PSICOFAGIA I a XII
PSICOFAGIA I (2004)
Pensei um dia conquistar tua alma...
Sem mais pensar, logo en treguei a minha,
Azul e floralmente, em comezinha,
Bancária transação, tranquila e calma,
Que pela tua seria substituída,
Alma por alma, miséria por riqueza,
Tristeza por confiança, vagrança por certeza,
Beleza a replantar na alma dorida.
Mas como essa tua alma é facetada!
Nunca me deste sequer um fragmento,
Por todo o meu esforço, por tudo que sonhei,
Mesmo que se tivesse mostrado devastada,
Tua alma foi egoísta, tragou-me de alimento,
Sem nada retribuir por tudo que lhe dei.
PSICOFAGIA II
Assumo a culpa. Fui eu que ofereci
Entregar-te minhalma, assim de graça...
Esperava beber da mesma taça,
Mas estava vazia... e me perdi...
Tentei beber de tua alma toda a jaça,
Mas só com vácuo me fortaleci.
Talvez melhor me fosse: não bebi
Tristeza ou desaponto de outra raça...
Não sei se não quiseste que eu bebesse
Para não me transmitir tua depressão
Ou se foi por mais egoístas sentimentos,
Mas não negaste que eu te oferecesse
O líquido incolor de minha paixão
E o licor sem sabor dos pensamentos...
PSICOFAGIA III – 17 junho 2023
Que sabor terá tua alma, caso a coma?
Será de flor ou de nota musical?
Será talvez de tamborim de carnaval
Ou o gosto da emoção que venha à tona?
Será que esse ressaibo que ressona
Teria uma cor de espectro natural
Ou teria cheiro de cor tão virginal
Que meu olhar já nem sequer a toma?
Que sabor terá essa tua alma na minha boca?
Qual sobre a língua será a sua textura,
Qual sensação a provocar no meu palato?
Qual som terá tua alma quando espouca
Contra meu labirinto em dança pura,
No mais estranho e permanente fato?
PSICOFAGIA IV
Que som terá tua alma quando a beijo?
De que forma ela estala contra a minha?
Terá o tinido da coroa da rainha,
Que só desliza, enquanto não a vejo?
Que som terá o ósculo do ensejo,
Quando se adensa assim e se avizinha,
Trançada contra mim na mesma linha
No farfalhar que mostra em leve adejo?
Que som terá tua alma, quando a abraço?
Um roçagar igual que o de um vestido,
O palmilhar dos pés por sobre a grama?
Que som terá a maciez do teu regaço,
Fundido ao meu em um só espaço unido,
Qual um acorde que toda a escala inflama?
PSICOFAGIA V
Qual é o cheiro que tua alma me trará?
Seria um desses com odor de santidade
Quando a tomar nos braços, em verdade,
Qual redolência que me perfumará?
Teria um perfume de angelicidade,
Ou mais humano às narinas marcará
E um odor mais sexual me escorrerá
Garganta abaixo que a mente deixe em saciedade?
Qual o anel benzóico que trescala
Nos feromônios que provêm de ti?
Ou essa tua alma é feita da inodora
Sutileza que todo o crânio me avassala,
Sem perceber o que me chega ali
Antes que o odor se esgote e vá embora?
PSICOFAGIA VI – 18 junho 2023
Podem meus dedos sentir tua alma ao toque?
Nem digo os dedos da carne, mas os leves
Filamentos de minhalma, em instantes breves
Tua alma a seduzir no abraço desse enfoque?
Teria tua alma botões, em que se emboque
Cada tentáculo, quais gotas de neves?
Ou fechar-se para mim achas que deves
Para somente abrir se a alma tua me invoque?
Caso minhalma seja asim tão imaterial
Como sinto ser a tua, bastará um só espaço
Sem seguirem o domínio das leis da Natureza...
E se a dupla alma também for imortal
Eu sempre a guardarei num vasto abraço
Dessa inconsútil e imaterial infiniteza...
PSICOFAGIA VII
E no final, poderia minhalma ver a tua?
Quais os olhos que possui o perspírito?
Olhos nos olhos terá algum espírito
Que contemplar possa tua alma toda nua?
Qual a visão que nessa vista estua?
Qual o olhar que sobre o olhar recai?
Qual o reflexo que de tua alma sobressai
Quando a alegria desce e a sombra amua?
Que coisa cristalina é essa saudade
Que sinto de tua sombra amarfanhada!
Até que ponto partilharias lealdade,
Ante a visão de tua própria alma requestada?
Poderemos um ao outro, em realidade,
Ver como sombra o que de fato é nada?
PSICOFAGIA VIII
Quem sabe cada alma traz antenas,
Que se tocam bem de leve, mutuamente,
O anímico conteúdo ali presente,
Neste toque de inconsútil tom apenas?
Só inspirado nestas breves cenas
Em que uma alma noutra alma complacente
Se mistura homogênea e impermanente,
Até que minha presença enfim condenas?
Igual que abelhas que uma só alma compartilham
E se tateiam, para preencher os seus vazios,
Em seu palpar de antenas insistentes,
Quiçá as almas uma a outra encilham,
Nesses liames da vastidão dos brios
E comunicam seus anseios mais prementes?
PSICOFAGIA IX – 19 jun 2023
Quando minhalma a tua toda então devoro
E quando a tua a minha, em troca, me consomes,
Não sobra nada de mim que não me tomes,
Não resta nada de ti que eu não adoro.
O próprio âmago de tua alma assim defloro
E o pleno seio de meu peito assim me comes,
Não sobra nada de mim que tu não domes
E parte alguma de ti existe que eu deploro.
Sinto-me um só contigo nesse beijo,
Em que as bocas não se tocam na verdade,
Em que todo o meu egoísmo então aleijo,
Ao te possuir na mais plena castidade,
Que aos dois pertence a magia desse ensejo,
Que nada dura, mas dura em eternidade.
PSICOFAGIA X
É o que mais quero, esse canibalismo,
Com suas nuances de sutil autofagia,
Alma na alma, total assim psicofagia,
Mente na mente, em duplo solipsismo.
Na comunhão irreal de nosso autismo,
Entranhado cada qual em quanto cria,
Na subjacente inspeção o que jazia
Na mescla mais generosa desse egoísmo.
Quando tiro de ti tudo o que posso,
Em que tiras de mim o quanto tenho
E quanto mais eu tenho, mais te dou,
Que o amor ideal é o mais profundo poço,
Tudo se entrega no maior vigor ferrenho
E estás em mim igual que em ti estou.
PSICOFAGIA XI
Pois foi isso que propuz e te assustei,
Com minha fome inútil te espantei,
Por tanta ânsia só mais te afugentei:
Dei-te minhalma, mas nada seguraste.
Foi bem menos sutil o que buscaste,
Foi para algo material que te lançaste
E nesse meu martírio nada achaste,
Senão a imensidão que te prostrei.
Contudo, o grande amor que tu querias
Não era amor da alma, mas menor,
Antes querias para a vida um companheiro
E eu contentei-me com o que me oferecias,
Por mais que ansiasse por esse amor maior,
Que a alma consome em sonho derradeiro.
PSICOFAGIA XII
O tempo passa e assim devora o material,
Que todo amor terreno é amor mortal
E não perdura para a vida inteira,
A demonstrar-se enfim coisa banal...
Uma amizade fica, em derradeira
Cobrança mútua da jóia seresteira,
Que era vidro, afinal, e não cristal,
Embora os dois trilhassem a mesma esteira.
Mas aonde foi meu sonho cintilante,
De alma contra a alma, em visão louca,
Que eu julgaria para sempre perdurar?
Ficou-me só a substância do inconstante,
Essa sereia formosa -- e de voz rouca,
Com quem convivo, mas não pode me afogar.