CASAS MORTAS

CASAS MORTAS I (6 abr 11)

Todas as casas, após desabitadas,

somente vivem por um tempo mais.

Se não se tornam moradia jamais,

a pouco e pouco morrem as coitadas...

Enquanto permanecem bem fechadas,

ainda conservam dos habitantes, quais

moraram por mais tempo, os velhos sais

dos suores e tristezas derramadas...

As alegrias são menos conservadas,

pois costumam sair pelas janelas

ou carregadas no bolso dos vizinhos,

depois das festas estarem terminadas,

com boa refeição sob as costelas,

bem aquecidos por capitosos vinhos...

CASAS MORTAS II

Nas gretas das paredes, há esperanças,

que dizem ser as últimas que morrem

e de seus forros lentamente escorrem

os gritos esquecidos das crianças;

também conservam as gorduras mansas

das valsas e das marchas o chão forrem,

das mãos que os muros lentamente borrem,

quando se apoiam em turbulentas danças,

guardam andanças pelos velhos patamares,

pois raramente as madeiras são lavadas,

mesmo que deixem as vidraças a brilhar

e ainda conservam os antigos repassares

nas soleiras em que as vozes são guardadas,

depois que as bocas já foram descansar...

CASAS MORTAS III

Já nos pisos as memórias são mais raras,

foram lavados, lustrados e polidos,

ou repintados, talvez submetidos

à troca de parquês em mil aparas.

Reminiscências, mesmo até as mais caras,

foram cobertas com cera e são perdidas,

amortalhadas, varridas e contidas

de seus desejos, loucuras e outras taras...

Mas há lembranças que conseguem se esconder,

ainda assim, abaixo dessas tábuas,

outras imagens soterradas nos porões

de antigamente, para não apodrecer

os assoalhos, ao gotejar de mágoas

que respingaram de tantos corações...

CASAS MORTAS IV – 25 outubro 2023

Outras memórias habitam os banheiros,

quais lembranças revestidas de nudez,

recordações da higiene que se fez,

pasta de dentes, sabonetes... e outros cheiros;

reminiscências nos furos dos chuveiros,

enferrujadas de calvície ou capilez,

nessas torneiras cujas roscas se desfez,

nessas latrinas tornadas em vespeiros...

Mas aquilo que mais lástimas merece

são esses tristes espelhos sem reflexo,

cuja prata em arabescos degradou-se,

lembrando, às vezes, muçulmana prece,

em que somente o grande Deus achará nexo,

depois que deles toda a imagem foi-se!

CASAS MORTAS V

Tais espelhos bem diferem dos de Alice,

que abriam portas para um mundo estranho;

ao contrário, diminuem nosso tamanho

e colocados frente à frente, diz-se

que toda imagem que a visão atice

cada vez mais diminutas em tacanho

esplendor de encolhimento, mostram lanho

de uma infinita negação que de nós risse!

Esses espelhos tristes e rachados,

ao invés de refletir, quase projetam,

não as imagens guardadas dos passados,

mas os vazios que seus íntimos completam,

visões de nadas em tudo amargurados,

a transmitir tal ressentir que nos afetam!

CASAS MORTAS VI

Contudo, ainda que estejam moribundas,

em solitárias paredes de lamento,

essas casas vazias e sem intento,

ainda guardam em si sombras profundas,

ou talvez com pesadelos mais imundas,

a cuja descrição nem sequer tento,

as preces roucas de um rosário bento,

Padre-Nossos, Ave-Marias gemebundas,

rachadas orações por sua reiteração,

nos passos lentos de longa procissão,

são dos cantos das paredes o reboco,

em que se esconde um tótem familiar,

um espírito famélico a chorar

por essa solidão que o torna louco!

CASAS MORTAS VII – 26 out 23

Em certas noites, os pobres solitários

saem às ruas, famintos de esperança,

a flutuar e a adejar por via mansa,

buscando o vago rastro de seus vários

antigos ocupantes (quiçá foram salários

melhorados ou o gozo de uma herança

que permitiram realizar essa mudança)

e em lares moram bem mais perdulários!

Seguem penados em tal busca, a implorar

que voltem, nem que seja a visitar

as moradias que já parecem monastérios

abandonados por decreto papal e caprichoso,

mas só descobrem, em momento pernicioso,

que se mudaram, mas para os cemitérios!

CASAS MORTAS VIII

Algumas vezes, como cães fiéis,

vão ajoelhar-se perante as sepulturas

ou os jazigos de nobres esculturas,

de seus velhos habitantes os quartéis,

mas os espíritos da necrópole, rebéis,

sob a ameaça indizível de torturas,

os expulsam novamente para escuras

vivendas secas em seus vazios cruéis,

em que os Lares e Penates, congregados,

se desfazem aos poucos, abraçados,

cinzas de cinzas que nem foram cremadas,

que não existe um paraíso de lembranças...

Somente presas ficaram as esperanças,

depois que as portas foram aferrolhadas...

CASAS MORTAS IX

Os espíritos das casas se desfazem,

depauperados assim pelo abandono,

afrouxa um prego aqui, sem ter um dono

que novamente o pregue e ali jazem

esses vidros de janelas que descasquem,

os forros a soltar de seu entorno,

correm goteiras a despertar do sono,

sequer os ratos seus ninhos não mais fazem,

indo buscar em outras fontes o alimento,

nada encontrada senão madeira por roer

e quando as telhas racham e se soltam,

chegam os gatos de intenso movimento,

na gula vã de mil ratos a comer,

mas os antigos inquilinos jamais voltam...

CASAS MORTAS X – 27 outubro 2023

Chega um momento em que até os fantasmas,

que se amarguram em seu antigo ambiente,

deixam de lado seu retornar frequente

e se transferem, com todos seus miasmas,

para outro plano, que conceber nem pasmas,

onde se encontram novamente com sua gente,

mesmo que esteja apenas existente

nesse casulo invisível aos quiasmas (*)

e fica a casa inteiramente só,

a fachada se acinzenta lentamente,

arbustos brotam nos telhados e na frente

e o coração se aperta de dar dó,

em tal contemplação da decadência

de um passado que perdeu toda a opulência.

(*) Núcleos cerebrais da visão.

CASAS MORTAS XI

Mas nem todas tem igual percepção,

algumas casas lentamente vão ruindo,

o lucro do aluguel ainda é bem-vindo,

mas não compensa sua restauração;

há um movimento por sua preservação,

o seu caráter histórico sentindo,

a fachada em art-nouveau que se acha lindo,

mas chega a turma para a demolição,

rapidamente os tetos retirando,

as janelas e portas arrancando

(talvez se possa aproveitar o material),

as paredes se derrubam e o esbulho

é carregado em caminhões de entulho

e a casa morre num estertor final.

CASAS MORTAS XII

Fica o buraco assim contra a calçada,

como uma falha permeio à dentadura,

a chuva cai nos pisos sem ternura

e as ervas crescem na terra assim mostrada.

Sempre é possível que seja levantada

uma nova moradia e essa perdura,

talvez por gerações, até que a dura

realidade também a torne abandonada.

Mas outras vezes, só perduram os espaços,

durante anos, rodeados pelas redes

ou por tapumes que cobrem o arrebol,

mortas as casas, desfeitos os seus laços,

ficam somente os alicerces das paredes,

em tristes cores desbotadas pelo Sol...