FOME DE CARTÕES 1/12
fome de cartões i (29/10/2009)
antes das aulas, é hora de luxúria,
correndo atrás de restos de papel,
enquanto espero o meu dever, rebel,
nesses momentos de total incúria
e transformo estes cartões em plena fúria,
que me acomete, num ardor de fel:
perco minhas horas, sem me dar quartel,
artes transmito de paixão espúria,
que nenhum me traz amor e nem sequer
eu busco admiração. é um desperdício,
que um fiapo não me traz de recompensa,
mas me deixo enclausurar nesse mister,
sem trabalhar de fato, em meu ofício,
neles rascunho mil versos como ofensa!...
fome de cartões ii
cortei de uma só vez esse rabisco
que iniciara já fazem alguns dias:
não foi que rejeitasse as elegias,
somente as encarasse como cisco
e já em outro fragmento de papel,
sem nada impresso de melhor leitura,
eu me deleito a decifrar a agrura,
entre os espaços escritos a granel;
maomé não sou, que gravou o seu descante
em palmas ou até cacos de vaso,
por não perder o que lhe vinha à mente.
e nem é que precise. é por desplante
que rascunho tantos versos ao acaso:
em qualquer folha que se me apresente.
fome de cartões iii
mal acredito que tenham combinado
matar a aula, sem nem me avisar...
tive despesas, deixei de trabalhar
e vim aqui sem ter ninguém achado...
seja o que quer que tenha se passado,
ninguém se recordou de me contar...
perdi meu tempo, precisei gastar
e fiquei só no meu canto abandonado!
somente agora alguém vem me dizer
que minha turma está fazendo prova
com outro professor... portanto, fico
desapontado assim em meu dever:
não tenho aula, a perda se renova
e apenas nestes versos abro o bico!...
fome de cartões iv
bebi leite de figo e pão de esponja,
farelo azedo de mandioca amarga:
tanta derrota que minha vida alarga
e só me incita a que lutar prossiga,
sempre tratando a vida como monja,
mas o destino tanta vez me embarga:
nunca neguei-me a suportar-lhe a carga,
embora, às vezes, mal e mal consiga,
mas sempre eu insisti, nesse apesar,
que me levou a combater poréns,
perdido na floresta do entretanto,
sobrando sempre força de cantar,
para insistir ainda nos tambéns,
em que recuso a derramar meu pranto.
fome de cartões v – 4 dez 2022
já percorri os parques dos aléns
e me perdi nesses bosques de entretantos,
chorei vírgulas reticentes de portantos,
nesse passado furibundo dos recéns,
meus adultérios pratiquei só com aquéns,
enquanto beijos roubava dos entantos
e cobiçava o amor de mil enquantos,
mentindo juras de amor para os poréns
e assassinei a multidão dos dons
e não honrei a geração dos sens,
idolatrei as imagens dos tambéns
e na fome adverbial dos mudos sons
preguei o evangelho de meus tremas,
alcatifados na inveja dos fonemas.
fome de cartões vi
já recolhi cartões pela calçada,
para neles ir fazendo anotações,
sob esse olhar recolhido de emoções
de transeuntes a me achar meio pancada;
postei-me nas esquinas sem balada,
em sentido contrário às multidões,
em cavernas enfiei os meus balões,
cada miragem para as brumas enviada
e ao escutar o bimbalhar dos outrossins,
minhas estrofes escrevi pensando em tis,
que não lembravam nunca dos meus mins
e destarte embaralhei a ordem das frases,
que só buscavam abre-alas para os sis,
suas ataduras de palavras como gazes.
fome de cartões vii
não é minha fome do verso dos cartazes,
nem minha sede de amarelados envelopes,
nem sequer desamassei os papelotes,
nem os bilhetes escritos por rapazes;
usei volantes de loto, mais capazes
de meus cantos receber em convescotes,
reuni de guardanapos muitos lotes,
cem cartões de propaganda como bases;
tudo serviu, que não perdesse os versos
que se empurravam para ser escritos,
versos de ódio, de sexo, de aflitos,
estertores de alma os mais diversos,
para guardá-los de mistura a pó,
iguais fatias de mofado pão-de-ló...
fome de cartões viii
quando passava, cortei tiras de vidraça
para escrever com sangue meus poemas,
já coagulados na aurora dos apenas,
no travessão sutil de minha desgraça,
cada cartão sua mágoa nova me repassa,
quando ao franzir da testa por suas penas,
em cascas de ovos de avestruz registrei gemas,
sobre as tijoletas a redigir com argamassa,
mas foi de fato ante o sabor do vento
que registrei meus versos mais frequentes,
configurados em impressões ligeiras,
cada cor e cada odor novo portento,
que transmiti para as nuvens complacentes,
a me chover de retorno grãos de poeiras.
fome de cartões ix – 5 dezembro 2022
nelas misturo os passos esquecidos
que o vento ontem varreu para as sarjetas,
dos peitorís colho vozes mais secretas,
dos rodapés mil suspiros contraídos,
o farfalhar dos vestidos já perdidos,
abrigados no rachar das tijoletas,
até chapéus encontro sob as gretas
dessas telhas dos prédios carcomidos
e meus cartões vão penetrando cada fenda,
entre os tijolos de reboco nus,
algo pescando dos cortejos funerários,
por entre as pedras coletando toda a senda
em que o carnaval mais triste se introduz,
na multidão dos confetes perdulários.
fome de cartões x
para casa então retorno, o bolso rico
com as antigas chapinhas de eleições,
que jogavam pela rua às multidões,
vindas dos anos de cinquenta e pico
e uma a uma atento classifico,
quando criança até fazia coleções,
pilhas sobravam de muitas seções
de candidados sem conseguir seu bico,
na maioria a buscarem vereança
(houve um tempo em que nada ganhavam
os vereadores, com exceção da honra,
depois passaram a pagar, desculpa mansa
de que os pobres o dia inteiro trabalhavam,
e em numerários sofreram sua desonra...)
fome de cartões xi
sempre que posso, transformo em mais poesias
os comprovantes de transações bancárias,
não só os meus, mas de pessoas várias,
que abandonaram impensados pelas vias;
talvez eu tanha algumas que esquecias,
desperdiçados sem razões nefárias,
postos de lado em ocasiões mais perdulárias,
alguns com fitas de amareladas fantasias
e os recolho, às vezes vinte ou mais,
em cada folha a derramar as minhas magias,
preservo-lhes as vidas por uns dias
e não os levam do lixo aos terminais,
ficam apenas em minhas pilhas quedos,
os meus fiéis depositários de segredos...
fome de cartões xii
e gostaria de poder guardar os teus bilhetes,
seriam até como poesias para mim,
a evitar neles pintar versos enfim,
porque são meus por uti possidetis.
os teus pequenos pecados em que afetes
teu interesse por qualquer amor assim
e os guardaria em meus livros outrossim,
como nas páginas da alma te intrometes,
só para nutrir surpresas no futuro,
ao abrir páginas de lembranças esquecidas,
que talvez se desmanchassem no ar puro,
pobres retalhos de memórias ressequidas,
que só guardei por tua caligrafia,
como a sombra de alheios passos que seguia.