ÓCULOS DE FARINHA 1/12
ÓCULOS DE FARINHA I (29/10/2009)
Caminho diariamente pelas cinzas
que trilharam meus pais e em que se misturaram.
Não vejo rimas para a cor... Quem sabe,
rimarei cinzas apenas com o gris.
Também um dia, nessas brancas cinzas,
eu mesmo mesclarei. Verei que andaram
sobre mim quem a vida agora cabe
e subirei feito pó a seu nariz.
Talvez, como os fantasmas do passado,
(que herdeiro me elegeram sem consulta)
a algum escolha para soprar versos,
que marchará, o andar descompassado,
amarfanhado do sonho que o indulta
do dever de povoar de cinza os berços.
ÓCULOS DE FARINHA II
Eu sei que morro e, às vezes, até quero.
É bem provável que até acolheria
a ceifadora que hoje a mim viria,
se indolor for o trânsito que espero.
Difícil é a vida, dentro da qual me gero,
no mesmo ramerrão, dia após dia;
nem lentas mortes eu desejaria,
mas extinguir-me em pleno reverbero.
Queria ser um Doppler: ressonância
que me transformaria em eco e onda,
apenas um zunido em que me esgoto,
translúcida minha nuvem de impedância,
no quântico ondular da mesma ronda,
em que ao magnetismo me devoto.
ÓCULOS DE FARINHA III – 18 Maio 2023
Eu sempre busco, ao menos um pouquinho,
manter-me original. Bem sei que tudo
que havia de ser feito ou de ser dito
já o foi, na longa estrada que passamos.
Sou forçado a seguir igual caminho,
nessa trilha de ossos. E, contudo,
sempre há uma coda ou um refrão bonito,
nessa flauta de tíbia que assopramos.
Já antes afirmei: para ser original,
não é o que se diz, porém o como:
são as hemácias que colorem o poema;
não basta uma guirlanda senoidal
de sístoles e neurônios, mas eu somo
meus leucócitos do sangue ao velho tema.
ÓCULOS DE FARINHA IV
Porém me sinto cada vez mais deslocado,
nesta época em que há tanta inversão:
os deficientes é que louvados são,
enquanto o inteligente é desprezado.
Na verdade, já estou acostumado:
desde menino que sofro rejeição:
sempre fui diferente, com razão,
pelo pecado de ser superdotado.
Até hoje, se me olham com respeito,
bem lá no fundo, não me aceitam totalmente
e quanto faço, não traz admiração.
Bem ao contrário, detecto algum trejeito
de malícia e de desprezo nessa gente,
que preferia ver-me dentro de um caixão!
ÓCULOS DE FARINHA V
Já estou morto e enterrado de algum modo.
Meus dedos coalescem de além-túmulo.
Minhas cinzas se espalharam, mas o acúmulo
de memórias e lembranças trago a rodo.
Crio dedos de poeira, em meu engodo,
para escrever nos vidros. Tenho estímulo
para deixar teu nome em cada cúmulo
que o vento sopra pelo céu. E o lodo,
em vez de passos, te mostrará minha face,
não torturada, nem alegre, mas contida,
a demonstrar que controlo o turbilhão.
Mas é somente meu rosto que renasce,
em dedos de água a te banhar despida
ou que em teu sangue te beija o coração.
ÓCULOS DE FARINHA VI – 19 Maio 2023
Envolto em pensamento, marcha Deus,
na polvadeira imensa da matéria.
E a cada passo, a consequência é séria:
surgem estrelas e a Seus pés crescem os céus.
São universos revelados nesses véus
de mil posteridades, nessa egéria
meticulosidade aleatória,
que multiversos distribui aos léus.
Nos quais constelações, assim minúsculas,
conscientes de si próprias e inocentes,
se refletem no arrancar do malmequer.
E todos somos tais gotas arenícolas,
que escorrem em contínuos diferentes,
para forjar os mundos que se quer!
ÓCULOS DE FARINHA VII
Forjamos mundos no interior das mentes
a cada vez que em sonho mergulhamos,
mas o fazemos ainda mais se devaneamos,
certo controle a encontrar nos entrementes,
enquanto mil impressões circunjacentes,
mal delineadas, nesse sonho colocamos,
romanceados, os limites ampliamos,
nessas imagens de vastidões frequentes.
Mas outros mundos criamos no pensar,
sem que o mundo exterior os influcencie;
alguns os guardam para si no seu egoísmo,
enquanto outros são lançados a cantar,
entre os dedos a farinha que se crie
dos sonhos mortos em cinzas de altruísmo.
ÓCULOS DE FARINHA VIII
Porque, no fundo, nós somos Deus também,
nessa lustrosa fantasia de arlequim,
cada um de nós a ornar seu camarim,
que bem ou mal, assim de nós provém
uma parte da criação que o mundo tem:
os nossos dedos são o trampolim,
as nossas línguas tinta carmesim
que o universo encaram sem porém,
pois cada um reinventa seu universo,
em seu manipular da polvadeira
que nos legaram nossos ancestrais
e este mundo se preenche mais diverso
conforme a seriedade ou a brincadeira
com que os moldamos à luz dos afinais.
ÓCULOS DE FARINHA IX – 20 Maio 2023
São nossos olhos lunetas empoeiradas
com o que revemos em nosso embaciamento,
todo o Universo a encarar pulverulento
em seu fulgor de lembranças esmagadas
e retraçamos aqui pequenos nadas
e grandes muitos já somamos num momento,
são mil estornos e cem aditamentos,
que corrigem nossas velhas alvoradas
e só por isso esse meu mundo não é o teu,
nem o teu mundo jamais será o meu,
cada um o cria por seu manejamento
e mesmo as páginas de argila do passado
vão cambaleando sempre a nosso lado
até o instante final do esmagamento.
ÓCULOS DE FARINHA X
Pois também nós somos feitos da farinha
modelada por nossos pais e avós,
com a poeira no pilão dos bisavós,
todos criados pela mesma ladainha
que pronunciavam no pulsar da linha,
cada fantoche amarrado nos seus nós,
alguns bem feitos ou de feitura atroz,
dependendo da destreza que se tinha
e em nossos ossos o sangue se aglutina,
cada um de nós tem de seus mortos a medula,
todos marchamos no deserto que formaram,
seja pecado original, quer simples sina,
nunca seguiram dois a msma bula
quando nossos bonecos projetaram.
ÓCULOS DE FARINHA XI
E na argila desses ossos empilhados
fomos por eles assim enrodilhados,
cada qual em seu próprio diorama,
manequins representando o mesmo drama
por cujo texto foram destinos marchetados,
sobre os quais a marchar descompassados
nossos passos a rufar qual um tambor,
sobre as costas de cada antecessor,
até que ele desapareça de repente
e então nos vemos já na linha da frente,
nesse caminho dos ossos calcinados
e vamos sendo aos poucos alcançados
pelas estrelas a cair em meteoros
e pelos ventos que ainda sopram velhos coros.
ÓCULOS DE FARINHA XII
Assim me vejo a palmilhar a trilha,
com alguidares de farinha nos meus dedos,
ainda os mortos me assompram seus segredos
e o sangue deles se derrama na minha bilha
e quanto escrevo de minha mente nada é filha,
cada poesia é um vento em arvoredos
ainda moldando a farinha de meus medos,
meus mil espectros a remoer a pilha,
essas miríades de malfadados escultores,
os literatos, os cientistas, instrutores
que me confiaram a graça dessa herança
e com ela a vastidão sem liberdade
de transmitir à nova humanidade
os velhos sonhos insondáveis da esperança.