MUTUALIDADES

MUTUALIDADES I (2008)

Bem lá no fundo eu sei que nada queres

de mim, exceto o preito de um momento;

eu já te dei completo o sentimento:

nada mais resta para teus quereres,

talvez te desse mágoa e malmequeres;

talvez te desse pranto em rendimento,

como penhor de teu investimento,

mas só o aceitarás quando o quiseres;

na verdade, eu bem sei não queres seja

o meu amor de cobrança malfazeja,

porém um pouso firme e duradouro;

mas nesse dia, talvez, que teu ansioso

coração enfim quiser um paradouro,

sabes mui bem onde acharás repouso...

MUTUALIDADES II

Sei bem não pensas mesmo merecer

deste amor que te devoto a imensidão

e, quiçá, nem mereças devoção

do sideral fulgor do meu querer...

Mas é que, por meus olhos, vou beber

essa tua imagem, em pura sem-razão,

tão escassa como é a apresentação

dessa chuva em acalmar o meu sofrer.

Sinto-me seco, vivendo em doce ausência:

cresta-me o vento todo o pensamento

e sombra ou nuvem nem me chegam perto;

temo que um dia hás de chover benemerência

sobre meus ossos mudos de um momento,

sem que mais possa reflorir o meu deserto.

MUTUALIDADES III

Líquida flor que o sangue me alimenta,

com seu olor sutil, que me atormenta;

líquido amor que a alma me sustenta,

nesse terror que busco e me contenta;

líquido odor que de teus seios brota,

com sons de treva e luz e me derrota;

líquido amor que mais amor conota,

no seu fervor de entrega, em dor ignota;

líquido sexo que vejo em teus refolhos,

flor carmesim de tessitura pura,

canópia que me atrai, em sonho antigo...

Como me afogo, perdido em tais escolhos!

Líquida flor de brotação madura,

na taça líquida desse teu umbigo!...

MUTUALIDADES IV – 4 outubro 2023

Chego a ter medo, agora que é gentil,

depois de tantos malentendidos no passado.

Sempre atribuí a seu corpo atribulado,

às dores que sentia, esse buril,

com que me perfurava; essa sutil

certeza em cada golpe; bem marcado

o alvo pretendido; bem cortado

mais um fiapo de amor, em prazer vil.

E agora, bem me custa restaurar

essa confiança que perdi, inteira,

por tantas vezes que me foi maldosa.

E eu sempre com paciência, a demonstrar

o amor sentido um dia e a derradeira

gota de fel que ainda me serve, generosa...

MUTUALIDADES V

Eu que nunca demonstrei amor egoísta,

porém sempre busquei cumprir minha parte

e até mais do que ela e assim, destarte,

nunca fui galo de garbosa crista,

cocoricando a glória da conquista,

como se fosse encarnação de Marte,

em busca de prazer de que me farte,

sem distribuir de gozo a menos pista;

eu que sempre mais dei que recebi,

pensei de amor com equanimidade,

não foi a mim que quiseram, de verdade,

mas a segurança que sempre retribuí

e mais o afeto e a total consolação

de recebê-la em plena aceitação.

MUTUALIDADES VI

Porque, na verdade, o homem que se casa

busca ter vida mais regular e estável,

certo acesso sexual incontestável,

que no carinho doméstico se embasa,

mas caso isso te pareça coisa rasa,

somente pensa, se fores razoável,

que nesta sociedade interminável,

amar é a paga a se esperar de cada vaza

e, por exemplo, se houver separação,

espera-se do homem que ainda pague,

anos a fio, o preço da pensão

e não falha quem primeiro bem indague

as garantias de sua prospecção,

antes que seu coração de amor se alague.

MUTUALIDADES VII -- 5 out 23

Por isso os ricos dispõem de advogados

para o traçado de um pacto antenupcial,

por maior sendo o amor desse casal,

que garanta quais proventos a ser pagos

depois de uma eventual separação,

pois quantas trocam o corpo pela eventual

de seis meses concessão de sexo casual,

pelo infeliz que casou-se por paixão

e é claro que o contrário também há,

mas bem mais raro e mais como um impulso

para subir na vida sem esforço,

sendo exceção a regra desse escorço

e francamente, já me dói o pulso

deste soneto que sei bem que outro me dá!

MUTUALIDADES VIII

Vou pôr de lado, portanto, o que fizeram

ou deixaram de fazer os outros mais;

corram de mim os versos naturais,

não sei de fato o quanto outros quiseram;

eu só sei o que meus olhos não puderam

se desprender desse teu peito em ferros tais

que não desgastem no nunca e no jamais,

e com as mais longas raízes se firmaram.

Eu só sei que em mim se enraizaram

e me fizeram escrever versos de prata

e minha língua recamaram de ouro,

muitos talvez de tolo me chamaram,

contudo amor para mim tem longa data

e não se esgota nunca o seu tesouro.

MUTUALIDADES IX

Pouco me importa que mais eu tenha dado

que recebido de carinho, já que tudo é relativo,

se por um beijo teu somente eu vivo,

sinto-me pago e assim bem recompensado,

pois sempre soube apreciar teu descuidado

olhar casual, esse frescor furtivo,

esse golpe de vento apenas frívo-

lo que teus cabelos tenha levantado.

Quanto me vale a luz de teu sorriso

que macula doces rugas em tua face?

Quanto vale a visão de teus mamilos

ou a saliva que brota de teu riso

ou a fugidia expressão que se estampasse

em teus olhos, como trigo nos seus silos?

MUTUALIDADES X – 6 outubro 2023

Nossa vida é um costurar de mil momentos,

alguns vorazes, outros enciumados,

alguns bem tolos, ainda outros descuidados,

esses instantes de sagazes sentimentos.

Quanto vale administrar intimamentos,

por mais que sejam mal interpretados,

quanto valem os milagres abraçados,

por mais que sejam falhos julgamentos?

Quanto vale esta carne do meu lado,

revestindo essa alma que se esconde,

revestida de caprichos e de fitas?

Quanto vale o coração descompassado

de amor tão grande que nem se sabe onde

vá se ocultar sob o golpe das desditas?

MUTUALIDADES XI

Como saber quanto valeram para ela

nossos gestos de amor, nossos carinhos?

Existe uma escritura em que os espinhos

some em partidas dobradas, bem singela?

Que valor tem a paciência de atendê-la,

quando se quer queixar de seus caminhos

ou a atenção que dá a seus filhinhos,

que nossos são, sem numa noite tê-la?

Qual o valor de uma longa companhia,

desses gestos pequenos e apressados

ou das vezes em que disse quanto a amava?

Que valor tem tanta coisa em que se cria,

sem importância, em momentos já passados,

essas mil coisas sem valor que se estimava?

MUTUALIDADES XII

Pois tudo é feito de mutualidades,

não há tique que exista sem um taque,

como o retorno aos pés após um baque,

esses mil pingos das eventualidades,

que mal se importam na feira das vaidades,

muito mais que a cobrança que se saque,

muito mais que discussão em que se ataque,

também momentos de iguais intimidades,

essas trocas cambiantes de emoções,

esse arco-íris que transcende o sexo,

essa presença sempre lado a lado,

em que de fato se enlaçam corações,

em que é a vida da outra que traz nexo

a cada instante do amor compartilhado.