RESTOLHOS DA NOITE
RESTOLHOS DA NOITE I (8 mai 11)
Carrego os sons da noite na mochila.
Alguns adormecidos, sonolentos,
outros exaustos, em finais momentos,
outros ainda em bem desperta fila.
E no retorno ao lar que hoje me asila,
vou ao escritório, cheio de portentos...
Abro a mochila devagar... Sedentos,
saem os sonhos dos outros, em esquila
para os próprios desígnios. E os prendo,
entre meus dedos e um a um esmago,
de modo a que penetram toda a pele.
E os sentimentos alheios assim rendo,
fila por fila e para o peito trago
dor que me aqueça e alegria que enregele...
RESTOLHOS DA NOITE II
Por isso eu gosto de caminhar às noites:
porém bem longe das aglomerações,
quando perdidos por entre multidões,
os sonhos se estropiam sob açoites
de impudicas gargalhadas ou acoites
ou simplesmente pelas exalações
desses drogados, intoxicados, beberrões
ou dos cigarros fumados em trasnoites...
Prefiro mais os sonhos assustados,
que choramingam à beira das calçadas,
cujos donos em carros embarcaram...
É a esses que darei os meus cuidados,
o albergue das mochilas transportadas
sobre minhas costas, que já tanto suportaram...
RESTOLHOS DA NOITE III
Está claro que alguns, fracos demais,
não sobrevivem dentro de meu peito.
São longas caminhadas nesse eito,
e alguns sonhos acotovelam seus rivais.
Existem sonhos recolhidos de afinais,
dos namorados brigados por despeito,
dos amigos separados por mal feito:
reconciliar-se não quererão jamais...
E assim, nesse embornal feito de vento,
que trago às costas, alguns se pisoteiam,
se arranham, se esfolam, se tapeiam...
Enquanto os guardo sem lhes dar alento
e os encontro com profundos ferimentos
ou padecendo de graves sofrimentos...
RESTOLHOS DA NOITE IV – 16 OUT 2023
Assim, quando em meu lar os esvazio,
por sobre a mesa ou pela escrivaninha,
certos sonhos aumentaram sua mesquinha
duração nessa mágoa de seu cio,
às custas dos demais, a sangue frio,
e como a madrugada se avizinha,
quando a Lua deixará de ser rainha,
provavelmente serão estes os que crio...
Os sonhos que eu encontro moribundos
vou deitar de meu catre nos lençóis,
e com o poncho os cubro, na esperança,
de que recubram os rostos rubicundos
dos sonhos bem nutridos por faróis
sobrevindos de seus tempos de criança.
RESTOLHOS DA NOITE V
Mas os deixo a descansar, caso retornem
a uma vida mais ou menos pura;
é para os outros que a atenção mais dura,
esses sonhos que novéis imagens formem;
muitos deles, certamente, têm doçura,
agridoçada no abandono em que transtornem,
mas cuido deles, para que enfim me adornem
com verdes versos de mais doce amargura;
porém nunca saberei exatamente
de onde vieram os sonhos do bornal,
alguns, quiçá, sequer serão humanos;
por isso é que redijo, complacente,
amor ferido e notícias de jornal
ou amor correspondido em graus insanos.
RESTOLHOS DA NOITE VI
Eu junto os sonhos com o bater do coração,
recolho as sístoles em frascos de cristal,
entre óleo grosso de lamentos, afinal,
para os pingar gota a gota, em compaixão,
pois esses sonhos revoltados de antemão,
abandonados sem pena a seu fanal,
ressecamento ao calor mais estival,
congelamento em um inverno sem perdão,
torno em emplastros com a respiração
que assopro sobre as formas imperfeitas
e assim não morrem de pneumonia;
e após recuperados, me dão inspiração
para estrofes cuidadosas e escorreitas,
mesclando o pranto com drágeas de alegria.
RESTOLHOS DA NOITE VII – 17 outubro 2023
Somente após dou atenção aos mais fraquinhos,
que deixara a repousar no travesseiro,
sob meu ponchode lã crua, interesseiro
pela ternura que ainda guardem os mesquinhos,
porque eu sei que foram eles, pobrezinhos,
os mais gentis e frágeis a que abeiro;
foram sonhos mais egoístas que, primeiro,
os esmagaram nos mais escusos escaninhos
que guardo nalma, após os recolher,
sufocados pelos dotados de mais porte
e que me inspiram os poemas mais cruéis,
mas se este esforço os fizer sobreviver
e os retirar da coma dessa morte,
talvez me forjem estandartes e broquéis.
RESTOLHOS DA NOITE VIII
Enquanto os outros descansam, me dedico
a esses tristes infelizes rejeitados,
sonhos nutridos por excluídos, renegados
por um capricho qualquer, que então medico;
cataplasmas de minhalma lhes aplico,
faço ataduras com o pano dos pecados,
uso band-aids de paixão se estão picados,
dou-lhes meu sêmen e enfraquecido eu fico.
Abrem os olhos, assim, a pouco e pouco
e me contemplam com pupilas esgazeadas,
não me conhecem, afinal, que descartados
foram um dia de um outro peito louco;
ponho compressas nas testas febrentadas,
seus pesadelos por mim sendo afugentados.
RESTOLHOS DA NOITE IX
Alguns mesmo se recuperam plenamente
e brincam pelo chão, embora os gatos
venham manhosos e famintos, sem recato,
por mais que à farta os alimente diariamente;
mas adoram tais brinquedos, cruel gente,
indiferentes a fatos ou a boatos;
então fecho meu ambiente aos insensatos,
até que os sonhos suspirem mansamente
e voltem a brincar, contando lendas,
desempenhando os papéis que desejaram,
mas que seus criadores lhes negaram;
mantenho a creche das esfinges e legendas,
nutrindo assim, à proteção das feras,
esse meu frágil rebanho de quimeras.
RESTOLHOS DA NOITE X – 18 outubro 23
Mas outros há que permanecem mais dolentes, desalentados, flébeis, enfermiços,
só se recordam dos termos mais castiços
e estiolam aos poucos, sob as lentes
avaliadoras dos olhares mais frequentes,
sem saber como seriam em seu viços
se poderiam sobreviver sem meus atiços,
conscientes de vigor, mais retundentes;
alguns dos sonhos fortes, já acordados,
os perseguem quando saio do escritório
e no retorno já os encontro enlanguescidos;
já não adiantam mais os meus cuidados,
os amortalho de ilusões como envoltório,
talvez um dia sejam por outrem concebidos.
RESTOLHOS DA NOITE XI
Maugrado meu, alguns nunca ressuscitam,
sobre meu travesseiro emurchecidos;
eu os separo, pobres senhos destituídos,
que sobre a mente nada mais me incitam;
assim coloco os olhos cegos que me fitam
em um almofariz, mais encolhidos,
a que acrescento os outros falecidos,
que por tudo o que fiz sequer se agitam;
depois os môo, novamente, com o pilão,
pingando lágrimas da pena mais sincera,
mais o suor que lentamente escorre
e os converto assim qual em macio pirão,
com pitadas de mel, gotas de cera,
que servirei a cada sonho que não morre.
RESTOLHOS DA NOITE XII
E os sonhos maus, nutridos desta forma,
para sonhos mais gentís são abrandados,
pelas carícias de meu peito acalentados
e sua malícia a pouco e pouco se reforma,
a sua revolta sem demora desconforma
e comigo trabalham, conformados
a poemas produzir aveludados,
mesmo que às vezes se insurjam contra a norma;
e os sons da noite, captados na mochila,
já em meus versos não serão apenas ais,
nem tampouco repletos de euforias,
pois tais sonhos alheios que a alma asila
e que precisam de tuas ânsias naturais,
irão mostrar-te só as visões que mais querias.