própria alma ainda incompleta
e não completa a alheia imperfeição.
pois quando a solidão é muito forte
e perto dela nos atrevemos a chegar,
a nossa carne em nacos é arrancada,
sem que por isso melhore de outrem a sorte,
serão apenas dois a se arranhar,
sem que seja a solidão apaziguada...
COMPLETUDE X – 8 MAIO 2024
assim é para o só melhor vantagem
achegar-se a quem não tem privacidade
e que ainda busca da solidão a saciedade,
para encher a si mesma dessa aragem
e abrir espaços em si e dar passagem
a escaninhos de vácuo na verdade,
a recantar do vazio a opacidade
que te dominará igual voragem,
pois assim a encherás de solidão,
até deixar o interior superlotado
das garras duras da gregariedade,
enquanto ela te encherá o coração
com as exigências que tem amealhado
nessa exigência da solitariedade.
COMPLETUDE XI
parece estranho que te fale assim?
é nesse ambiente que os opostos se completam,
duas almas a compartilhar do quanto excretam,
na simbiose falaz desse outrossim.
solidões quais bactérias do intestino enfim,
sem as quais os alimentos se dejetam,
as suas enzimas para o bem te afetam
são como o amor que existe dentro em mim,
que nada vale se for para mim mesmo
e tudo vale se for compartilhado
e assim eu peço de ti o teu enjoo
com a humanidade convivida a esmo
e te darei o meu vazio dourado,
para tornar-te mais leve no teu voo.
COMPLETUDE XII
pois sempre existe no amor esse baraço,
não é á toa que falam “enforcar-se”
com referência ao casamento – é dar-se
algumas artérias em troca de um abraço
e que minha solidão preencha o espaço,
de ti, cansada de à parentela impor-se
de ti, cansada de à multidão expor-se,
enquanto em ti devoro o teu cansaço,
que ínvios caminhos tem a completude:
cada um dá o que tem e também pede
o que precisa para si mesmo completar
mas quem em outro igual assim se ilude,
igual medida que a si mesmo mede,
mais solidão para sua alma alimentar.