NO RIBOMBAR DA MÁGOA / DA INGRATIDÃO / DA ESCUTA
AO RIBOMBAR DA MÁGOA I – 22 NOVEMBRO 2023
Toda lástima costuma duplicar-se,
Especialmente quando for contida,
Tal sofrimento nos leva de vencida,
Remorso ou pena sem nunca afastar-se
Nem é questão de arrepender-se do mal-feito,
Que se haja cometido em longa vida,
O que de fato deixa a alma malferida
É o bem-feito que jamais foi feito.
Quando se pensa no mérito possível,
Qual sobremaneira enfatizam os budistas,
Ou quando esmola se nega sem razão,
Ou quando se evita um elogio merecível
A alguém que se interpõe em nossas pistas,
Um leve aperto a nos deixar no coraçao.
AO RIBOMBAR DA MÁGOA II
Muito depende de nossa formação,
Há quem nos diga que o importante é conseguir,
Outros falam que o melhor é repartir,
Ou nais valorizam nossa colaboração.
Também o ambiente exerce a sua função,
Nem sempre será possível se cumprir
O que a família quis-nos transmitir,
Nesse momento real da decisão.
Ou até se tenta fazer o mais correto,
Mesmo incorreto aos olhos dos demais
E então se perde para a circunstância,
Ou se buscamos o que desperta nosso afeto
Nessa gente que nos prende em seus currais,
Mas nos aplaude ou vaia em cada instância.
AO RIBOMBAR DA MÁGOA III
Mas mesmo tendo agido a vida toda
Tal qual nos programou nossa consciência,
Sempre fica o restolho da aparência
E sua mágoa a nos zombar por toda a roda.
Sempre encontramos o incômodo da moda,
Sempre a impelir-nos com furiosa ardência,
Ou qualquer lei de repelente impertinência,
A repetir-se em permanente coda.
E então a mágoa ribomba em nosso peito,
Seja na ausência do que julgamos ser direito,
Seja na perda fatal de quem se ama,
Mágoa furtiva ou arguta em ribombar,
Sempre a mente e o coração a perturbar,
Que em sua revolta constante nos reclama.
AO RIBOMBAR DA INGRATIDÃO I – 23 NOV 23
Nestes últimos meses infrequente
Mal-estar me acometeu e minha esposa,
Que tem gênio mais de espinho que de rosa,
Demonstrou-se interessada e competente.
Levou-me à médica que atende a nossa gente,
Boa geriatra de formação honrosa,
Que prescreveu-me bateria pavorosa
De mil exames de natureza ingente!
Agora melhorei e novamente
Seu mau-humor retoma o incentivo,
O que não passa de um lugar-comum
E já posso responder-lhe complacente,
“Podes de novo brigar comigo sem motivo,
Para que eu possa pensar em te dar um!”
AO RIBOMBAR DA INGRATIDÃO II
Mas se quero falar honestamente,
Nunca pensei em lhe causar um dissabor
E realmente demonstrei-lhe meu amor
Por tantos anos de companhia frequente.
Talvez lhe tenha dado no inconsciente
Algum motivo afinal de desamor,
Tanta influência do maior vigor
Determinando o que se faz injustamente.
Mas certa vez lhe fiz uma promessa
De sobreviver-lhe por tempo suficiente
Para a honrar com a desejada cremação.
Não é uma coisa de que jamais se esqueça,
Mas grande mágoa sentiria realmente,
Se não cumprisse essa final missão!
AO RIBOMBAR DA INGRATIDÃO III
Talvez de fato ela tenha o pensamento
De que um dia eu possa lhe faltar
E seja ela que deva me cremar,
Mas quanta vez manifestou o sentimento
De ter perdido, com tanto desalento
Tantas pessoas que soubera amar,
Que nova perda não poderia aguentar,
Seu coração despedaçado num momento.
Quem sabe então, ela me cuide mais,
A cada vez que sofro uma aflição,
Por garantia de minha sobrevivência,
Contudo eu penso, com temor demais,
No que faria, na triste solidão
Dos derradeiros anos da existência?...
NO RIBOMBAR DA ESCUTA I – 24 NOVEMBRO 2023
Não é sempre que me vem a inspiração,
Não é o mesmo que introduzir cartucho
No tambor de um revólver, nem eu puxo
Um gatilho para a feitura da canção.
Mas no momento em que começa a redação,
As palavras se alinham e meu bucho
Regorgita poemas, nesse luxo
Que não é dado a todo o coração.
Mas esses versos que escrever decido
Não apresentam a mesma qualidade
Que os que me brotam inesperadamente,
Sem que faça objeção e nem pedido,
Vêm das raízes de minha humanidade,
Lavando os olhos em lágrima contente.
NO RIBOMBAR DA ESCUTA II
Mas o que noto é a intensa qualidade
De antigos versos que revejo de repente,
Cada elemento em encaixe pertinente,
Cada verso a correr em liberdade.
E me indago então se só a vontade
Pode me dar a quantidade onipresente,
Mas que o melhor que faço no presente
Não participa da mesma intensidade.
Afinal, são milhares esses versos,
Que guardo ainda só em seu rascunho
E me pergunto se não devia parar
E simplesmente digitar esses conversos
Em datilografia, mas ao ver antigo cunho,
Vêm-me esse impulso de seu tema continuar...
NO RIBOMBAR DA ESCUTA III
Talvez de fato seja esse o meu dever,
De ir buscar no fundo das gavetas
Aquelas falas antigas mais secretas,
Para ao teclado simplesmente transcrever.
Quanto já datilografei em meu viver,
Essas palavras de expressões diletas
Ou de revoltas deixadas incompletas
Ou de ironia contra quanto possa ver.
Mas sinto as vozes ainda ao meu redor,
A digladiar com suas razões prementes
E me divido nesse sangue de atender
A quantas musas ou poetas sem amor,
Que ainda me enviam, em súplicas ardentes
Que lhes complete o que deixaram de escrever!