TRILHA DE SONETOS XCII - "MAL SECRETO", DE RAIMUNDO CORREIA

*A IRA*

"Se a cólera que espuma, a dor que mora"

No espírito imperfeito, angustiado,

Corrói seu coração... sem ir embora...

E ali está num peito camuflado.

Entrega-se num quarto encarcerado,

Sem memorar a doce paz de outrora,

Com um olhar de vidro, ensanguentado...

Não dorme a criatura até agora.

- Oh, sorte má! Delírio triste! Oh, chaga!

Quando se instala n'alma não se apaga,

Lançando a essência, negra e langorosa,

Que, logo, cresce e toma o ser, impuro,

Num triste contubérnio com o escuro,

"Em parecer aos outros venturosa!"

Ricardo Camacho

*ANJOS E DEMÔNIOS*

"Se a cólera que espuma, a dor que mora"

em sua infinitude mal dormida;

se o pranto ainda inunda a sua vida

e insones noites tristes a apavora.

Talvez o instante seja, então, querida,

de ponderar que enquanto você chora

minha alma, aqui, também está sofrida

e a dor da despedida me devora.

Bem sei que tenho em mim algum defeito

mas nem por isso a vejo no direito

de impor-me a culpa inteira, e dolorosa...

Não busque em mim o santo ou pecador,

e, creio que erras mais ainda, amor,

"Em parecer aos outros venturosa!"

Edy Soares

*TRISTES SEGREDOS*

“Se a cólera que espuma, a dor que mora”

no fundo da alma (ainda ria o rosto)

desde o passado morto e já deposto,

pudesses esquecer, e sem demora,

então talvez, vivesses teu agosto

disposta ao novo amor que revigora,

à mélica esperança de uma aurora

e aos cânticos de luz ao sol deposto.

Mas não esqueces, antes alimentas

a tua dor e as horas mais cinzentas

e vives falsidade pavorosa.

Doem em mim os teus segredos tristes,

e dói também saber que tu insistes

“em parecer aos outros venturosa.”

Geisa Alves

*PERFÍDIA*

“Se a cólera que espuma, a dor que mora”

No peito teu, que sangra sem sangrar,

Igual no céu purpúrea e bela aurora

No dia que, ao nascer, saúda o mar;

Se a força dessa raiva que te espora

Saísse mundo afora a derramar

Em tudo as tantas pragas de Pandora,

Nublando até as noites de luar;

Quiçá morresse a angústia desmedida

Que habita desde sempre a tua vida,

A mágoa que teu ser irado esposa.

Somente eu sei que teu viver é triste

e todo esforço feito em si consiste

“Em parecer aos outros venturosa!”

Edir Pina de Barros

*O HIPÓCRITA*

"Se a cólera que espuma, a dor que mora"

No peito se dilui na falsidade,

Imersa no oceano da maldade,

Porém despercebida para fora.

A vida alheia julga e monitora,

Condena sem moral, sem equidade,

Fingindo ser ovelha à sociedade,

A fome de alcateia lhe devora.

Na posse de um arbítrio repressor

Que lhe reveste, tal sutil mucosa,

Camufla o seu escopo transgressor.

Embora seja tão pecaminosa,

Tem gente que não tem qualquer pudor

"Em parecer aos outros venturosa!"

Luciano Dídimo

*CAIXA DE PANDORA*

"Se a cólera que espuma, a dor que mora"

num peito revestido de descrença,

transforma-se na seiva para a ofensa,

alimentando a caixa de pandora

que habita corações no mundo afora,

ao prometer o mal por recompensa,

sem perceber que a inútil desavença

condena a humanidade sem demora.

Se enverga a vestimenta do cordeiro,

no intuito de enganar o mundo inteiro,

negando haver espinho em toda rosa,

descobre, finalmente, não ser nada,

na tentativa em vão, desmensurada,

"Em parecer aos outros venturosa!"

Adilson Costa

*HIPOCRISIA*

"Se a cólera que espuma, a dor que mora"

no cerne, trucidando toda a essência,

do oculto revelasse, à luz da aurora,

a farsa, no disfarce da aparência...

talvez pudesse o câncer que devora

o espírito curar... e a consciência

analisar, solver, mandar embora

o fingimento, à sombra da inocência!

A falsidade agride, violenta

a humanidade... E aquele ser que ostenta

essa ferida aberta, cancerosa,

sabendo ser doloso, não resiste...

tenta tirar proveito e ainda insiste

"em parecer aos outros venturosa!"

Aila Brito

*A ORATÓRIA*

"Se a cólera que espuma, a dor que mora"

No seio dessa imensa humanidade,

Sumisse de uma vez, e sem maldade,

O mundo viveria em outra aurora.

Porém, a hipocrisia aqui vigora

Num riso, disfarçando a falsidade

Dos pérfidos senhores da vaidade

Que dizem: “Somos nós a luz do agora”.

O “pão e circo" vivo continua!

Enquanto muitos vivem pela rua,

Famintos... Nem a fé se faz ditosa!

Mas riem com o olhar profundo e triste,

A plebe, massacrada, ainda insiste

"Em parecer aos outros venturosa!"

Douglas Alfonso

*CEGUEIRA…*

“Se a cólera que espuma, a dor que mora”

no espírito do ser entristecido,

pudesse ser esteio a quem deplora,

e ser disfarce ao pérfido alarido…

Mas vozes que ressoam mundo afora,

fantasma de um passado combalido,

retornam em rondó — visão sonora —

descompassando o agora com ruído.

A dor cambaleante o faz descrente

e, escravo da batalha em sua mente,

não vê que, aqui e ali, colhemos rosa…

Renega a luz… sombreia a face opala…

pranteia a dor, em busca de alvejá-la,

“em parecer aos outros venturosa!”

Elvira Drummond

*VENCIDA*

"Se a cólera que espuma, a dor que mora"

E a lágrima que vem do próprio inferno,

Reinam no ser de dentro para fora,

Por ondas de aflição do mundo interno.

O sofrimento mais e mais rebora

A sensação de ser um monstro externo,

Nessa emoção que nunca vai embora

E se propaga feito um fogo eterno.

Ó alma solitária, enferma e irada,

Autora de passagem desgraçada,

Que adentra a aurora escura, tristurosa,

Tão cega, pela sombra indefinida

E, na verdade, num altar, vencida,

"Em parecer aos outros venturosa!"l

Ricardo Camacho

*O MEU AVESSO*

“Se a cólera que espuma, a dor que mora”

dentro de mim pudesse ser sentida

por outros, sei que mais nenhuma aurora

exibiria a alvura tão querida.

Seria escuridão que só piora,

abrindo em cada ser a atroz ferida,

sempre martirizante e, de hora em hora,

persistiria a lágrima dorida!

Não tenho império, não possuo amor,

não mostro o riso, só cultuo a dor,

prossigo nesta estrada viciosa...

Não sou a mesma, sou o meu avesso

e é cristalino que jamais careço

“em parecer aos outros venturosa.”

Janete Sales Dany

*REMISSÃO*

"Se a cólera que espuma, a dor que mora

No peito de garota, adormecida,

Enfim viesse a ser desconstruída

Pela paixão, sem par, vivida outrora.

Esquecerias o ódio que rebora

Ao teu redor purgando a tua vida...

Lembrando o quanto me entreguei querida!

Pois meu amor perdura até agora.

Sei que a vingança não te vai curar!

Careces reviver o dom de amar...

Lembrar! O quanto foste dadivosa.

Se a tua mágoa não ceder, jamais!

Decerto penarás, ainda mais,

"Em parecer aos outros venturosa".

José Rodrigues Filho

*TRANSLAÇÃO*

"Se a cólera que espuma, a dor que mora"

E a baba que goteja sobre a mesa,

Refletem o leitor, talvez, agora,

Que lê, escondidinho, na tristeza,

Curtindo a fúria oculta, a ausente aurora

E o fel que está na essência da alma, presa,

Por meio da atração que se aprimora

Na vibração de baixa natureza...

Pois, aparentemente interminável

O quadro de um negrume imponderável,

De fato, se enraíza no rancor...

Mas, felizmente, nada está perdido...

O mundo gira e, quando arrependido,

Sem fingimento, o ser verá o Amor!

Ricardo Camacho